domingo, 29 de novembro de 2009

As canecas da Tupperware
A Rita diz que não poderei perceber por que razão a Sigourney Weaver era considerada um sex symbol nos anos oitenta porque eu era um “bebezolas” quando o James Cameron realizou o Aliens. A Rita tinha onze anos e nunca tinha beijado um rapaz porque era tudo muito andrógino, pá, as roupas, os cabelos, era uma coisa. Aparentemente é isto que explica o fenómeno da Sigourney Weaver. Isto e o facto de no final do Alien do Ridley Scott ver-se o rabo dela, estavam na moda aquelas cuecas descidas e de tamanho pequeno, nada de soutiens, uma excitação, se se tiver em conta que o Homem só tinha pisado a Lua havia dez anos — não vamos discutir. Porque, já agora, importa esclarecer que, ao contrário do que a RTP me fez crer todo este tempo, o Hicks, o Bishop, as armas super evoluídas, os tiroteios e os magotes de bichos de duas bocas de mil novecentos e oitenta e seis são já o segundo episódio da saga que nasceu sete anos antes, época de ouro dos monitores monocromáticos, onde a Ripley, lá está, aparece com aquelas cuecas mínimas que a produção substituirá pelo conjuntinho de roupa interior desportiva de algodão cinzento e nada sensual que ela tem vestido no início do segundo filme da série que eu julguei o primeiro episódio, ainda sem soutien, a bem do racord, a fraude a fraude. Ou falta de atenção. Devia ter suspeitado do ‘s’ no Aliens e do ‘3’ no Alien elevado ao cubo, que já é do David Fincher, em mil novecentos e noventa e dois, era eu um rapaz crescidote e já a Rita era uma adolescente muito vivida. O Alien Resurrection, do Jean-Pierre Jeunet, já é um bocado espremido, coisas da proximidade do milénio.


Seja como for, o que é feito das canecas da Tupperware? Foi o plástico poroso e capaz de largar partículas com o tempo, com o raspar das colheres ou das dentadas da miudagem, que as fez desaparecer? Lembro-me bem. Lá em casa havia umas quantas, enfiavam-se umas dentro das outras, eram de várias cores, pelo menos uma vermelha e uma beije a fugir para o branco. Havia anos que não punha a vista em cima de uma coisa daquelas. Também havia anos que não apanhava uma constipação de me atirar dois dias para a cama, xiça. É ver o Alien. O de mil novecentos e setenta e nove.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Porque é que deixaste de escrever sobre o amor?
eu says: Mas eu alguma vez escrevi sobre o amor?

ela que pensa que eu escrevo says: Escreveste.

eu says: Quando?

ela que pensa que eu escrevo says: Não sei, mas escreveste porque eu li.

eu says: E lembras-te dessa história?

ela que pensa que eu escrevo says: Sei que falava de mãos bonitas e unhas vermelhas. E era inverno. Nessa altura não escrevias sobre bifanas.

eu says: Ahahah, ok, eu prometo fazer umas linhas sobre o Tetro.

ela que pensa que eu escrevo says: Mas o Tetro não fala de amor!

eu says: Não?

ela que pensa que eu escrevo says: Não.

eu says: Então eu prometo andar mais atento. Agora vê-se muita gente a partilhar dúzias de castanhas na rua, os cartuchos das páginas amarelas, o fumo dos assadores a fingir que é nevoeiro, os casacos fortes e os cachecóis à volta do pescoço, algumas mulheres ficam bem giras de boina, deve dar para umas linhas...

ela que pensa que eu escrevo says: João...

eu says: O que é?

ela que pensa que eu escrevo says: Dúzias de castanhas, João?

eu says: Ahahahah

domingo, 22 de novembro de 2009

Are you predator or do you fear me
Decerto que fazia frio em Janeiro de 1991 quando os F-15 levantaram voo. O ataque massivo. Eu lembro-me de me estarem a vestir para a escola, de manhã, ainda estava escuro, e lembro-me das imagens verdes do deserto e dos mísseis disparados dos navios. O resultado foi uma série dos discos mais bem inspirados da minha estante. Com o devido atraso, com a devida dedicação, até comprar, hoje, o último bilhete para a plateia — verídico.


Há seis anos que não temos um novo disco de Massive Attack. Os rapazes não acertam com a fórmula e dizem que já deitaram fora dois conjuntos de gravações. Não conseguem reinventar-se? Não há como sobreviver à cena trip-hop da Bristol dos anos 90? 100th Window já foi espremido à força? O que se ouviu de novo esta noite no Campo Pequeno não foi explosivo, houve narizes franzidos, e não são muitos os elogios a Splitting The Atom, o EP que anda para aí.


Os sorrisos rasgados, os gritos bem alto, as mãos no ar e muitos assobios, esses só se ouviram com os clássicos, revisitados pelo caminho mais próximo do que está na memória — Angel com Horace Andy em palco — ou vestidos de novo — Teardrop com Martina Topley Bird. Isto porque Karmacoma, que continua sendo simplesmente a melhor forma de terminar um concerto, e Inertia Creeps, que continua a incendiar, não entram nesta contabilidade. E Unfinished Sympathy não se repete.


A política continua presente. No fundo do palco lêem-se mensagens contraditórias sobre os gastos do parlamento britânico e o custo de medicamentos ou refeições no Quénia e na Somália, que valem o que valem a despertar mentes. Um grande ecrã de leds brancos, vermelhos, verdes, letras e números gigantes, Simão quer acabar a carreira no Benfica, Cantona teria batido no Henry, pequenas faixas de código binário, citações de Mandela, Bakunin, Malcom X, Milton, Toqueville, Aristóteles, coiso. O espectáculo visual é muito bom.


Del Naja sabe de onde vem e tem uma ideia de para onde quer ir, Daddy G parece um acessório. A electrónica fica-lhes muito bem, a guitarra distorcida muito também, a banda, caramba.


O Filipe, há uns anos, numa aventura que teve o nome palerma de www.xiribizi.net, escreveu num artigo que aquilo soava como o álbum do Tricky: tensão pré-milénio. Agora soa a tensão pós-milénio? É que parece. Filipe?


sábado, 21 de novembro de 2009

Cada vez mais duvido de cozinhas abertas e dos discos do Marvin Gaye quando está a chover
O Royale não tem pinta nenhuma. A música está sempre muito alta, os copos, os pratos e os talheres batem demasiado, não há esse aprumo no serviço. Ter um café metido xique, ou metido fixe, no Largo Bordalo Pinheiro, devia obrigar a provas de aptidão ou de elementar bom gosto. Podem dizer-me, mas tem aquela esplanada interior, um estrado em madeira, as mesas e cadeiras de jardim, as plantas, os fetos e outras coisas verdes que cobrem a parede, e o toldo extensível que protege quando chove, e as saladas que são boas. Não é suficiente. Charme e requinte não é ali.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Uma rapidinha na Almirante Reis
Em bom rigor foi na Pascoal de Melo, onde as árvores frondosas criam mais sombras e o trânsito sempre é menos caótico que na avenida. E porque há coisas que requerem algum recato. Como, por exemplo, comer um prego às onze da noite. A última coisa que se quer de acompanhamento, no entanto, é um madeirense a aculturar um brasileiro: às seis da manhã já ele estava a mueter um copo de teinto e uma buifana, só pra vueres o andamuento do homem, antes de abrir o cafué, tás a vuer? É, tem pêssuao qui trabalha cedo, né? É o meu caso, amanhã. Mas estou dividido entre isto, uma biografia de um político e umas belas remisturas de música popular portuguesa.


Isto à medida que um homem envelhece, ou antes, cresce, sente necessidade de corrigir algumas afirmações. Ora, havendo poucos sítios nesta cidade onde se coma ao balcão por um preço aceitável quando a noite já vai longa, ou admitindo que sou eu que conheço poucos, até à meia noite, às vezes uma da manhã, a Portugália desenrasca com um prego que, é preciso fazer justiça, não vem mergulhado no molho de manteiga e é bem gostoso. Quanto à bifana, mantenho o que disse, mas o prego com tudo é capaz de salvar vidas. Com tudo é com cebola, queijo, fiambre e um ovo estrelado bem passado. Geralmente é da vazia, mas pode pedir-se do lombo e pagar a diferença, e só não pode é fugir-se à fritura — prego grelhado? sim. aqui não! não? não! pronto, homem, ‘ta bem.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Sachertorte, ou Lisboa tem tardes de parecer uma verdadeira capital europeia
É o famoso bolo de chocolate austríaco que se come no café austríaco do Chiado por uns não menos austríacos quatro euros, quatro. Muda-se da Rua Anchieta para outro bairro e pelo mesmo preço saboreia-se duas fatias. Quer dizer, em bom rigor são dois pedaços, porque as fatias de Campo de Ourique não resistem à primeira garfada e logo se desmoronam em chocolate derretido e abundante de raspar o prato com o garfo, doce doce. Mas no austríaco não poderia ser assim. A única coisa que se desfaz é o charme do sítio: a climatização é mais fria do que na rua, o que deve ser razão bastante para a simpatia oscilar entre o gélido de uma das moças e o morno de outra, e são umas quatro, hoje domingo. A comida, sim, tem óptimo aspecto, wiener schnitzel, altwiener saftgulasch, um brunch digno do nome, as várias tostas e de tudo um pouco, o chef estudou cozinha, e as sobremesas têm mão de mulher, tudo bem por aí. E o bolo de chocolate, o sachertorte, não se desfaz porque veio do frio — uma frase de duplo sentido, escuso explicar. Duas camadas de bolo meio fofo entremeadas com chocolate fundido, cobertas com uma geleia que nos intrigou, escondida sob uma capa dura e fina de chocolate negro, a fatia servida com natas frescas, ao lado, sem açúcar. Banal. E muito caro. Dir-me-ão: não era esse, mas sim o outro, o bolo de chocolate de trufa. Humpf.


