Coisas antigas e sem data V
Este filme já passou na minha sala. Como será que acaba desta vez? As reposições terminam sempre da mesma forma e é disto que tenho medo, hoje.
No primário de tudo isto, senti-me vivo. E a hora e meia que levou rodar a cena nocturna, por entre um Tejo salpicado de luzes e versos cantados a voz quente, foi dos momentos mais bonitos que vivi. As tuas palavras doces, as tuas gargalhadas, repetires quão bonita e preciosa é a tua mãe e a sinceridade nua e limpa com que te confessaste e com que te disse que cada balde que puxo do teu poço é puro sentir - tudo isto foi a cena perfeita, porém filmada três stops abaixo. É que, com os truques certos, os erros de revelação podem reverter-se. No entanto, quando o que falha é o tempo de obturação ou a disponibilidade do diafragma, sempre fica tudo muito claro ou muito escuro, numa gradação que sempre sempre resulta invisível.
sábado, 28 de maio de 2005
Coisas antigas e sem data IV
A minha obsessão pelo documento impediu-me de ver para além da linha ténue que demarca o campo da arte. É uma miopia de que sofro. Esta limitação para a criação é uma terrível frustração. Tanto mais que a vontade é grande. A beleza sim, vejo-a. Mas nunca a consegui captar. E na necessidade de alguma mudança, interrompi.
A visualização diária do real custa, consome. Mas revigora, também. O exercício de observação do barco no rio, da água que se separa no casco, das pessoas bonecos sérios, do cego no metro, do velhote sentado no jardim e de todos os outros e de tudo o mais, é extasiante por ser belo. É a realidade que não magoa – porque não é a nossa.
Se naquela manhã ele tivesse demorado um pouco mais no banho, provavelmente estaria morto, esmagado por uma parede de tijolo. O gás teria continuado a sair pelo bico sem chama do fogão, porque um púcaro de leite foi esquecido e ferveu e derramou e abafou o lume mas não o gás. De lençol à cintura, foi quando sentiu o cheiro forte a propano e então caminhou, vagaroso, seguindo o ruído sssssssssssssssssss e girou o botão. Abriu uma janela e outras mais pelo caminho até ao quarto. Cinco minutos mais, ou quatro ou três ou dois ou apenas um e o gás poderia ter subido à flama do esquentador, meio metro acima.
Mesmo assim, o ferry continuaria a cortar o rio, as marionetas iriam para o emprego, o cego a pedir no metro e o velhote a deitar pão aos pombos e todos e tudo porque o sol se haveria de pôr também.
A realidade em que somos actores principais, o dia que amanhece na nossa almofada e ali acaba horas depois, consome-nos; e porque não a vemos de fora, encontramo-nos de mãos e pés atados e com uma mordaça. E é silêncio e é cinzento. Umas vezes mais claro, outras vezes mais escuro.
A simplicidade das coisas não-objectos assusta e arrebata. Mas, que assalte – sim; que assuste – não.
A minha obsessão pelo documento impediu-me de ver para além da linha ténue que demarca o campo da arte. É uma miopia de que sofro. Esta limitação para a criação é uma terrível frustração. Tanto mais que a vontade é grande. A beleza sim, vejo-a. Mas nunca a consegui captar. E na necessidade de alguma mudança, interrompi.
A visualização diária do real custa, consome. Mas revigora, também. O exercício de observação do barco no rio, da água que se separa no casco, das pessoas bonecos sérios, do cego no metro, do velhote sentado no jardim e de todos os outros e de tudo o mais, é extasiante por ser belo. É a realidade que não magoa – porque não é a nossa.
Se naquela manhã ele tivesse demorado um pouco mais no banho, provavelmente estaria morto, esmagado por uma parede de tijolo. O gás teria continuado a sair pelo bico sem chama do fogão, porque um púcaro de leite foi esquecido e ferveu e derramou e abafou o lume mas não o gás. De lençol à cintura, foi quando sentiu o cheiro forte a propano e então caminhou, vagaroso, seguindo o ruído sssssssssssssssssss e girou o botão. Abriu uma janela e outras mais pelo caminho até ao quarto. Cinco minutos mais, ou quatro ou três ou dois ou apenas um e o gás poderia ter subido à flama do esquentador, meio metro acima.
