Coisas antigas e sem data III
O senhor não se importa?
«O senhor não se importa de se chegar para o lugar do lado? É que eu não dobro esta perna e então...» E sentou-se. De imediato se justificou perante os que estavam naquele bloco de assentos do metro, esclarecendo que os lugares reservados a deficientes estavam todos ocupados e que... Quanto à perna que não dobrava e na qual calçava um sapato com um tacão alto em madeira, «foi em Moçambique, em 1961 – tinha trinta e cinco anos».
«É que eu já fui perfeito, sabe? Mas um acidente nos comboios, em Moçambique...» Pela forma como repetia Moçambique, Moçambique, Moçambique, adivinhei que estaria para vir a conversa da descolonização. Qual seria a posição deste velho coxo face à debandada portuguesa? Sinceramente, pouco me interessava.
O vizinho ouvia, acenava compreensão, balbuciava acordo, mas não escondia o desagrado pela expropriação do seu banco, onde tentava, trémulo, fazer as palavras-cruzadas, recortadas de um jornal. De olhos no chão e guardando o pedaço de papel no bolso do casaco, «pois, pois... claro, claro». Reformado, também na casa dos setenta, «não, nunca estive em África».
Mas o velho coxo continuou e enveredou pelas histórias vividas em setenta e quatro e setenta e cinco. Não hesitou em demonstrar a paixão assolapada que tinha por personagens como Almeida Santos – «esse cão» –, Mário Soares – «esse bandido» – ou Otelo Saraiva de Carvalho – «esse energúmeno». Segundo ele, «foram esses bandidos que estragaram a vida dos de lá e dos de cá». Lá, que era a sua terra – havia nascido em Lourenço Marques.
Insultos, episódios de venda de imóveis por quantias avultadas, Samora Machel, a aventura daqueles que regressaram com a camisa do corpo. Os seus olhos, guardados por detrás de um par de lentes grossas, percorriam-nos, ansiando ouvir algumas palavras de acordo. Eu, a mulher que estava ao meu lado, o velho das palavras cruzadas. Mas mesmo não tendo uma assistência particularmente interessada, o velho coxo continuou o monólogo.
A fome em África era um assunto que o perturbava. «Até choro, quando vejo na televisão aqueles miúdos esqueléticos!» Quem não chora? A indignação era grande, pois «quem lá tivesse vivido nunca poderia pensar que, algum dia, houvesse fome naquele país». Foi então que as suas mãos deram de si, perdendo a bengala de madeira, que parou nos meus pés. Num esforço para não deixar cair muito mais, agradeceu-me a amabilidade do gesto e mergulhou na mágoa daquelas recordações, em silêncio.
Era segunda-feira e o comboio seguia veloz, estação a estação, repleto até ao topo. O ar carregado de suor, o cego que pedia «a moeda mais pequenina», a gorda que lia a Maria, o par de engravatados que viajava de pé. Estavam todos lá, como sempre, desde sempre.
Outra travagem, novamente o alarme das portas, mais gente que entra no comboio lotado, porque onde cabem mil, cabem dois ou três mil mais. Dando tréguas ao coração, o velho coxo quebrou o silêncio e pediu perdão pelo desabafo. Mostrava-se aliviado mas também envergonhado – certamente aquela situação seria frequente.
Tão frequente quanto a de um outro sujeito com quem me tenho cruzado, também no metro (sempre no metro!), e que vai ameaçando uns tipos que eu não conheço, que ninguém conhece – duvido mesmo que ele os conheça –, referindo-se a uma dívida de uns milhares de contos. E vai nisto toda a viagem, sempre de pé, quase gritando, visivelmente perturbado e excitado. Mas hoje não é ele, é o velho coxo de setenta e seis anos, que viaja mesmo à minha frente.
«Para ir para o Cais do Sodré tenho que mudar no Chiado, que é a próxima, não é?» É sim.
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