Não há nada que me chateie muito no Kaffeehaus a não ser a falta de mais Kaffeehaus pela cidade. Nas avenidas! Nos outros bairros! Cafés desenhados com bom gosto, planeados, sóbrios e contemporâneos, com os jornais do dia e as revistas do mês passado, nas paredes cartazes de teatros e exposições uns por cima dos outros, sofás em pele comprovadamente confortáveis, tectos altos e janelas grandes, abaixo os azulejos!, os alumínios!, os grandes balcões envidraçados!, mostruários de má pastelaria e muitos fritos, os negócios do pai, da mãe, do cunhado e da nora que vieram de Ponte de Lima — excepção à família do senhor Carlos Sá, ali à Calçada do Poço dos Mouros, pessoa de bem, ainda que lampião —, cafés onde se vai para ler, para conversar, para ver chover lá fora, para comer diferente uma vez por outra, uma especialidade, uma suposta regionalidade, com aprumo na apresentação, com critério na variedade, com gosto por ter um espaço diferente, e agora que até há imprensa de lazeres e consumos dedicada ao que é citadino e atenta ao que tem pinta, um café onde se vai para escrever no caderninho, para seduzir, porque não?, ou simplesmente porque é o primeiro domingo verdadeiramente cinzento daqueles de anoitecer às cinco da tarde e apetece não se afastar demasiado de casa, ameaça chuva, as visitas pendentes que tenham paciência, cheira a castanhas assadas e é tão bom andar a pé. Se não for pedir muito, realistas no preçário. Há vários joões no sítio onde trabalho e o meu recibo de vencimento não é esse, é o outro, ora vira lá. Pois.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

E o direito à liberdade, onde fica?
Não tenho especial simpatia pelos “Homens da Luta” mas a segunda detenção que lhes vejo em dois meses, sempre em contexto político, não deixa de me incomodar. Primeiro numa acção de campanha do PS para as legislativas, no Seixal, hoje na tomada de posse do Governo, no Palácio da Ajuda. Na altura não me recordo dos argumentos da PSP, mas hoje a polícia negou que tenha detido os dois humoristas: diz que os levou para a esquadra a fim de os identificar, porque no local não havia condições para tal, depois de terem passado trinta minutos a fazer isto, a uns bons cem metros do palácio, com o fundamento de que estavam a pertubar a cerimónia de um órgão de soberania. E até isto teve de ser a comissária a explicar à Lusa, porque os agentes no terreno não souberam fundamentar o acto de agarrar nos fulanos e os enfiar numa carrinha — nas mãos os bilhetes de identidade.



É realmente o único argumento possível, até tem um crime a condizer na lei, a “perturbação do funcionamento de um órgão constitucional”, a Presidência da República, e ainda se lhe poderia juntar outro, a “desobediência de ordem de dispersão de reunião pública”, com uma pitada de perturbação da ordem pública. Mas nada disto me satisfaz.

O Neto e o Falâncio chegaram ao palácio e foram mantidos à distância por um cordão policial que nunca desrespeitaram nem tentaram ultrapassar. O povo, querendo, podia chegar mais perto. Não perturbaram nenhuma ordem pública, porque tudo correu da forma mais ordeira. Não insultaram, injuriaram ou ofenderam ninguém. Não percebo como terão perturbado a cerimónia oficial — no vídeo da SIC ouve-se a cantoria dentro da sala com aquela clareza porque o microfone do repórter do exterior já está no ar — porque, se se ouvia alguma coisa no salão do palácio, que se fechasse as janelas, que estavam abertas — diz que a sala é pequena e faz muito calor... Não percebo como é que dois tipos a cantar e com um cartaz em punho é uma reunião pública, e por isso não percebo que tenham desobedecido à ordem de dispersão, como também não percebo por que raio terão de dispersar se até já estão a cumprir a distância a que a polícia lhes pediu que guardassem. Não percebo.

Onde é que está o direito à liberdade de expressão? Assim não.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Já chove
Sei que o Outono chegou quando o edredon volta à cama. É que hoje acordei todo enrolado no lençol e não me lembro de ter tido algum pesadelo ou ter sonhado com saudades. Frio, portanto. Quando era miúdo dormia agarrado a um guardanapo de pano a que chamava, dizem-me, o “minapo”. Aliás, não só dormia com ele como o levava comigo para todo o lado. Coisas de crianças. Hoje ando mais com qualquer coisa para ler, uma revista, um jornal, um livro de bolso, de que puxo no metro ­— e está a chegar a altura de andar mais de metro, porque com a chuva arrumo a bicicleta — ou num café, e só não leio no bar porque nem sempre apanho o cadeirão à entrada ao lado do candeeiro de pé alto. No outro onde tenho passado mais tempo por estes dias não se consegue, não tem luz suficiente.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Aquele beijo na testa
Diz que o italiano se encontra “bastante desiludido e agastado com o nosso país” e por isso decidiu abandonar Lisboa. Eu digo que foi a cena dos beijos na testa que não pegou.

Da única vez que fui ao Luca o Luca Manissero, o gerente, um tipo assim alto e careca, bem-parecido, agarrou-me na cabeça com as duas mãos, disse “ma que cosa!” e pregou-me um chocho na testa. Achou que eu estava com cara de poucos amigos por estar esperando há mais de quarenta minutos pela mesa reservada de tarde, chateado apesar de ter três mulheres bonitas comigo. É que eu não gosto de esperar.

“O conhecido restaurante italiano Luca surpreendeu tudo e todos ao fechar as portas na semana passada, dia 22.”

domingo, 27 de setembro de 2009

2346 – 4453 quilómetros e assim de repente já acabou – dias, 9, 10, 11, 12, 13 e 14
Esqueci-me de dizer que a carqueja, do arroz do Cortiço, em Viseu, é uma planta? De flores amarelas, muito comum no norte do país, e não um galeirão, que é um passarito? Esqueci-me. Às vezes acontece. Como aconteceu que o bife à Vianna, do café Vianna, em Braga, desde 1876 a servir bifes duros como sola, foi uma desilusão de todo o tamanho – em cinco escapou um? É muito para ser azar, e aconteceu. Como aconteceu não ter conseguido fazer o que queria, escrever notas diárias da campanha eleitoral para as eleições legislativas. Aconteceu que o ritmo da campanha não deixou espaço para mais, que foi como saí do Silvas, ainda na Bracara Augusta: sem espaço para mais fosse o que fosse das iguarias que o tipo tinha para oferecer. Funciona assim: sentamo-nos numa cadeira ao balcão em forma de ‘u’ e rendemo-nos à variedade de pratos que o senhor do outro lado nos apresenta e até nos dá a provar, deixando um pratinho de bacalhau com natas, mas com poucas, para nos entreter enquanto esperamos pelas trouxas de peru com puré e couves de Bruxelas, ou pelas almôndegas, ou pelo bacalhau assado em tomate e cebola, ou pelas lulas recheadas, ou pela vitela estufada, ou pelos filetes de pescada. Ao fim de dois pratos já só nos rimos e a tragédia, bracarense, chega com as sobremesas, todas dispostas no balcão, dispensando apresentações. Confia em mim?, pergunta sorrindo, sabedor da consolação que já sentimos e daquela que ainda vamos conhecer. Estou nas suas mãos. Pudim de chocolate com baba de camelo, tarte de framboesa e pudim Abade de Priscos, tudo caseirinho. O Silvas original mora na Avenida da Liberdade, no centro comercial Granjinhos, e o irmão maior fica ali à Avenida Central, próximo do McDonalds – coisas do destino. Como a fotografia de mim, da Rita e do Sílvio, o chef, todos abraçados, retrato que já deve estar na wall of fame d’O Pote, onde tudo é de leitão. Quis o destino que ali fossemos parar e que a nossa fotografia fosse toda olheiras e demasiado brilho na pele, para não lhe chamar sebo, mas enfim, dias muito longos. O homem trata muito bem jornalistas e faz questão da fotografia, porque a melhor publicidade é a que passa de boca em boca. Era muito tarde, fez-nos uma mesa, pagámos uma pechincha por entradas intermináveis, leitão que não acabava, sobremesas variadas, vinho verde e cafés, muitos. Fica na estrada do Louriçal a caminho de Pombal, saindo da A1. Quando virem a placa grande e azul a apontar para o ‘manjar dos leitões’, ou lá o que é, podem parar e virar a cabeça para a esquerda – não vale ir mais longe. A não ser que se seja do Bloco de Esquerda. É que eles querem mudar o mundo, como cantaram nas arruadas do Chiado e da Cedofeita.

Andei por Marinhais, Riachos, Santarém, Coimbra; Lousã, Coimbra x3; Esposende, Braga, Guimarães, Braga; Barreiro, Lisboa (Chiado), Barreiro; Cacia, Aveiro, Santa Maria da Feira; Porto (Serralves), Porto (Cedofeita), Braga, Porto (Coliseu).

Campanha – um piqueno e médio balanço

A campanha do Bloco decorreu sem sobressaltos e conforme o pretendido. Na primeira semana o discurso incidiu no programa do partido – “leiam-no e percebam por que é que Sócrates não gosta dele”, dizia Louçã nos comícios – para depois se dedicar aos eleitores indecisos – “somos a esperança” – e finalmente acabar com o apelo ao “voto com utilidade para derrubar a maioria absoluta socialista”, dramático, “ou a esquerda ou a maioria, ou o Bloco ou a maioria”.

Nestes catorze dias houve momentos difíceis e outros maus, como as repetidas explicações a que Louçã foi obrigado, em comícios e na rua, sobre a proposta do fim dos benefícios fiscais nos PPR – teve até um encontro crispado com um sujeito numa arruada na Moita. Ou a recusa em falar com as peixeiras em Alcobaça, que caiu mal nas televisões e que soube que nem ginjas ao Paulo Portas. Ou uma arruada na Moita que não durou mais de cinco ou dez minutos porque não andava ninguém pela praça central ao final da tarde, e que obrigou a regressar, dias depois, numa noite de feira e festa da cidade, sem hipótese de falhar o banho de gente. Ou a incursão pelo Alentejo, por Serpa, Rio de Moinhos e Almodôvar, com iniciativas de pequeno alcance que podem até captar votos nas freguesias e alimentar os anseios das estruturas regionais do partido, mas que têm pouco impacto na votação e nenhum na comunicação de massas além da mensagem de que o Bloco vai onde nenhum governante ou grande partido foi. Ou o penúltimo dia de campanha, em Aveiro, com o partido escondido das pessoas numa escola em Cacia e numa sessão de esclarecimento para estudantes na universidade.

Houve, igualmente, bons momentos, como o grande comício do Coliseu do Porto, com mais de mil e quinhentas pessoas, este já sob o mote “estamos prontos”, e os de Coimbra, Braga, Setúbal, Santarém e Faro, capazes de arregimentar muito boa assistência e onde o Fernando Rosas, o Luís Fazenda e o Miguel Portas brilharam. Como o momento em que, de forma taxativa e clara, fácil de perceber ao povo, Louçã disse um rotundo “não” a um entendimento com o PS, perante quinhentos militantes, sem os rodeios de uma semana de campanha passada a responder aos jornalistas que “o Bloco não alinha com políticas das quais discorda”, o que lá em casa ao jantar na televisão é o mesmo que nada. Como as intervenções do jovem candidato por Santarém, José Gusmão, sobre quem já escrevi, que vai revelar-se um óptimo parlamentar.

Os melhores momentos políticos da campanha foram, para mim, alguns discursos do Rosas e do Fazenda. Entusiásticos – até em demasia, como alguém haveria de me comentar – e ideológicos, bem claros: não abandonámos os ideais revolucionários, de mudança social, mas estamos abertos à transformação; isto não começou com as eleições nem vai acabar com elas, o trabalho do partido é a prazo, para organizar um novo campo social que sirva de base a um poder político de esquerda, socialista, alternativo, organizar as esquerdas da esquerda.

