quinta-feira, 3 de março de 2005

Crónicas de tasca, parte III
O português é um consumidor passivo
Isto lembra-me outra coisa que li, também na Pública (27/Fev). Pinto e Castro, professor universitário especializado em marketing, diz que o consumidor português «é ainda muito passivo». Por um lado, desconhece os seus direitos; por outro, não quer ser obrigado a «pensar e a escolher», demitindo-se da escolha «aceitando e agradecendo a manipulação dos anúncios» – ideia de Phillippe Breton, sociólogo, na mesma revista.

O acto de consumo é algo novo para o português. Consumir nem sempre foi um acto quotidiano, tampouco com as facilidades que hoje existem. Não há muitos anos que para comprar era necessário ter dinheiro na carteira, ponderar as opções e distinguir o essencial do acessório, olhando à relação preço/qualidade – porque os produtos tinham que durar. Hoje, para comprar nem é preciso dinheiro vivo – a utilização do dinheiro de plástico (os cartões, de crédito ou débito, tanto faz) tem um lado pernicioso, de contribuir para a desvalorização mental do acto, da quantia, da moeda. O apreço dos portugueses pelas grandes superfícies comerciais, os CC que pelo país fora se multiplicam – nelas passando horas, dias inteiros ao fim-de-semana, com os putos pela mão a berrar de calor, ou de tédio, ou de cansaço, comprando ou somente namorando, à espera que chegue o final do mês –, ilustra parte desta ideia. Li algures (creio que numa edição da Grande Reportagem) que os consumidores do Norte da Europa, por exemplo, encaram o Centro Comercial como um local para ir comprar o que já está previamente estipulado, findo o que regressam a casa.

Quanto a mim, a presente situação da venda de bilhetes para o concerto dos U2 é ilustrativa da passividade do consumidor português. Não só os ingressos são caros (entre 50 a 150 euros, se não erro, para um espectáculo único ao ar livre, não obstante a qualidade da banda, parece-me excessivo) como ninguém parece protestar pela forma como estão a ser vendidos – que considero, no mínimo, espantosamente hostil. A grande maioria dos ingressos estará disponível aos balcões de uma minoria de postos de abastecimento de combustíveis, o cliente terá que ser possuidor do cartão da marca, a British Petroleum, e ainda coleccionar um milhar e pouco de pontos (acumulados mediante consumo dos produtos da marca), para que lhe sejam então vendidos, aos preços referidos, os ditos ingressos. Se isto não é agressivo, não sei o que será.

Para o concerto dos U2 em Viena, Áustria, foram disponibilizados 370 postos de venda, 25 call-centers e uma página na internet. Pergunto-me quantos desses 370 postos de venda foram estações de serviço da BP...

Mas não se duvide: os bilhetes para o concerto em Alvalade esgotarão. Porque entre protestar activa e seriamente contra esta política, junto da produtora ou da imprensa (que, dada a proeminência do evento, não negaria espaço na sua agenda para um protesto desta índole), e esperar umas boas horas numa fila, cheirando vapores de gasolina, a segunda opção é claramente mais confortável. E até divertido e “radical”. Assim se abre um precedente e se alimenta as (bastante careiras) produtoras de eventos musicais que operam em Portugal, que muitas vezes não fornecem um produto que valha o dinheiro que cobram (ou em espaços dignos ou com condições de qualidade mínima). Pedir, à boca pequena, IVA de cinco por cento para os produtos musicais é, realmente, muito fácil; fazer alguma coisa de jeito é que já é muito chato.


(ACTUALIZAÇÃO:
«A BP ia vender os bilhetes em três fases mas, "como se excederam as expectativas, teve de se alterar o processo" e todos serão vendidos desta vez, referiu o engº. João Reis, do Departamento de Comunicação da BP. O cartão BP não é, afinal, essencial para comprar os bilhetes, mas quem o quiser usar tem um pequeno desconto.»

DN, 1Mar2005)

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