Mesmo assim, o ferry continuaria a cortar o rio, as marionetas iriam para o emprego, o cego a pedir no metro e o velhote a deitar pão aos pombos e todos e tudo porque o sol se haveria de pôr também.
A realidade em que somos actores principais, o dia que amanhece na nossa almofada e ali acaba horas depois, consome-nos; e porque não a vemos de fora, encontramo-nos de mãos e pés atados e com uma mordaça. E é silêncio e é cinzento. Umas vezes mais claro, outras vezes mais escuro.
A simplicidade das coisas não-objectos assusta e arrebata. Mas, que assalte – sim; que assuste – não.
Coisas antigas e sem data III
O senhor não se importa?
«O senhor não se importa de se chegar para o lugar do lado? É que eu não dobro esta perna e então...» E sentou-se. De imediato se justificou perante os que estavam naquele bloco de assentos do metro, esclarecendo que os lugares reservados a deficientes estavam todos ocupados e que... Quanto à perna que não dobrava e na qual calçava um sapato com um tacão alto em madeira, «foi em Moçambique, em 1961 – tinha trinta e cinco anos».
«É que eu já fui perfeito, sabe? Mas um acidente nos comboios, em Moçambique...» Pela forma como repetia Moçambique, Moçambique, Moçambique, adivinhei que estaria para vir a conversa da descolonização. Qual seria a posição deste velho coxo face à debandada portuguesa? Sinceramente, pouco me interessava.
O vizinho ouvia, acenava compreensão, balbuciava acordo, mas não escondia o desagrado pela expropriação do seu banco, onde tentava, trémulo, fazer as palavras-cruzadas, recortadas de um jornal. De olhos no chão e guardando o pedaço de papel no bolso do casaco, «pois, pois... claro, claro». Reformado, também na casa dos setenta, «não, nunca estive em África».
Mas o velho coxo continuou e enveredou pelas histórias vividas em setenta e quatro e setenta e cinco. Não hesitou em demonstrar a paixão assolapada que tinha por personagens como Almeida Santos – «esse cão» –, Mário Soares – «esse bandido» – ou Otelo Saraiva de Carvalho – «esse energúmeno». Segundo ele, «foram esses bandidos que estragaram a vida dos de lá e dos de cá». Lá, que era a sua terra – havia nascido em Lourenço Marques.
Insultos, episódios de venda de imóveis por quantias avultadas, Samora Machel, a aventura daqueles que regressaram com a camisa do corpo. Os seus olhos, guardados por detrás de um par de lentes grossas, percorriam-nos, ansiando ouvir algumas palavras de acordo. Eu, a mulher que estava ao meu lado, o velho das palavras cruzadas. Mas mesmo não tendo uma assistência particularmente interessada, o velho coxo continuou o monólogo.
A fome em África era um assunto que o perturbava. «Até choro, quando vejo na televisão aqueles miúdos esqueléticos!» Quem não chora? A indignação era grande, pois «quem lá tivesse vivido nunca poderia pensar que, algum dia, houvesse fome naquele país». Foi então que as suas mãos deram de si, perdendo a bengala de madeira, que parou nos meus pés. Num esforço para não deixar cair muito mais, agradeceu-me a amabilidade do gesto e mergulhou na mágoa daquelas recordações, em silêncio.
Era segunda-feira e o comboio seguia veloz, estação a estação, repleto até ao topo. O ar carregado de suor, o cego que pedia «a moeda mais pequenina», a gorda que lia a Maria, o par de engravatados que viajava de pé. Estavam todos lá, como sempre, desde sempre.
Outra travagem, novamente o alarme das portas, mais gente que entra no comboio lotado, porque onde cabem mil, cabem dois ou três mil mais. Dando tréguas ao coração, o velho coxo quebrou o silêncio e pediu perdão pelo desabafo. Mostrava-se aliviado mas também envergonhado – certamente aquela situação seria frequente.