O líder do partido teve de se encarregar da mobilização das tropas, mais da forma que do conteúdo, e conseguiu-o. O estilo colheu, o discurso da justiça versus as injustiças que entram pelos olhos de todos também colheu, e as principais propostas apontaram directamente a franjas de eleitorado ávido de atenção ou desiludido com o Governo. A reforma por inteiro e sem penalizações após 40 anos de descontos; novos modelo de avaliação e estatuto da carreira docente; revogação do código do trabalho; um imposto sobre as grandes fortunas para financiar a segurança social e as pensões a convergir com o salário mínimo; ensino gratuito em todos os níveis. Isto é para os trabalhadores, para os professores e outras classes profissionais agastadas com o Executivo, para os jovens que estão a entrar na vida activa e para os estudantes, para os velhotes que vivem com pensões baixas. No essencial nem é preciso ir mais além e olhar para o casamento homossexual, ou para o fim das parcerias público-privado na saúde, ou para a reprivatização da parte da GALP vendida no final dos anos 90, ou para a tributação de todas as operações em bolsa, ou para um novo escalão de IRS de 45 por cento, ou para a saída de Portugal da NATO, ou para a proibição dos despedimentos nas empresas que apresentem lucros, entre outras. Já estou como o Louçã: leiam o programa, ele deixa poucas dúvidas. Eu também tenho poucas.

domingo, 20 de setembro de 2009

832 – 2436 quilómetros e o carro até já é outro – dias 4, 5, 6, 7 e 8
Arroz de carqueja é como se chama em Viseu ao arroz da cabidela que em vez de galinha tem vitela. No Cortiço é muita bom. Como os filetes de peixe-gato com migas de broa, couve, grelos e feijão frade, ou o pudim caseiro, caseiro mesmo. Já não me recordo em que dia foi, mas foi ao almoço. Não fomos foi ao bacalhau podre apodrecido na adega, com pena minha. Foi um bocado a correr. Como tem sido sempre, aliás. Até durmo a correr. Como no dia de Viseu, onde cheguei às cinco da manhã e acordei às oito com a redacção a ligar: “já viste os jornais?”

Estou tão cansado que não consigo escrever o que quero nem como quero. Quero, por isso, dizer apenas que:

1. O José Manuel Fernandes destruiu o que restava do Público; que o sillygate, os “disparates de Verão”, não era assim tão silly; que o senhor Cavaco que se queixava das “forças de bloqueio” andou a cozinhar uma e, até ver, deu cabo de uma recandidatura e ajudou a que Manuela Ferreira Leite tenha uma derrota retumbante nestas eleições; que ando a pensar em que raio de relação entre poderes é esta, com um Presidente a combater directamente nos jornais um Governo; que ando aqui numa encruzilhada deontológica devido à conduta do DN – não se divulgam as fontes do vizinho, diz-me a minha escola, mas o sacana do caso tem relevância política.

2. A campanha entre quem disputa o Governo está a passar-me ao lado. Não vejo telejornais, não ouço mais do que dois noticiários na rádio, não leio mais do que na diagonal as quatro páginas de campanha que dois diários publicam.

3. Por este lado a campanha anda morna, com o discurso repetitivo dirigido ao eleitorado-alvo bem identificado e assente na grande dicotomia “justiça vs os malandros”; com acções de campanha que, não obstante o ritmo endoidecedor, têm sido mal enjarocadas – isto não existe, mas toda a vida o ouvi – e que só espero melhorem quando se subir a norte definitivamente; anda com poucos reforços – o Miguel Portas lá apareceu hoje e o João Semedo lá foi dizer ontem ao Porto que querer maior justiça não é ser radical – e o Louçã já demonstra cansaço.

4. Ao menos agora consigo ouvir-me pensar quando vou a cento e quarenta na auto-estrada: dois mil quatrocentos e trinta e seis quilómetros depois; com Tires, Arrábida (de helicóptero), Moita, Setúbal, Serpa, Rio de Moinhos (Aljustrel), Almodôvar, Faro, Lisboa, Moscavide, Lisboa, Viseu, Porto, Alcobaça, Sintra e Moita com bandeirinha no mapa, agora ando em campanha com uma carrinha Citroen C5, um hino à insonorização.

5. Foi no Porto que tive o momento de loucura da campanha, que acontece a todos e geralmente bate certo com a metade da jornada, momento de insanidade, exaustão, explosão e regresso à normalidade depois de dormir, por uma vez que seja, durante sete horas.

6. Falta metade.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Podem cancelar a campanha, Sócrates já os esmiuçou a todos
Tou a brincar, a campanha pode seguir. Mas que depois da entrevista ao Ricardo Araújo Pereira o Sócrates está lançadíssimo para uma vitória minoritária, isso está. Sócrates riu, Sócrates esteve sereno, Sócrates teve graça, Sócrates foi humano e falou da sua vida e de como nos bastidores da alta política um fulano como o Berlusconi lhe contou que em tempos foi alfaiate, confidência cuja partilha nos aproximou daquele homem que tem filhos, não levou gravata, e se sente — como é que ele disse? — privilegiado por chefiar os destinos do país. Está ganho! A não ser que a Manuela consiga rir como riu o Sócrates, as eleições estão no papo. Depois do debate com o Louçã, ganho em toda a linha, e depois das sucessivas trapalhadas da Ferreira Leite, sobretudo no seu discurso, que a senhora tem muita dificuldade em se exprimir e explicar, só faltam uns quantos malhanços a sério e à antiga nos comícios — venham de lá os Soares filhos, os ASS, os Vieiras da Silva, os Coelhos ou outros que tais — e a coisa está muito bem encaminhada. Caso contrário, se a Manuela se desfizer em gargalhadas, eu voto é no Ricardo para chefe do Governo.

373 – 508 quilómetros, Évora, Lisboa – dia 2
O arranque oficial de campanha teve promessas muito bem dirigidas. Na Sala Tejo do Pavilhão Atlântico, onde dias antes o PS havia dado um jantar bem orquestrado com o pessoal todo sentadinho nas mesas, o Bloco assegura que meteu mais de duas mil e quinhentas pessoas e que teve de recusar inscrições quando percebeu que não havia espaço para montar mesas para todos. Por isso metade ficou sentada e a outra metade teve de se contentar com o buffet volante. Ou então foi uma bela maneira de encher aquilo e criar a ilusão de óptica: a malta em pé e de bandeira colorida em punho é sempre mais malta que a malta sentada vestida de cores escuras tipo gala. Ana Drago, Luís Fazenda e Francisco Louçã não evitaram repetir que a sala fora grande para o PS e pequena para o Bloco. Adiante.

No Pavilhão Atlântico a mensagem foi muito clara: o Bloco quer crescer e para isso precisa dos socialistas descontentes com o Governo e dos indecisos com o voto em Sócrates. E porque nessa franja de eleitorado estão os professores, os jovens trabalhadores e os mais pobres, do palco atiraram-se compromissos para os primeiros dias da nova legislatura: ouvir.

Francisco Louçã repetiu a frase “estamos prontos”, que ainda não voltou a usar. Prontos para protagonizar o que pretendem que seja a maior subida dos votos à esquerda, de preferência no Bloco.

Já a frase da campanha, “justiça na economia”, serve para tudo. Malhar nos BPNs e na falta de transparência do sistema financeiro; criticar o offshore da Madeira que, dizem, custa 400eur/ano por contribuinte em receita fiscal perdida pelo Estado; clamar contra as injustiças dos prémios de gestão dos administradores de empresas que aumentam salários de trabalhadores a um ou zero por cento; e o que mais vier à rede. Tem sido todos os dias, os outros criam injustiças e eles querem repor a justiça. Se o Louçã ainda usasse o blusão de cabedal da primeira campanha era um verdadeiro Michael Knight — era Knight ou Night? Puta da memória…

508 – 832 quilómetros, Lisboa, Palmela/AutoEuropa, Santarém, Entroncamento – dia 3
O Bloco ainda vai voltar a Santarém. Já lá esteve duas vezes e a aposta é forte. Percebe-se. O Entroncamento foi onde conseguiram o melhor resultado há quatro anos, com 12,8 por cento dos votos, e onde nas Europeias subiram para 20, passando do partido menos votado no distrito para o terceiro lugar, com o dobro dos votos de então.

O cabeça de lista — e muito provável deputado — é um jovem quadro do partido, o economista José Gusmão, de 33 anos, irmão do bastante conhecido e antigo dirigente Daniel Oliveira. Escreve no blogue Ladrões de Bicicletas. Foi assessor de imprensa, tornou-se assessor político, é um dos homens fortes no aconselhamento de Louçã. O candidato já domina o discurso — pudera, é ele que o escreve — e a técnica, fala com o maior à vontade sobre desemprego e sobre injustiça social, e malha convicto e desembaraçado nas polémicas do dia-a-dia: Ferreira Leite, Jardim, o PS que elege o Bloco como inimigo número-um. Um promissor parlamentar, eu diria.

Quando puder meto aqui umas fotos e falo sobre roupa interior
Onde é que se janta no Entroncamento às oito e doze da noite? Na Golegã. Dito por um nativo: não é fenómeno, aqui não há mesmo nada. Lá fomos ao Café Central da que deve ser a única cidade portuguesa com uma rede de cavalovias, em vez de ciclovias, e onde o meio bife à central parecem dois. De vaca, frito, sem requintes de cervejaria cara, e não me refiro à apresentação, porque não tenho nada contra travessas de aço-inox, não adianta mesmo pedir mal passado porque vem sempre igual — éramos sete, sete vieram iguaizinhos. Fácil de cortar, suculenta, saborosa, a carne não se desfaz na boca como um lombo no Patanisca, em Torres Vedras — rua 9 de Abril n.º 27 fecha ao domingo 261000534 —, até porque a peça é cortada bem mais fina, mas é bem boa. Sem o molho de mostarda e manteiga também ia. Se aprenderem a substituir as batatas fritas e o arroz branco por esparregado — pois… — podem ter a certeza que ficam aí com um petisco e romarias para jantar, senhores. Pensem nisso. Como eu, que vou pensar em fazer um piqueno e médio roteiro gastronómico da campanha. Tenho é de jantar e almoçar. Coisa rara. É que estes dias têm servido para tentar aprender a conciliar ritmos de trabalho e viagem, mas sem grande sucesso, sou sincero. Nem para escrever sobra tempo e a Joana ainda se queixa que eu não twitto nem digo no Facebook por onde ando — o esforço de hoje para estas linhas foi titânico e amanhã afasto-me de vez de Lisboa e começam as longas tiradas, pelo que não esperem mais até lá para quarta ou quinta-feira. É que também estou a ganhar coragem para falar sobre um problema com umas cuecas que comprei.

domingo, 13 de setembro de 2009

0 – 373 quilómetros, Tancos, Abrantes, Évora – dia 1
Eu até escrevia um título mas estou demasiado irritado com o portátil PC com que tenho de trabalhar, e que duvido chegue inteiro ao final da campanha – usem um Mac uma vez na vida, só vos peço isso…
Sócrates vai dizendo que não se candidata contra ninguém e que quer é resolver os problemas do país. Ferreira Leite diz-lhe cara-a-cara que as diferenças que os separam são insanáveis e que não há hipótese de entendimento. Louçã começa a fazer contas à vida, consciente do peso que o Bloco de Esquerda terá num futuro arranjo governativo que – sabemos desde há pouco – não passará por um bloco central, e quando as sondagens dão a vitória ao PS, a maioria dos votos aos partidos da esquerda e o BE como terceira força política.

Cauteloso, como as circunstâncias assim obrigam, esta noite, em Évora, Francisco Louçã lá foi dizendo que um Bloco mais forte, sendo fiel à esquerda, vai ajudar a todas as decisões e que isso é que é governabilidade. “O Bloco de Esquerda é governabilidade, é seriedade e é responsabilidade” mas, lá está, sempre sem defraudar as expectativas do seu eleitorado. Admite viabilizar propostas no Parlamento, com acordos pontuais com o partido que ganhar as eleições e for convidado a formar Governo – que Louçã crê que será o PS, embora não o diga – mas com uma condição: as medidas têm de ir ao encontro do que são as políticas do Bloco. Suficientemente ziguezagueante? Lá está.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Bom bom acaba por ser a fotografia que a RTP pôs online (Elvis ou Louçã?)
A expectativa era grande. O Bloco de Esquerda procura capitalizar o descontentamento de algum eleitorado do PS e os socialistas precisam sacudir essa ameaça bloquista e convencer esses eleitores de que o Bloco é um perigoso feudo de radicais idealistas e irrealistas. No debate desta noite José Sócrates recuperou algu
ns votos mais mecânicos e Francisco Louçã saiu de estúdio menos capaz de agarrar socialistas à beira do abismo.

podem ver o debate aqui

Agitando algumas das principais propostas do BE, como a nacionalização da banca ou do sector energético, o fim dos benefícios fiscais dos PPR, ou o fim das deduções, em IRS, das despesas com educação e saúde, Sócrates conseguiu demonstrar o radicalismo dos bloquistas e pôr a claro as diferenças ideológicas entre os dois partidos, ou o carácter ideológico mais vincado do BE, se preferirem. Porque a partir do momento em que Louçã explica que propõe o fim dessas deduções fiscais porque defende, a montante, sistemas de saúde e ensino gratuitos, pelo que não há, então, como deduzir despesas, as coisas ficam claras. E capazes de assustar suficientemente um eleitor do PS descontente com este Governo para que lhe passe a indecisão e não deixe de votar nos socialistas. A estratégia vingou, Sócrates saiu acudindo à classe média que o BE quer alvejar.


Louçã não resistiu a enveredar pelo caminho mais fácil, e mediático, de apontar baterias aos ricos e aos negócios, tudo requentado e demasiado ouvido, algo demagógico, que até pode ser verdade mas para a qual já não há paciência: levou ao debate os contentores de Alcântara, falou de mais uma auto-estrada, recordou a compra de parte da GALP por parte de Américo Amorim e José Eduardo dos Santos, e com isso não vendeu sequer o seu peixe. Nem obrigou Sócrates a explicar, de uma vez por todas, a quem vai beneficiar a política de grandes investimentos públicos, por exemplo.

Sócrates nunca foi obrigado a comprometer-se com o que quer que fosse e Louçã viu-se encostado à parede com as propostas que definem um pouco da sua base ideológica, que sem a máscara do protesto podem não agradar a alguns descontentes e indecisos. Valeu por esta discussão que, não sendo programática, é, para mim, definidora: as ideias. Mesmo assim eEsperava maior debate em torno de argumentos para caçar votos ou minimizar fugas de eleitorado, que não houve. Faltam 19 dias, está tudo em aberto.


:::: Nota de intenções ::::
Até às eleições legislativas tentarei partilhar diariamente uma breve nota de campanha. Poderá incidir na forma ou no conteúdo. Será sobre o que calhar e consoante o que acompanhar. Uma apreciação pessoal e descomprometida, para os amigos. Até para que saibam por onde ando e porque não me verão em Setembro. A única coisa por que milito é o voto, num, noutro, em todos ou em branco. A determinada altura terei de me cingir ao partido que vou acompanhar, por isso não estranhem que fale sempre do mesmo. E por agora é só isto.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Não é giro e não é campanha: é um atestado de incapacidade ao candidato
Sei que a técnica é antiga, mas não é por isso que deixa de ser idiota. No parlamento chamam-lhe vozearia, mas como todos vestem fato e a câmara faz eco, tem outra solenidade. Na rua, em campanha eleitoral, é só palermice.

A pergunta do repórter pode nem ser incómoda, mas também pode; até pode nem ser idiota, mas também pode; como pode apenas ter sido mal percebida, mal formulada, mal recebida, mal colocada, ou até e simplesmente mal ouvida, qualquer coisa serve. É que perante a hesitação do candidato na resposta a uma pergunta feita numa acção de rua, a jota partidária começar por trás a gritar “PAR-TI-DO! PAR-TI-DO! PAR-TI-DO!” para dar margem de fuga ao interrogado, é pouco sério. Além de que, acima de tudo, é um atestado de incapacidade que os apoiantes passam ao seu candidato.


OUVIR

E sabendo que alguns dos jotas até andaram a frequentar uma acção de formação de jovens quadros políticos, a única do país, até é triste. Como é infeliz que alguns assessores riam de contentamento pelo boicote. Espontâneo, dirão. E eu acredito — não dá mesmo para mais, não é? Depois todos lamentam o baixo nível dos políticos e da política.



:::: Nota de intenções ::::

A partir de hoje e até às eleições legislativas tentarei partilhar diariamente uma breve nota de campanha. Poderá incidir na forma ou no conteúdo. Será sobre o que calhar e consoante o que acompanhar. Uma apreciação pessoal e descomprometida, para os amigos. Até para que saibam por onde ando e porque não me verão em Setembro. A única coisa por que milito é o voto, num, noutro, em todos ou em branco. A determinada altura terei de me cingir ao partido que vou acompanhar, por isso não estranhem que fale sempre do mesmo. E por agora é só isto.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Agora que penso nisso, passei uma semana sem beber leite
Diz que foi o Dom Dinis que mandou construir o castelo de Marvão. Percebe-se. O rei lavrador nasceu num planalto, em Santarém, e sabendo do alto de um morro em granito a mais de oitocentos metros acima do nível do mar não hesitou em ali erguer a fortaleza. Ou então foi para travar a mania que os de Castela tinham de vir para este lado da fronteira, como se isto fosse deles. É que Marvão está a meia dúzia de quilómetros de Espanha e dava um excelente posto de vigia, até perder de vista. De resto, ali próximo passava a estrada romana que ligava Cáceres a Santarém, e no sopé do monte passa o rio Sever e para o atravessar tinha de se pagar. A Portagem é hoje a aldeia onde se compra o jornal, porque em Marvão não há tabacaria. Nem pastelaria. Nem mais de cento e cinquenta pessoas. Mas é a vila mais alta do reino de Portugal e é a sede do concelho. Concelho? Dom Dinis não teria imaginado isso, nem que a albergaria na praça central da vila fosse chamar-se El Rei Dom Manuel, o bem-aventurado. Uma facadinha nas costas, portanto. É por estas e por outras que simpatizo com a ideia de uma reforma administrativa do território, que nada tem que ver com a semana que passei em Castelo de Vide. Acho que há presidentes de junta a mais. É só isso. Porque das gentes de Marvão não tenho a menor queixa. Ora veja-se.

Assim que perguntei por uma lavandaria onde deixar algumas camisas a engomar a dona da albergaria disse logo deixe estar que eu trato disso. E à noite lá estavam as quatro peças direitinhas e impecavelmente penduradas em cabides no roupeiro do meu quarto. A única coisa de que me esqueci foi que os alentejanos não dão ponto sem nó e por isso fui apanhado de surpresa ao segundo dia, de manhã, quando ia a sair: olhe que o homem gostava de falar consigo, disse-me o marido da dona da albergaria. O presidente da câmara passou por aqui, viu o carro da rádio estacionado e pensou logo que você podia dar uma ajuda. Em quê? É que vamos ter aqui a primeira feira do café, e há tradição nisto, porque estamos próximos da fronteira, contrabandeava-se café, e depois também houve aqui duas torrefacções, é tradição, acredite João Pedro. Eu acredito, eu acredito, mas não posso prometer, sabe que essas coisas não são comigo, e o homem já me tratava por João Pedro. É que a gente precisa de divulgar isto. Pois, pois. Mas vá lá falar com ele, o presidente tem um restaurante lá em Castelo de Vide, se calhar você ia lá almoçar com ele e coiso. Pois, pois, eu estou ali em trabalho, o tempo não é muito, mas logo se vê o que se arranja. Pense lá nisso. Vou pensar, vou pensar.

Ao sexto dia já via tudo laranja. O pôr do sol era bonito porque era laranja. Ao pequeno-almoço bebia sumo de laranja. À sobremesa do jantar perguntava se havia torta de laranja e acabava por comer encharcada de amêndoa só porque era cor de laranja. As moças — as que tinham mais de vinte aninhos — ficavam bem de laranja. Só já não podia é com os laranjinhas. Por isso é que resolvi apagar um parágrafo enorme que escrevi sobre os seis dias que passei com eles. Não sobrou nem uma vírgula. Como me parece não ter sobrado um minuto de jeito. Não sei que raio aconteceu, mas o tempo passou depressa demais. Nas horas livres fui a Portalegre, mas não sei o que fiz, fui a Nisa, mas consegui comer na pior taberna da vila, fui às ruínas da cidade romana de Ammaia e deparei-me com um triste espectáculo de abandono e falta de zelo, apesar dos dois euros que pagamos à entrada, vi Castelo de Vide e vi Marvão mas foi como em Portalegre, não sei o que fiz. Já nem sei onde guardei a factura do restaurante Sever, que já se está a ver onde fica, de que agora precisava para escrever sobre o almoço que daria o título a este texto. Caraças. É que não me recordo do que comemos. Javali à casa, parecido à carne de porco frita à portuguesa, mas mais rijo — o javali é um bicho duro, tem aqueles dentes salientes. Dentes salientes não funciona lá muito bem. Mas fica assim. Arroz de lebre, com um pedacinho a mais de sangue e a menos de limão, mas bem guarnecido de carne, suculenta, saborosa, e o arroz malandrino. Veado com castanhas, que na verdade é gamo, o melhor prato de todos. Cortada às fatias, a carne é um pouco gorda, mas o sabor é intenso. As castanhas congeladas e sem gosto deviam obrigar a adiar aquilo tudo para o Outono. Todos ganhavam. Ainda deixei a sugestão ao moço que nos serviu, que me retribuiu com a melhor sobremesa da casa. O tecolameco serve-se à fatia. A base é de amêndoa, o resto é ovo e açúcar e é divinal, porque no final de contas nem é muito doce. A sério! Mas, pronto, reconheço que à distância de dias e sem os meus apontamentos não consigo melhor. Costumo rabiscar umas notas de prova nas costas do papelito e sem factura agora nem me vão pagar a refeição. Estou duplamente lixado. Um bocado como fiquei com Óbidos.