Tão frequente quanto a de um outro sujeito com quem me tenho cruzado, também no metro (sempre no metro!), e que vai ameaçando uns tipos que eu não conheço, que ninguém conhece – duvido mesmo que ele os conheça –, referindo-se a uma dívida de uns milhares de contos. E vai nisto toda a viagem, sempre de pé, quase gritando, visivelmente perturbado e excitado. Mas hoje não é ele, é o velho coxo de setenta e seis anos, que viaja mesmo à minha frente.
«Para ir para o Cais do Sodré tenho que mudar no Chiado, que é a próxima, não é?» É sim.
O senhor não se importa?
«O senhor não se importa de se chegar para o lugar do lado? É que eu não dobro esta perna e então...» E sentou-se. De imediato se justificou perante os que estavam naquele bloco de assentos do metro, esclarecendo que os lugares reservados a deficientes estavam todos ocupados e que... Quanto à perna que não dobrava e na qual calçava um sapato com um tacão alto em madeira, «foi em Moçambique, em 1961 – tinha trinta e cinco anos».
«É que eu já fui perfeito, sabe? Mas um acidente nos comboios, em Moçambique...» Pela forma como repetia Moçambique, Moçambique, Moçambique, adivinhei que estaria para vir a conversa da descolonização. Qual seria a posição deste velho coxo face à debandada portuguesa? Sinceramente, pouco me interessava.
O vizinho ouvia, acenava compreensão, balbuciava acordo, mas não escondia o desagrado pela expropriação do seu banco, onde tentava, trémulo, fazer as palavras-cruzadas, recortadas de um jornal. De olhos no chão e guardando o pedaço de papel no bolso do casaco, «pois, pois... claro, claro». Reformado, também na casa dos setenta, «não, nunca estive em África».
Mas o velho coxo continuou e enveredou pelas histórias vividas em setenta e quatro e setenta e cinco. Não hesitou em demonstrar a paixão assolapada que tinha por personagens como Almeida Santos – «esse cão» –, Mário Soares – «esse bandido» – ou Otelo Saraiva de Carvalho – «esse energúmeno». Segundo ele, «foram esses bandidos que estragaram a vida dos de lá e dos de cá». Lá, que era a sua terra – havia nascido em Lourenço Marques.
Insultos, episódios de venda de imóveis por quantias avultadas, Samora Machel, a aventura daqueles que regressaram com a camisa do corpo. Os seus olhos, guardados por detrás de um par de lentes grossas, percorriam-nos, ansiando ouvir algumas palavras de acordo. Eu, a mulher que estava ao meu lado, o velho das palavras cruzadas. Mas mesmo não tendo uma assistência particularmente interessada, o velho coxo continuou o monólogo.
A fome em África era um assunto que o perturbava. «Até choro, quando vejo na televisão aqueles miúdos esqueléticos!» Quem não chora? A indignação era grande, pois «quem lá tivesse vivido nunca poderia pensar que, algum dia, houvesse fome naquele país». Foi então que as suas mãos deram de si, perdendo a bengala de madeira, que parou nos meus pés. Num esforço para não deixar cair muito mais, agradeceu-me a amabilidade do gesto e mergulhou na mágoa daquelas recordações, em silêncio.
Era segunda-feira e o comboio seguia veloz, estação a estação, repleto até ao topo. O ar carregado de suor, o cego que pedia «a moeda mais pequenina», a gorda que lia a Maria, o par de engravatados que viajava de pé. Estavam todos lá, como sempre, desde sempre.
Outra travagem, novamente o alarme das portas, mais gente que entra no comboio lotado, porque onde cabem mil, cabem dois ou três mil mais. Dando tréguas ao coração, o velho coxo quebrou o silêncio e pediu perdão pelo desabafo. Mostrava-se aliviado mas também envergonhado – certamente aquela situação seria frequente.