Terminada a missão alentejana, tarde e a más horas, achei por bem oferecer-me um jantar de faca e garfo na outra ponta do país. Ou quase, vá. Então, depois de dormir uma semana dentro de muralhas, e de passar os dias numa terra de castelo, rumei a Óbidos, que também está circunscrita às paredes da fortaleza. Só que em Óbidos não se janta. Só se ginja. Em todo o lado, que também não é muito lado, porque aquilo é mais pequeno que Marvão, há uma banca ou uma casa que vende ginja, em copo de plástico, de barro ou de chocolate. Se for de plástico custa um euro, se for de barro custa mais cinquenta cêntimos e pode trazer-se a canequinha pintada de azul e branco, se for de chocolate custa o mesmo euro e pode comer-se. Que era precisamente o que eu queria. Depois de dar uma volta inteira à vila decidi ir ao posto de turismo. Sabe, nós não podemos recomendar, mas temos aqui um mapa com os restaurantes. Que são catorze e a grande maioria fecha ao domingo. Que é uma atitude que eu subscrevo e aconselho. Em Óbidos, onde ao fim-de-semana chegam autocarros cheios de velhotes ou de crianças, e carrinhas com famílias de quatro, mais espanhóis que portugueses, mas também por lá ouvi franceses, italianos, e uma francesa em particular, mas já lá vamos, em Óbidos, dizia eu, o melhor que o proprietário de um restaurante tem a fazer em pleno Agosto é fechar as portas ao domingo. Descanso semanal do pessoal. Abra à segunda, senhor empresário. Mas feche ao domingo. Ao domingo, afinal, aquilo só está cheio, mas não se passa nada. Como na sua cabecinha: não se passa mesmo nada.

Acabei no Conquistador. Porque, no fundo, esta semana foi dedicada aos homens com uma missão. Da mesma maneira que o Dom Dinis ordenou a construção do castelo de Marvão, da mesma maneira que a Manuela está a “lutar” — precisamente, com aspas — para chegar a chefe de governo, da mesma maneira que os jotinhas foram aprender a ser jotinhas e cenário de mini-tele-comícios ao jantar, o fulano que está à frente do Conquistador, o Afonso, têm uma missão: fazer com que não se volte lá. É caro — mas isso, em abono da verdade, são todos, para turista ver — e banal. Azeitonas acabadas de sair do frigorífico e com sal grosso ao molho? Chouriço tipo corrente assado? Uma posta baixa de bacalhau no forno? Batata a murro por esmurrar? O que safou a Louise e a amiga foi eu estar ali em missão. As francesas são sempre assim: andam aos pares e há a Louise e a amiga, que é a simpática. Esta tudo dito. Lá lhes pedi as sardinhas, as batatinhas, a salada de tomate com cebola e orégãos e um vinho verde fresco. A Louise tinha o cabelo castanho claro acima dos ombros, a pele branca com umas poucas sardas, o nariz fino e arrebitado, os olhos verdes, as mãos delicadas e as unhas sem verniz, que isto de andar de mochila às costas não perdoa, digo eu, e vestia um vestido verde, curto, acima do joelho, pois claro, mais de trinta e cinco graus à sombra, e estava a descer desde o Porto, aos pedaços, para fazer render as semanas. Ainda disse ao fulano, trate bem as moças!, mas aquele sorriso que me atirou não augurou nada de bom.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Com esparregado?
Quando era puto eu não gostava de esparregado. Julgava eu. Quando era puto eu não sabia nada de comidinha. Hoje sei pouco, mas sei o suficiente para não dispensar esparregado. E por mim comia esparregado com tudo. Como as coisas mudam. Tenho quase mais dez quilos do que tinha há quatro anos. Mas isso não tem nada que ver com as minhas caminhadas de uma hora e picos até casa. Faço-o porque a cidade é bonita, porque ando a passar no Palladium todos os dias à procura da Monocle, que este mês traz um artigo sobre Lisboa, porque as noites estão amenas, e porque ando a ver quando é que me apaixono por uma turista linda e de pernas longas, daquelas que vejo no caminho de vez em quando, a descer a avenida do Tivoli ou do Sofitel. É que faz agora duas semanas que vi uma estrela cair e pedi um desejo, logo, nem demorei mais de trinta segundos a pensar, tem de ser logo de seguida, e eu pedi.


Para fazer esparregado começa por se ferver os espinafres, que é diferente de cozê-los, depois de os comprar no mercado ao sábado de manhã. Não confio nos espinafres do Pingo Doce ou do Continente, e do A. C. Santos simplesmente não confio em nada que não esteja embalado — sou um gajo desconfiado. Deita-se os espinafres fervidos e bem escorridos num refogado de azeite e alho, que é estrugido acima de Leiria, o alho cortado fininho e apenas alourado, que há poucas coisas piores do que o sabor de alho queimado. O cheiro a alho nas mãos suporta-se. Mexe-se os espinafres e junta-se farinha e leite a olho, sempre mexendo, até ganhar a consistência pretendida, e não esquecendo o sal e a pimenta, com parcimónia, que esparregado salgado não tem piada e doce demais também não. Se vos disserem que na vez do leite pode juntar-se natas, soltem uma gargalhada forte e depois metam uma cara séria e um olhar impiedoso. Se vos disserem que é costume deitar-se umas gotinhas de limão, levantem só o sobrolho — é uma questão de paladar.


No H3 pode comer-se hambúrguer no prato com esparregado, em vez do arroz ou das batatas fritas que são às rodelas e cheias de gordura, para mostrar que não vêm do pacote. O H3 é aquele restaurante de hambúrguer gourmet, no que tem de restaurante uma casa que está nos centros comerciais de norte a sul do país, e que se apregoa not so fast food. O hambúrguer é alto, da grossura de um dedo e meio, dos meus, e diz que são duzentas gramas de carne de novilho, que vai à chapa no ponto que o cliente desejar. Para mim é médio, e foi mesmo médio, em cheio, o exterior durinho sem estorricar, o interior cor de rosa sem sangrar. Pela consistência do hambúrguer, que não se desfez ao cortar, por oposição àqueles que fazemos em casa com carne picada ou que compramos feitos, frescos, no supermercado, que ao primeiro encosto da faca já se vão esboroando, pela consistência o hambúrguer é decerto processado industrialmente — ok, não há milagres —, mas não se pense que isto é mau. E esta frase foi alterada, porque eu tinha escrito certamente processado industrialmente, mas depois achei que ficava mal.


O hambúrguer vem com duas fatias de queijo amarelo por cima, um borrão de ketchup e outro de maionese com sementes de mostarda, ao lado, e um tufo de cebola frita com qualquer coisa, que aquele docinho não é genuíno. Este é o sexto da lista, o H3 Cheese. Os outros são todos afogados em molhos de cogumelos, à portuguesa ou holandês. O esparregado pareceu-me congelado, algo líquido, mas, como dizem os próprios, é feito de espinafres. A limonada, demasiado doce, deixou-me na dúvida — espremida ou da garrafa? Para esclarecer na Rua Nova do Almada, no casinhoto abaixo do Tribunal da Boa Hora — não se deixem intimidar pelas sandes de panado, ali há mesmo li-mo-na-das. Para rematar, nada de sobremesas, porque se é para dar cabo de tudo procura-se uma Portugália e come-se uma taça de doce de ovos a sério e à séria, mesmo no Verão, ao balcão. Custa seis euros, é saboroso, tem um gosto natural. Para os fãs, também há no pão.

domingo, 9 de agosto de 2009

Olá, acho que nunca falei contigo mas posso pisar-te à vontade?
Acordei com azia e com o barulho dos camiões às cinco e meia da madrugada, umas duas horas depois de nos termos deitado, depois de mais um belo improviso do João no órgão chinês. Na pousada de juventude de Ponte de Lima, estar no quarto ou acampado à beira da estrada nacional é a mesma coisa, no que toca ao ruído. Que bela obra de uma qualquer cabeça pensante que há seis anos não arranjou melhor terreno do que aquele, com vista para a estrada, os carros, as motoretas, os camiões, vrrrruuuummm... vrrrruuuummm. Impossível dormir, mesmo com um copo de vinho verde a mais. Tentei música, tentei rádio, tentei contar camiões, tentei a cabeça debaixo da almofada, tentei refrescar-me na casa de banho e tentei começar de novo. Foram horas. Acabei por convencer o João, o outro, a descer comigo para o pequeno almoço, antes das oito, para, pela primeira vez em muitos anos, beber leite com Nesquik. É que, lá em casa, depois das fases Cola Cao e Ovomaltine regressou-se ao Suchard Express para não mais o deixar. E é o que compro hoje. Mas a lata amarela de tampa azul com o amigável coelhinho, que hoje é um coelhinho todo urbano que veste calças largas e usa boné com a pala para trás, mantém os seus encantos: é muita doce. Eu fui membro do clube Nesquik mas no meu tempo não havia rios de leite chocolatado a correr por prados verdejantes, como há agora. Bebi duas canecas.


Sem mais para fazer ou ver, que Ponte de Lima é pequena e a água do rio é desaconselhada para banhos, depois de todos acordarem, depois de dois jornais lidos, cafés tomados em duas esplanadas, caminhada pela vila e um mergulho solitário dezasseis quilómetros mais acima, em Ponte da Barca, a meio da tarde rumámos a São Pedro do Sul, para a aldeia de Carvalhais. Havia quem tivesse encontro marcado no Andanças, festival internacional de danças populares, há catorze anos a mudar a vida aos pédexumbo. Como eu. No fundo tudo se resume a encontrar um bom professor. Um par que saiba conduzir e tenha paciência para ensinar, e coragem para aguentar umas caneladas e pisadelas. Acho que o festival tem, aliás, esse único objectivo, o de proporcionar encontros entre instrutores informais e instruendos empenhados em deixar-se instruir nos movimentos ritmados de coordenação entre o corpo, as pernas, e os pés — o meu pé direito não me obedece. Depois também tem aquela coisa das aulas e dos ateliês, de manhã, das sessões de djambé ao despique, à tarde na relva da escola primária, dos concertos e espectáculos, de noite, mas duvido que esses sejam os principais atractivos. Por fim, tem cerveja e uma espécie de hidromel. Uma espécie porque o que ali se vende já nada tem que ver com essa antiga bebida fermentada a partir de mel e água, com muito mais partes desta do que daquele, um néctar de cor amarela que tinha um teor alcoólico a rondar os quinze graus. Não. Ali há aguardente, ou bagaço, ou o que o valha, e de mel há um leve aroma. Resultado: bate forte e um dia depois o João, um deles, e recordo que somos três, não conseguirá sequer comer uma torrada. Fraquinho, portanto. O hidromel.


No Andanças até eu dancei. Arranjei uma professora do caraças, bailarina de grande experiência e demorada formação que, vendo-nos abandonados pelos compinchas, e depois de mais um copo, me levou pela mão para o meio da pista e estoicamente me explicou o que fazer, como fazer, e ainda louvou os meus progressos. Assim vale a pena voltar para o ano, mas desta vez que sejam uns três dias, que isto soube a pouco. A minha professora tem a pele branquinha, sardas, olhos claros, esverdeados?, apareceu de unhas vermelhas, calções escuros e chinelo no pé e, como todos os que por lá andavam, de canequinha de alumínio à cintura. Por acaso, quando se baila agarradito a caneca não ajuda. Mas a minha professora fez ballet durante quase vinte anos e irrita-se quando não consegue apanhar o passo daquelas danças assim mais mexidas. Ela chega, fica a observar uns minutos, vai batendo o pé e estudando os movimentos, até que arranca e já ninguém a pára. Profissionalíssima. Há mais de vinte anos que sabia dela, morámos na mesma rua, mas acho que nunca lhe tinha dito mais do que olá. Eu jogava à bola, ela aparecia pouco. Podem pedir o número para umas aulas, que eu não vos dou.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Sabes onde é que há bons limonetes?
Imbuído do espírito conquistador, eu tinha uma missão: comer os limonetes da Confeitaria Moura em Santo Tirso, que mesmo não tendo provado dos concorrentes posso afiançar que são os melhores. Trata-se de um pastel que tem uma carapaça de massa que parece de suspiro ou daquela dos jesuítas. No topo, um fiozinho em cruz. O recheio parece, à primeira vista, de um pastel de feijão e por isso tem de se comer dois. Não é doce, é suave, não é cremoso, é pastoso, e não consegui que me dessem a receita ou e
xplicassem a origem do bolinho que tem nome de erva para chá. O mais que consegui arrancar da senhora que lá estava, pouco conversadora para quem lhe confessou ter feito quilómetros só para ir ali provar a iguaria aconselhada por uma moça da terra, foi que a casa é mais do que centenária, com uns cento e dezassete anos. Não tem nada que enganar: fica no centro, ao pé da Caixa Geral de Depósitos. O teu mapa é que não ajudou muito porque acho que me enganei a lê-lo.

Foi em Santo Tirso que o João comprou o órgão que irá animar o resto da viagem. Custou cinco euros numa loja chinesa, tem microfone, efeitos, volume com duas posições hi e lo que não fazem a menor diferença, funciona a quatro pilhas e tem entrada para um alimentador que não traz. O Miles XH322A compra-se em lotes de trinta e seis a setenta e três dólares e oitenta cêntimos, o que dá dois dólares e cinco cêntimos por unidade, que vendidas na loja a cinco euros dá uma margem de três euros e cinquenta e cinco cêntimos por cada órgão, câmbio actual e a preços do ebuychina.com, o que traduzido para português e despachando a mercadoria num contentor cheio de outras coisas para justificar os custos de envio é um granda negócio. A dois dólares por cada brinquedo, nem quero imaginar quanto ganha o operário chinês. Import-export é que está a dar e nós gastamos dinheiro naquelas tralhas que depois duram um mês, se tanto. Mas a musiquinha que dali sai é uma granda pinta e até Ponte de Lima viajámos ao som dos improvisos do João e do David. Acho que há uma filmagem disso. O David, aliás, filmou os primeiros dias da aventura e ficou de montar um pequeno vídeo sobre a odisseia. Pena que a partir do vinho verde não mais se tenha filmado. Coisas que acontecem.

O José João chegou pedindo um cigarro e acabou fumando meio maço, sentado na nossa mesa, com a mulher, espanhola, bebendo bagaço e mostrando duzentas e oitenta e uma fotografias da viagem que estão fazendo desde Dezembro, a pé. Começou por ser o caminho de Santiago, desde Tarragona até Compostela, agora é uma caminhada até Fátima que terminará lá para o final do mês em Corroios, onde o José João vai visitar o seu velhote, que está num lar. Caminhar foi a forma que o José João e a mulher encontraram para não vagabundear por Tarragona depois de perderem os empregos e a casa onde viviam. É a crise, diz ele, afagando o bigode, meio em português, meio em castelhano, que este carpinteiro metálico já leva vinte anos de Espanha e está zangado com o Zapatero, que “fodeu isto tudo, pá, crê no que te digo”. Não sabe se regressará. Agora vive um dia de cada vez, sem pressa de chegar, sem pressa de sair, porque quem tem pressa não termina a viagem, acampando pelo caminho, um albergue de peregrinos aqui, outro acolá, pernoitar num quartel de bombeiros, com companheiros que encontram pela estrada, comendo o que lhes oferecem, comprando um chouriço no minimercado com dinheiro que lhes dão os amigos que fazem na jornada, seguindo em frente com a determinação de não parar. Cigarros é que não, é um vício caro e pelo caminho há sempre quem dispense um. Depois de fazeres um caminho de Santiago só queres fazer outro, diz, com a voz rouca, a pele queimada do sol, as pernas magras dos cinco mil quilómetros que diz ter percorrido.


No pequeno café do outro lado da ponte medieval e romana de Ponte de Lima conhecemos também o Melo e a Beatriz, pai e filha de cinco anos, que estavam na mesa do lado e com quem acabaríamos por jantar, por sugestão dele, num tal de Katequero, entre brincadeiras com a miúda, que a mãe não teve férias este ano. Serviu-nos a Céline, pele branca, cabelo castanho apanhado, olhos claros e sorriso envergonhado com as nossas palhaçadas para a Beatriz e o charme palerma para ela, que está de férias a trabalhar para juntar uns dinheiros, que terminou agora o décimo segundo ano e quer ser veterinária, só não sabe onde. O bacalhau à minhota é o melhor prato da casa e meia dose chega para dois.


Ainda esperámos por ela no Rampinha, mas nada. Só o Luís, atrás do balcão, de barba e cabelo brancos, mal disposto e facilmente irritável, mas que acabou a noite a escrever-me nas costas do cartão de visita do bar “do amigo Luís Tavares”. Por momentos ainda pensei que escrevesse “do camarada”, mas enganei-me. O Luís é comunista e o Rampinha também. Por todo o lado, mas por todo o lado mesmo, há fotografias, caricaturas, recortes e textos de e sobre Che Guevara. O suporte para os pés nos bancos do balcão são a cara do Che, a daquele retrato famoso, recortada numa chapa de aço. Nas paredes amarelecidas estão pintados a preto dois retratos do comandante e um do Zeca Afonso. Aqueles vão morrer ali, no dia em que fechar o Rampinha, que há vinte e dois anos conserva a mesma imagem, ao início da Rua Formosa, que é uma rampa. Lá está.
Na cidade do rock amanhece muito depressa
Desde logo porque o El Rock é o bar mais antigo do Largo da Oliveira, no centro histórico de Guimarães, e junta ali muita gente diferente, desde a malta dos futebóis aos turistas estrangeiros. Guimarães também não é assim muito grande e a zona boémia, para beber um copo e conversar, de noite ou de dia, parece ser mesmo por ali, naquelas pracinhas e larguinhos ladeados de casas de pedra cinzenta, telhados pronunciados para contrariar a neve, varandas e janelas de madeira decoradas com dezenas de bandeiras da fundação, a que tem uma cruz azul sobre fundo branco, o símbolo do Condado Portucalense que diz que é derivada do pendão de Henrique de Borgonha, o primeiro a mandar no burgo. Ali há esplanadas de cafés, de bares e de restaurantes para todos os gostos e todos gostámos, sobretudo das pessoas. O Convívio, no Largo da Misericórdia, uma associação cultural e recreativa fundada em mil novecentos e sessenta e um, é ponto de passagem obrigatória para se encontrar com quem conversar sobre o que quer que seja. Com a Mafalda, a nostálgica, sobre a capital europeia da cultura daqui a dois anos, com a Raquel, a do sorriso, sobre os desejos para o futuro da cidade e o problema do desemprego no concelho, com o João, o da máquina ao peito e dentes amarelos, sobre fotografias e a dona Suze. O Convívio está, por exemplo, na origem do Guimarães Jazz e se te disserem que fecha às duas da manhã isso é mesmo um boato, porque nunca saímos dali antes das cinco, que tem a particularidade de ser a hora ideal para caminhar até ao tio Júlio, ali próximo à praça do Toural, onde meia Guimarães vai aconchegar o estômago com tostas com molho especial, francesinhas, hambúrgueres, cachorros, moelas ou o que mais houver feito pela mulher do tio Júlio.

Não há reclamos luminosos nas paredes nem sinais
nas duas portas verdes de metal, mas qualquer pessoa sabe indicar o sítio, que é minúsculo, tem uma tostadeira e uma pequena chapa que só mesmo com a destreza do chefe é que dão conta da avalanche de pedidos quando a noite começa a clarear. O hambúrguer leva queijo, maionese, ketchup e mostarda, para agradar a todos, mas o melhor é mesmo o bem que faz e o preço. Ou a organização da casa: o tio Júlio chega às seis da tarde e fica até de manhã, até às oito ou nove, conforme o negócio, até que se fecha a porta durante meia hora para que a dona Rosa, a mulher do patrão, limpe tudo com aprumo e torne a abrir até ao final da tarde, que é quando regressa o homem da casa. São vinte e três horas e meia sobre vinte e três horas e meia há mais de vinte anos, com descanso na véspera de Natal e pouco mais. De dia, que chega sempre depressa demais, está quase vazio, mas o café é bem melhor que o da pousada de juventude, mesmo ali ao lado, que é uma aposta seguríssima, ao contrário da de Ponte de Lima, como se verá.

Subimos à Penha no teleférico, vimos as vistas desde o templo mariano que está no topo do monte de onde os betetistas da terra praticam o downhill, conquistámos o castelo e demos um abraço ao Afonso. Falhámos o Centro Cultural Vila Flor, as Dominicas e o CAR. Estaremos de regresso em Novembro, a vinte e nove, para a festa do pinheiro, e já sabemos onde vamos jantar: no & Etc, onde não há nada mau. Uma simples casa de óptimos grelhados com um vinho verde de marca própria e onde a sobremesa é inqualificável: uma travessa cheia de fruta e pedaços de cada um dos doces que a casa tiver na carta naquela noite — impossível comer tudo. Não faz almoços, não aceita marcações, o patrão não sorri e não quer lá mariquinhas, que é coisa que não serve ao John Portsmouth Football Club Westw
ood, o mais emblemático adepto do clube inglês que foi a Guimarães perder dois jogos.
O tipo mudou o nome, está todo tatuado com motivos alusivos ao jogo, mede uns dois metros, pesa uns cem quilos e tem capacidade para transportar uma dezena de litros de álcool na barriga. Vê-se bem ao longe porque anda despido a rigor, de calção, colete, chapéu e botas de xadrez azul e branco. O cinto tem umas luzinhas a piscar e a dizer hello. E apesar de intimidar é mesmo simpático. De cinco em cinco minutos lembrava-se de gritar num tom muito rouco e grave “vitóóóóóória” e “puuuuoooorrtsmuth”, que se percebia logo porque as bebidas pousadas nas mesas num raio de cinco metros começavam a vibrar — podem ler sobre ele aqui e aqui. O David adorou conversar com o Adam, ou o Dave, já não sei, um dos ingleses que se sentou connosco e passou duas horas a oferecer da sua amêndoa amarga, que bebia da garrafa que lhe custou apenas três euros no supermercado, encantado com Portugal. Quem não fica?