Tão frequente quanto a de um outro sujeito com quem me tenho cruzado, também no metro (sempre no metro!), e que vai ameaçando uns tipos que eu não conheço, que ninguém conhece – duvido mesmo que ele os conheça –, referindo-se a uma dívida de uns milhares de contos. E vai nisto toda a viagem, sempre de pé, quase gritando, visivelmente perturbado e excitado. Mas hoje não é ele, é o velho coxo de setenta e seis anos, que viaja mesmo à minha frente.
«Para ir para o Cais do Sodré tenho que mudar no Chiado, que é a próxima, não é?» É sim.
Coisas antigas e sem data II
Imaginava ser revistado, passar por um detector de metais, ter que deixar alguma identificação à porta, ser seguido por uma panóplia de cameras de vídeo ou agentes, fardados ou de fato. No fundo, aquilo a que quatro séries de X-Files me habituaram. Mas não foi nada assim. Nem Skinner, nem Mulder, nem Scully, nem Cancer Man. Apenas um sujeito ridiculamente baixo e em nada intimidante que, para chegar ao balcão estaria, certamente, em bicos de pés. Nem o autêntico caixote que é a minha mala quiseram ver aberta. Estive quase a pedir-lhes que o fizessem, na tentativa de imprimir um ar mais hollywoodesco à coisa. «Traz consigo alguma arma, algum objecto cortante?»
Depois de esperar perto de uma hora, ao ritmo de discussões de teor benfiquista entre o porteiro com ar de funcionário público e outros dois indivíduos que estavam na zona de espera, subi, finalmente. A caminho do elevador passei pelo pórtico de detecção de metais, apesar de não me ter sido exigido – tristemente, o aparelho não piou. «Quarto andar, sala 412.»
O elevador era minúsculo e velho, daquele com botões grandes e uma grade de correr, e cheirava terrivelmente a tabaco. Desiludido, esperei que aquilo melhorasse na secção a que me dirigia. Na viagem, imaginei um hall de entrada, uma recepcionista, vozes, telefones e bater de teclas. Quando abri a porta deparei-me com um corredor estreito, portas e mais portas em madeira velha pintada de branco e umas chapinhas azuis com a indicação das divisões. O soalho rangia a cada passo. Era um antigo edifício de habitação, agora convertido, na Alexandre Herculano.
“Fraudes creditárias”. Fui recebido por um homem que não devia ter sequer trinta anos, em calça de ganga e camisa, num gabinete de paredes amarelecidas. A sala tinha duas secretárias, dois computadores, uma janela com vista para as traseiras do quarteirão. Nada daquilo remetia ao universo polícial de qualquer pessoa que tivesse nascido na era da televisão.
Chateado por não ter almoçado ainda, vi as fotografias a correr e não consegui identificar o brasileiro gordo que, em Agosto, comprou uma máquina fotográfica com um cartão de crédito ilícito. Passaram três meses, outra coisa não seria de esperar. Contudo, o sujeito estava preso e a minha presença ali era para prestar declarações que seriam anexadas ao processo. Como não domino o léxico policial, o meu depoimento necessitou de confirmação frase a frase, arrastando-se por quase quarenta minutos.
Imaginava ser revistado, passar por um detector de metais, ter que deixar alguma identificação à porta, ser seguido por uma panóplia de cameras de vídeo ou agentes, fardados ou de fato. No fundo, aquilo a que quatro séries de X-Files me habituaram. Mas não foi nada assim. Nem Skinner, nem Mulder, nem Scully, nem Cancer Man. Apenas um sujeito ridiculamente baixo e em nada intimidante que, para chegar ao balcão estaria, certamente, em bicos de pés. Nem o autêntico caixote que é a minha mala quiseram ver aberta. Estive quase a pedir-lhes que o fizessem, na tentativa de imprimir um ar mais hollywoodesco à coisa. «Traz consigo alguma arma, algum objecto cortante?»