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Uma lamentável cena de pugilato
Em Guimarães, onde não se come peixe. O robalo tinha para aí uns dois quilos, era do mar, grande, e demorou a assar. Não é qualquer pessoa que assa bem um peixe daquele tamanho, por isso há que ser um homem da faina. O empregado disse logo “esse mais pequeno é de viveiro, como a dourada”. Eu não percebo, respeitando, a opção pela dourada. Nem quando é ‘ao sal’. Foi alimentada a farinhas, viveu sem desfrutar da paisagem do fundo dos mares e andou a curta vida toda à cabeçada com as outras douradas. E raramente sabe a alguma coisa. Mas que é um belo negócio, deve ser. Aquele robalo também foi, para o restaurante, mas o dinheiro foi muito bem empregue. Chegou-nos aberto ao meio, escalado, amarelo por dentro e do outro lado com a pele quase seca e estaladiça mas não estorricada, gigante, a cabeça e o rabo de fora da travessa. Sem azeite ou limão, apenas com o sal que levou na grelha, soube genuinamente a peixe, a um peixe que não é gordo, que é branco e suculento. Que é o mesmo que dizer: ‘soube’, por oposição a ‘não ter gosto’. O bom robalo acompanha-se só com vinho branco, que as batatas, os legumes ou a salada podem bem esperar e seguir depois, à laia de entretenha até que os outros acabem, e o Prova Régia foi uma bela descoberta, ali de Bucelas, monocasta arinto, fresco, frutado, embora um pedacinho ácido, com apontamentos pouco habituais de maracujá e suor humano, e isto já escreve o crítico Pedro Gomes, porque eu não senti nada disso nem cheirava mal, o de 2006 melhor que o de 2007 — sim, foram duas garrafas — e se for comprado no supermercado, que também lá o há, sabe trezentos por cento melhor, na exacta proporção da metidela de unha dos estabelecimentos de restauração e comércio de bebidas, pois é um vinho muito em conta nas grandes superfícies. Na Barraca, em Burgau, a caminho de Vila do Bispo, há bom peixe fresco, turistas ingleses parvos e barulhentos, e “monkfish with rice” que é arroz de tamboril. Fica junto à praia, bem lá em baixo, não tem nada que ver que não seja a vista de mar, a luz é fluorescente e os guardanapos de papel, não há cá requintes. Nem há peixe: há pêxe. De resto, os dias em Lagos foram, desta vez, assim: menu único. Se tinha espinhas ou concha, comia-se. Sardinhas — há todo um conhecimento sobre a subespécie que habita as águas do Algarve, diferente das que se encontram cá por cima, mas que eu não domino a não ser na constatação do palato —, amêijoas, batatas de molho frio, mexilhões e melão branco. E pela primeira vez um misto algarvio: alfarroba, amêndoa e figo, três camadas diferentes de cor e de sabor, cuja ordem e proporção não recordo, dispostas numa forma baixa das que se usam para as tartes, uma sobremesa servida à fatia e que não é doce mas é saborosa pelo contraste intenso do figo, que é escuro e tem grainhas, do travo levemente amargo da amêndoa, e do aroma frutado da alfarroba — é o melhor que consigo, à distância de dias. Ficaram adiados os perceves, os salmonetes ou as cavalas. Enfim, para uma outra vez, que não sei quando será. Antigamente era uma vez por ano e logo um mês inteiro. Eram as férias, quando as coisas tinham outro cheiro, outras pessoas, outros ritmos, outros afazeres de cá e de lá. Era outra vida. Afugentar as gaivotas na Meia Praia às oito e meia da manhã, comer melancia depois do almoço, dormir a sesta, andar de bicicleta, os cães e a padaria, brincar na rua até tarde, ouvir o comboio ao longe nas noites quentes de calmaria. Depois cresce-se, as pessoas desaparecem, mudam-se as vontades e as coisas parece que perdem sentido. Mesmo com maiores facilidades em ir e estar. Só que as facilidades não são nada. Lagos, no entanto, continua sendo uma cidade bem bonita. Como Guimarães, que nos surpreendeu a todos pela convivência entre a jovialidade das gentes e a antiguidade dos espaços. É também de onde temos a maior parte das fotografias destes dias porque depois, na aldeia de Carvalhais, andaremos todos muito ocupados a (tentar) dançar e a máquina, embora à cintura, nem sairá da bolsa. Reza, contudo, que nem foi por alguma bolsa que, no Convívio, dois sujeitos se pegaram à pancada por volta das três da manhã, hora de muita cerveja bebida, na fila para a casa de banho. O Convívio é uma associação cultural que explora um bar e passou-se tudo diante do João. Se tivesse sobrado para o lado dele tinha apanhado, que os reflexos já estavam cansados. Uma lamentável cena de pugilato que deu por terminada a festa, um duelo de pôr-do-sol com discos na vez das pistolas, daqueles que recua dez passos e dispara o teu melhor hit do rock de sempre com didjeis de dois bares a ver quem animava mais. À custa dos boxeurs terminou antecipadamente às cinco da manhã, uma boa hora para ir comer hambúrgueres ao tio Júlio, que nunca fecha mesmo.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

eisdruxúla? nem nunca ouvi falá
Suspeito que o Malato também não e isso não faz dele menos homem. Mas eu também não o conheço. Eu nunca fui à televisão. O João já foi umas três vezes, tirando as outras em que participou como actor numa série. Destas três vezes foi fazer coisas sérias. Ontem, por exemplo, foi lá falar das notícias dos jornais. Acho que isto, acho que aquilo, gostei de ler isto e esta fotografia é muito boa porque. O João foi convidado porque faz filmes. É realizador. E é meu amigo. E enche-me de orgulho. Ele e outra malta, cá dos nossos, que fazem filmes com ele e sozinhos. Mas filmes dos bons, que eles não brincam em serviço. Como os taxistas. Gente séria. Faça oito, preciso do recibo, e ele escreve sete euros e cinquenta e cinco cêntimos. Eu sou um mãos largas. Esta noite deixei no bar do São Jorge cinquenta cêntimos, para facilitar os trocos. E não bebi mais uma cerveja por isso. Venha cá buscar daqui a pouco — iá, lembraste-te? Gosto de dar. Um pouco como o António Costa. O tipo agora mandou pintar de amarelo e rodear de pilaretes de plástico uma série de lugares de estacionamento para motas um pouco por toda a cidade. Agradecido. Ou agradado? Não, isso é como teria ficado se não tivesses cancelado o encontro à hora, depois de me ter virado do avesso para chegar, aliás, depois de ter chegado!, depois de uma maratona, depois de ter faltado a duas pessoas derivado da saída tardia e ter ficado chateado com isso, era mesmo o que me estava a apetecer, um chá frio e conversa à janela. Em vez disso, uma sande de panado ao balcão com dois motoristas e um brasileiro a ouvir o Malato da televisão. A resposta era ‘lâmpada’. Mas eu também me estou a cagar pró acordo ortográfico, portanto, estamos quites. Não volto a discutir gramática misturada com mostarda e cerveja. Mais mostarda do que cerveja, no bigode, próximo do nariz, que é onde a mostarda não pode estar.


Porra, tenho mesmo que ir buscar o relógio ao relojoeiro.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Eu às vezes repito-me
Isto dos manifestos é como contar manifestantes nas ruas. Há um procedimento — não se lhe pode chamar método — que consiste em, de olho direito fechado, que melhora a mira, juntar um grupinho de dez cabeças e tentar reproduzi-lo pela mancha total de cabeças. Deu vinte grupinhos semelhantes ao primeiro? São duzentos manifestantes. Deu entre trinta e cinquenta? São cerca de quatrocentos. Deu bué e enchem assim tipo uma avenida? São cem mil e são professores. Falível, portanto. Um bocado como contar a malta que escreve e subscreve manifestos aos partidos políticos. E em pouco mais de um mês surgiram seis — o livro do Pedro Santana Lopes, “a cidade é de todos”, ed. Leya, não conta, ok? Seis manifestos ou cartas abertas, subscritos por vinte e oito economistas, por catorze intelectuais, por dezenas de personalidades ligadas à cultura, e hoje por mais de sessenta pessoas — arrisco reduzi-los a pessoas — que assinam uma “carta de católicos” aos partidos. Vistos os nomes, quando os há todos e não apenas aquilo das personalidades como fulano de tal, uma dúzia são repetentes e os outros são os primos convencidos ao jantar.

Os repetentes, os que assinam vários manifestos, são sempre ex-qualquer coisa, ex-ministro, ou actual-qualquer coisa, como deputado, geralmente deputado independente eleito nas listas do PS, professor universitário, presidente desta associação ou fundação, músico ou qualquer outra coisa que lhes dê relevância. São figuras com visibilidade e isso faz parte da lógica do manifesto. Ou então são os que chumbaram de ano, que há tempos que tentam chegar a algum lugar, sem sucesso. Invariavelmente estão ligados aos partidos. Mas são poucos e são sempre os mesmos. Há um mês estive no congresso da SEDES, essa referência pela antiguidade e por nunca se ter transformado em partido, por recolher um leque de personalidades de relevo, por publicar umas “tomadas de posição” e tal. O congresso tinha menos gente que algumas aulas daquelas cadeiras mesmo chatas lá na faculdade, onde nem reprovar por faltas era incentivo suficiente. Poucos, muito poucos. Poucos mas com peso, porque tudo estremece quando tomam posição. Mas poucos. E todos, ou quase todos, com uma coisa em comum: currículo no exercício da cidadania, quase sempre com início naquele pedaço da nossa história que foi o regime não democrático ou os tempos da transição — os tempos da urgência em ter posição, em agir, em fazer coisas. E já me estou a repetir.

Eu não tenho nada contra os manifestantes dos manifestos. Mesmo que sejam os mesmos dos partidos, das associações, dos blogues, das colunas nos jornais, dos espaços de debate e comentário nas televisões, de todo o espectro mediático, de toda a opinião publicada — não, nunca vi, nem sei bem se quero ver, o novo programa do Pacheco Pereira (ai jesus, vénia, não é?...) na SIC Notícias —, os mesmos das tertúlias, das palestras e das conferências, das apresentações de livros ao final da tarde, das inaugurações, dos comissariados, de tudo e de nada. Nada contra. É que, no final, se até eles ficarem quietos isto deixa de existir. Mas onde é que vocês estão, pá? Sim vocês. Onde é que nós estamos? Alguém quer fazer alguma coisa? Ninguém quer agitar esta merda? Está muito calor, é? Olha que no final até é divertido, porra...

domingo, 19 de julho de 2009

Eu nunca estive em Santo Tirso, eu ando a ler sobre cidades
Não sei se existe algum segredo para cozer bem camarões, mas prometo averiguar. Camarões é aquela coisa que eu até gosto de comer, se fritos com alho, ou cozidos e servidos com sal, limão e gelo, na esplanada aqui de casa, à tarde e acompanhados de cerveja gelada, mas que bem dispenso fazer. Um pouco como os bolos: comer sim, fazer não. Sei que há receitas simples e boas, mas mesmo assim. Depois, dá nisto: a minha avó fazia um bolo de leite que nunca mais comi, a minha mãe faz um de laranja que há anos não como e o de chocolate, grande e fofo, já só lhe recordo a imagem da forma quase a transbordar. A torta de laranja vai pelo mesmo caminho, mas desta sei que a receita do chefe Silva foi acrescentada de precioso saber e de um creme para o recheio que não lhe pertencia mas que se revelou imprescindível para o Natal. O Natal perdeu a cor, já não sei em que ano. Mas recordo-me de folhear Teleculinárias que custaram dois escudos e cinquenta centavos. Também não sei em que número está a receita da torta e em que noutro a do recheio. Nem tão-pouco onde estão as revistas. Mas tenho na memória que o salame de chocolate leva bolacha Maria da Triunfo e vinho do Porto na prata, e que o bolo de bolacha, para ser sério, se faz com manteiga. Já o arroz doce... bem, ando farto do que se vende no bar do senhor Rui, agora que voltei a comer por lá, e não esqueço o cheiro daquele que fazia a dona Regina. Também me recordo de a ver passar a roupa a ferro. Eu passo as minhas camisas a ferro. Ando é preguiçoso, ou então é do calor, e deixei de fazer as maratonas de domingo à noite, o que me obriga a engomá-las de manhã, meio à pressa. Engomar, que é como quem diz.