Depois de esperar perto de uma hora, ao ritmo de discussões de teor benfiquista entre o porteiro com ar de funcionário público e outros dois indivíduos que estavam na zona de espera, subi, finalmente. A caminho do elevador passei pelo pórtico de detecção de metais, apesar de não me ter sido exigido – tristemente, o aparelho não piou. «Quarto andar, sala 412.»
O elevador era minúsculo e velho, daquele com botões grandes e uma grade de correr, e cheirava terrivelmente a tabaco. Desiludido, esperei que aquilo melhorasse na secção a que me dirigia. Na viagem, imaginei um hall de entrada, uma recepcionista, vozes, telefones e bater de teclas. Quando abri a porta deparei-me com um corredor estreito, portas e mais portas em madeira velha pintada de branco e umas chapinhas azuis com a indicação das divisões. O soalho rangia a cada passo. Era um antigo edifício de habitação, agora convertido, na Alexandre Herculano.
“Fraudes creditárias”. Fui recebido por um homem que não devia ter sequer trinta anos, em calça de ganga e camisa, num gabinete de paredes amarelecidas. A sala tinha duas secretárias, dois computadores, uma janela com vista para as traseiras do quarteirão. Nada daquilo remetia ao universo polícial de qualquer pessoa que tivesse nascido na era da televisão.
Chateado por não ter almoçado ainda, vi as fotografias a correr e não consegui identificar o brasileiro gordo que, em Agosto, comprou uma máquina fotográfica com um cartão de crédito ilícito. Passaram três meses, outra coisa não seria de esperar. Contudo, o sujeito estava preso e a minha presença ali era para prestar declarações que seriam anexadas ao processo. Como não domino o léxico policial, o meu depoimento necessitou de confirmação frase a frase, arrastando-se por quase quarenta minutos.
Coisas antigas e sem data I
Está frio e chove sem parar. É já de noite quando entro no café, por volta das seis. À porta, sentado à caixa registradora, o velho sovina. Ao balcão, o tipo gordito e baixo, de bigode. Numa mesa, duas mulheres bebem um galão e comem bolos. Ao lado, um sujeito aprumado lança charme às tipas, enquanto folhea o Record. Entro, peço o meu café cheio, sento-me.
Abro o jornal, que comprei ainda de manhã, e leio sobre os atentados na Turquia e a viagem de Bush a Londres. Entra uma senhora com uma criança pela mão. Pede um bolo de arroz, recebe o talão, dirige-se ao velho para pagar. O gajo conta as moedas e deixa cair cada uma no seu respectivo lugar. Porque tudo tem um lugar.
- “Óh senhor Fernando, alcance aí o bolo de chocolate, sff”.
- “Qual deles?”
- “O que...”
- “Você não se explica! Quer que eu adivinhe? É que estão aqui dois! Um tem...”
- “O que está no nome da senhora Olinda.”
- “Ah bom, pois assim já sei. Agora, se você não me diz qual é, como é que eu hei de saber? É que estão aqui dois, um com cobertura e o outro s...”
- “Sim, senhor Fernando. Eu sei disso.”
Apeteceu-me levantar e esbofetear o velho. É costume parar lá, para um café apressado, e nunca o vi ser simpático, fosse para quem fosse. Antes pelo contrário, é estúpido que nem uma tábua. Imagino-o, de porta fechada, a conferir cada soma com o total de dinheiro em caixa. Não batendo certo, aproveita para enxovalhar um pouco mais o empregado e a filha. Será o senhorio? Que merda de acordo ou contrato é aquele, que obriga os sujeitos que lá trabalham a aturar o cabrão do velho sovina, que certamente ganha à comissão? Mas isso não é comigo. Nem com o ucraniano que está sentado à minha frente, aprumado à gangster do leste.
Está frio e chove sem parar. É já de noite quando entro no café, por volta das seis. À porta, sentado à caixa registradora, o velho sovina. Ao balcão, o tipo gordito e baixo, de bigode. Numa mesa, duas mulheres bebem um galão e comem bolos. Ao lado, um sujeito aprumado lança charme às tipas, enquanto folhea o Record. Entro, peço o meu café cheio, sento-me.
Abro o jornal, que comprei ainda de manhã, e leio sobre os atentados na Turquia e a viagem de Bush a Londres. Entra uma senhora com uma criança pela mão. Pede um bolo de arroz, recebe o talão, dirige-se ao velho para pagar. O gajo conta as moedas e deixa cair cada uma no seu respectivo lugar. Porque tudo tem um lugar.
- “Óh senhor Fernando, alcance aí o bolo de chocolate, sff”.
- “Qual deles?”
- “O que...”
- “Você não se explica! Quer que eu adivinhe? É que estão aqui dois! Um tem...”
- “O que está no nome da senhora Olinda.”
- “Ah bom, pois assim já sei. Agora, se você não me diz qual é, como é que eu hei de saber? É que estão aqui dois, um com cobertura e o outro s...”
- “Sim, senhor Fernando. Eu sei disso.”
Apeteceu-me levantar e esbofetear o velho. É costume parar lá, para um café apressado, e nunca o vi ser simpático, fosse para quem fosse. Antes pelo contrário, é estúpido que nem uma tábua. Imagino-o, de porta fechada, a conferir cada soma com o total de dinheiro em caixa. Não batendo certo, aproveita para enxovalhar um pouco mais o empregado e a filha. Será o senhorio? Que merda de acordo ou contrato é aquele, que obriga os sujeitos que lá trabalham a aturar o cabrão do velho sovina, que certamente ganha à comissão? Mas isso não é comigo. Nem com o ucraniano que está sentado à minha frente, aprumado à gangster do leste.
Pois é, já nem me lembrava desses dois (ou do último, vá...)
«E é de lamentar que uma das medidas anunciadas pelo primeiro-ministro - o corte das subvenções vitalícias dos primeiros-ministros - não se aplique aos seus antecessores. Imaginar que Santana Lopes e Durão Barroso vão ter direito a um prémio vitalício pelo lindo serviço prestado ao país é simplesmente intolerável.»
Miguel Sousa Tavares,
Público, 27Maio2005
«E é de lamentar que uma das medidas anunciadas pelo primeiro-ministro - o corte das subvenções vitalícias dos primeiros-ministros - não se aplique aos seus antecessores. Imaginar que Santana Lopes e Durão Barroso vão ter direito a um prémio vitalício pelo lindo serviço prestado ao país é simplesmente intolerável.»
Miguel Sousa Tavares,
Público, 27Maio2005
terça-feira, 24 de maio de 2005
A desculpa portuguesa, com certeza
Ivo Ferreira, o português preso no Dubai por fumar um charro, em entrevista (rápida) à Grande Reportagem (nº228, 21 de Maio):
Sabia que era proibido fumar haxixe?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
O Pudim Royal teve acesso à entrevista na íntegra. Foi assim:
Sabia que se, conduzindo um automóvel a 50km/h, não parar na passadeira quando peões atravessam, pode atropelá-los e matá-los?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
Sabia que se passar o sinal vermelho num cruzamento pode provocar um acidente?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
Sabia que se o sinal está vermelho, por alguma razão é?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
Sabia que esse princípio serve também para os sinais de STOP e para a sinalização de "via fechada" na Ponte 25 de Abril?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
Sabia que se se atirar de um prédio de 20 andares, provavelmente estatela-se no chão e vai desta pra melhor?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
Sabia que quem anda à chuva, molha-se?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
Sabia que George W. Bush foi re-eleito?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
E sabia que José Sócrates é Primeiro-Ministro de Portugal?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
E que Santana Lopes é um palerma?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
E que Ratzinger é ultra-reaccionário e conservador?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
E que os bebés não vêm de França, no bico de uma cegonha?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
Então e o Ivo sabia que está a ser completamente estúpido ao responder dessa forma à pergunta original desta entrevista?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
E que é, realmente, um perfeito otário?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
Resumindo, esta do «sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse» é a desculpa portuguesa por excelência. Depois de um acidente de viação, diz um sobrevivente culpado, embriagado e tudo o mais: «sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse»; e o Sampaio, agora que remendou o erro de empossar Santana: «sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse»; e por aí fora...
Ivo Ferreira, o português preso no Dubai por fumar um charro, em entrevista (rápida) à Grande Reportagem (nº228, 21 de Maio):
Sabia que era proibido fumar haxixe?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
O Pudim Royal teve acesso à entrevista na íntegra. Foi assim:
Sabia que se, conduzindo um automóvel a 50km/h, não parar na passadeira quando peões atravessam, pode atropelá-los e matá-los?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
Sabia que se passar o sinal vermelho num cruzamento pode provocar um acidente?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
Sabia que se o sinal está vermelho, por alguma razão é?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
Sabia que esse princípio serve também para os sinais de STOP e para a sinalização de "via fechada" na Ponte 25 de Abril?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
Sabia que se se atirar de um prédio de 20 andares, provavelmente estatela-se no chão e vai desta pra melhor?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
Sabia que quem anda à chuva, molha-se?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
Sabia que George W. Bush foi re-eleito?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
E sabia que José Sócrates é Primeiro-Ministro de Portugal?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
E que Santana Lopes é um palerma?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
E que Ratzinger é ultra-reaccionário e conservador?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
E que os bebés não vêm de França, no bico de uma cegonha?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
Então e o Ivo sabia que está a ser completamente estúpido ao responder dessa forma à pergunta original desta entrevista?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
E que é, realmente, um perfeito otário?
- Sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse.
Resumindo, esta do «sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse» é a desculpa portuguesa por excelência. Depois de um acidente de viação, diz um sobrevivente culpado, embriagado e tudo o mais: «sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse»; e o Sampaio, agora que remendou o erro de empossar Santana: «sabia, mas nunca pensei que isto acontecesse»; e por aí fora...
quarta-feira, 4 de maio de 2005
domingo, 1 de maio de 2005
Pernicioso exercício dedutivo, ao bom estilo de “penso, logo existo”, feito a lápis e entre um café e um cigarro
Se a realidade de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro corresponde a uma “patologia da normalidade”; se a religião é o instrumento último para a procura da felicidade; se não tendo acesso à religião, as gentes de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro eram infelizes, porque “patologicamente normais”; se a Igreja Católica não é uma instituição democrática mas sim uma hierarquia fechada – «há os que mandam e os que obedecem», esclarecem-me católicos praticantes convictos – na qual não há espaço para dúvidas ou questões, porque somente pregando uma verdade e uma certeza é que se pode conservar fiéis seguros e crentes – um clérigo não pode confundir um cristão com mensagens dúbias, mostrando, num momento, o caminho e levantando duvidas à doutrina, noutro; então a Igreja Católica prega uma “patologia da normalidade”; e fá-lo no seu seio e igualmente no seu rebanho.
Se a “patologia da normalidade”, como Fromm a teorizou, é nefasta; não menos perniciosa é aquela praticada pela Igreja Católica.
Acordem, senhores! - apetece dizer.
Se a realidade de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro corresponde a uma “patologia da normalidade”; se a religião é o instrumento último para a procura da felicidade; se não tendo acesso à religião, as gentes de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro eram infelizes, porque “patologicamente normais”; se a Igreja Católica não é uma instituição democrática mas sim uma hierarquia fechada – «há os que mandam e os que obedecem», esclarecem-me católicos praticantes convictos – na qual não há espaço para dúvidas ou questões, porque somente pregando uma verdade e uma certeza é que se pode conservar fiéis seguros e crentes – um clérigo não pode confundir um cristão com mensagens dúbias, mostrando, num momento, o caminho e levantando duvidas à doutrina, noutro; então a Igreja Católica prega uma “patologia da normalidade”; e fá-lo no seu seio e igualmente no seu rebanho.
Se a “patologia da normalidade”, como Fromm a teorizou, é nefasta; não menos perniciosa é aquela praticada pela Igreja Católica.
Acordem, senhores! - apetece dizer.
Subscrever:
Mensagens (Atom)