Adoro o teu sorriso. Ficava horas a olhar para ele. Sorrisos como o teu só existem nas cidades. Nas cidades onde as pessoas vivem e trabalham, onde andam a pé, onde se encontram e onde dão encontrões. A boa cidade é aquela de onde as pessoas saem para ir passear quando conscientemente não querem passear na cidade, porque na boa cidade as pessoas não saem para ir dormir a outro lado, nem chegam de fora pela manhã, porque é ali, na boa cidade, que vivem. A boa cidade é a cidade de Baudelaire, a cidade dos entusiastas, onde se baixam as defesas porque se sente em casa, onde se sendo entusiasta se entusiasma com o que se vê acontecer dentro daquela porta, por detrás daquela montra, naquela rua, naquele sítio àquela hora, sítios e pessoas que fazem a boa cidade, onde um pouco de caos humano nas ruas nos faz esbarrar contigo e com os outros, boa confusão sem buzinas nem fumos, ou pelo menos sem se estar dentro dos automóveis que buzinam e deitam fumo, boa confusão que cria laços onde se pode ser caçado, tropeçar, onde se pode ser curioso, onde se pode observar, provar, saborear. Não, eu não ando a ler manifestos autárquicos. Podia andar, mas não ando. E não ando só porque depois tinha de escrever que o Terreiro do Paço, aos domingos, é das pessoas mas o Martinho da Arcada tem as portas fechadas, ou tantas outras coisas — isto estava a correr tão bem.

Diz que em Santo Tirso há um doce, ou um bolo, não sei bem, porque nunca estive em Santo Tirso, que se chama limonete. Eu não conheço, mas vou tentar provar. Já tenho o mapa para chegar à confeitaria Moura.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Da bifana, ou como detesto que uma mulher me deixe pendurado
Uma bifana grelhada faz logo diferença. Não só porque é mais saudável, no que há de saudável numa bifana no pão, mas porque sabe diferente. Uma bifana para levar à grelha deve ser temperada com sal, uma pitada pouca de pimenta, alho esmagado e sumo de limão. Ah e tal o sumo de limão usa-se é no peru e noutras aves — aqui não há dogmas. Depois é levar à grelha, deixar corar e virar na hora certa, que é aquela antes de a bifana ficar seca, rija e estorricada. A grelha preserva o sabor. A grelha deve ser de arame, mas isto qualquer assador de verão já sabe. Evitem uma bifana mal passada, porque é porco e porque não sabe bem, mas nunca peçam “bem passada, se faz favor”, que isso é deitar por terra todos os cuidados anteriores. Também não se pode ceder à tentação de comprar bifana barata, e isto já fica à consideração dos players do sector — haverá poucas coisas piores que uma bifana cheia de nervuras ou de gordura, e se tiver dúvidas, senhor gerente, pense em si, na sua fominha, na hora avançada, e numa trinca à pitbull que não larga, não larga, não larga. Não é fixe. O papel do pão não pode ser desprezado. Não deve ser carcaça, não pode ser bola de mistura muito maçuda — neste blogue faz-se língua — e não deve ser torrado, mas deve, sim, ter pouco miolo que deve ser apenas aquecido e nem pensem em tostar a côdea, que isso estraga a fofura. É que há uma série de inconvenientes numa bifana estaladiça e um deles é a mostarda a espirrar, algo que é de evitar, sobretudo se tivermos em conta que a bifana antecede o cinema, o concerto, o teatro, os copos ou coisa que o valha na sua qualidade de refeição rápida, e para essas coisas todas convém ir impecável, mais ainda se não houve tempo para passar em casa para um duche depois de um dia de árduo labor. A mostarda, dizia, é de amores e por mim é bastante. Há quem não aprecie e eu respeito, assunto encerrado. Agora, não me dêem é mostarda sem rótulo, que eu não vou nessa. Com jeito pode juntar-se umas fatias de queijo flamengo — o edam é magro e aquele muito amarelo dos hambúrgueres serve para isso mesmo, hambúrgueres — e temos uma bifana com queijo, ou um ovo estrelado, bem passado, para a gema não emporcalhar tudo, ou ainda cebola levemente refogada, mas tudo separado, hein?!, uma bifana com cada coisa, bem entendido. A bifana acompanha-se com imperial e dois euros e sessenta, vá lá, dois euros e oitenta, é mais do que um preço aceitável. Nada disto acontece na Portugália, onde até a bifana mergulha no molho de manteiga. Tudo isto acontece na Bela Ipanema, o oásis em tempo de Indie Lisboa, de festa do cinema francês, brasileiro, africano, ou de um concerto, ao lado do São Jorge, caraças que já não vou conseguir jantar e estou super atrasado — calma. Fecha à meia noite, há que saber que a cozinheira só trabalha até às onze, e mesmo com casa cheia o serviço é rápido e simpático. Esqueçam, no entanto, o pastel de nata: a massa é grossa, pouco folhada, tem demasiada gordura, e o recheio sabe a Maizena — quem te avisa, teu amigo é. À confiança na sopinha de agrião. Pode pagar-se com senhas Euroticket. Para tirar o cheiro a alho, Sagres.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Passaram duas semanas desde que te vi e o que eu queria mesmo era ser o Lourenço Viegas
Qual é o segredo de umas boas migas? O alho? O limão? O azeite? Os coentros? Faz hoje duas semanas que há umas migas óptimas no Sinal Vermelho. Ali tudo vai bem com migas. Fica no Bairro Alto, próximo da Severa. É perguntar. Eles são minhotos — e eu tenho má memória — e parece que isso é fundamental. Quer dizer, admito que a doutrina possa divergir neste ponto para o Alentejo, que os alentejanos também as sabem fazer. Se és alentejano e proprietário de um belo restaurante, faz-me umas migas e convida-me, a caixinha dos comentários está aí para isso. Agora, e para que não haja dúvidas, as sardinhas são algarvias. Como as cigarrilhas são cubanas e Partagas. É daquelas coisas. Até sardinhas eu como acompanhadas de umas migas daquelas. Menu de verão — e esta já dei de barato. Como a minha receita de ovos mexidos com cogumelos frescos, para comer à uma da manhã, que tenho espalhado por aí, e que n’A Travessa se chama ‘ovos mexidos com cogumelos selvagens’ e serve-se antes da perdiz, que custa uma pipa, mas vale tanto a pena. É que n’A Travessa, do Convento das Bernardas, tudo é bom, e o campeonato é outro, o das notas amarelas. Mas como dessas não há muitas para sair amiúde a Filipa teve uma bela ideia, que foi a ideia da Tânia, que está feita para um grupinho que experimente umas três entradas, uns três pratos e beba vinho a copo. Para petiscar ao domingo à noite está tudo estragado: só se sai de lá para fechar a casa. Na Taberna Ideal, na Rua da Esperança, quem sofre é a segunda-feira, não há fé que lhe valha. E como eu tenho má memória não recordo o nome, nem das entradas, nem daquela coisa de milho com bacalhau. Aliás, já nem sei se era milho e bacalhau. É por estas, e por outras, que nunca serei um Lourenço Viegas. O Lourenço Viegas é o crítico da Time Out. Se calhar é um gajo mais famoso que isso, mas eu não saberei. Eu não compro a Time Out, mas volta e meia aparece uma aqui em casa. Ao início, há um ano?, comprava. Tinha na memória, a mesma que é má, as críticas — eram mais crónicas, mas pronto — do Miguel Esteves Cardoso à volta de pratos, mercados, restaurantes e cozinhados, e o Lourenço Viegas fez-me comprar a revista só para voltar a ler excelente prosa sobre comida. Quer dizer, é de dias, como dos pratos. Mas, meu, gosto muito do teu trabalho. E já agora: alguma vez escreveste sobre O Melhor Bolo de Chocolate do Mundo? Que ideia é aquela da bolacha, ou do suspiro, a meio do bolo pá? O Melhor Bolo de Chocolate do Mundo ainda carece de uma segunda prova — será quando te levar uma fatia ao Carmo assim de surpresa, Cátia, está prometido — mas à primeira digo que, no limite, é o melhor de Campo de Ourique. Mais que isso é arriscar um bocado: como ir aos bolos da João XXI às três da manhã com um apetite gigante de pastéis de nata e esperar que sejam bons. Lá está, é arriscar. Por outro lado, seguro seguro é o croissant doce do Careca. Pequeno, quentinho, o açúcar por cima meio derretido, com queijo e manteiga e um copo de leite frio, só para o lanche, que de manhã é uma bomba e pode até enjoar, e o croissant do Careca não merece isso. Para enjoadinho já basta o dono, um tal de senhor António, raça do homem. Rua de Pedrouços e tal, virar à direita no coiso — se não der é porque são betos e vêm de Cascais, e então é à esquerda — e procurar o toldo a dizer ‘pastelaria do Restelo’. Sim, eu sei, fui ao engano várias vezes. E limpem a baba porque à terça-feira está fechado. Já o Rosa Doce não fecha. Quer dizer, deve fechar, mas deve ser praí ao domingo. Portanto, hoje de manhã é de aproveitar. O melhor croissant de Lisboa é ali, com queijo, com fiambre, misto, a acompanhar com sumo de laranja. Não é folhado, não é massudo — eu acho que isto não existe —, é meio por meio. De passagem pela João XXI vale a pena. O João XXI é o Papa português, o Pedro Hispano, que morreu algures no século XIII — já disse acima que a memória é má — quando um tecto de uma igreja lhe caiu em cima. Obras sem projecto licenciado dá nisso. Costa? Santana? Em Outubro estou lixado, é o primeiro ano que voto em Lisboa, caraças. Olha lá, e tu não achas que duas semanas é muito tempo? Vê lá se dizes alguma coisa. Bem, mas porque é Verão e se a sede apertar, bebam água. Não vale a pena pedir dois sumos naturais no Frutalmeidas porque o docinho, o docinho da fruta, bem entendido, só dificulta. O truque é mesmo beber os dois copos de suminho — acontece-me quase sempre não conseguir ir embora ao fim do primeiro — e o terceiro copo, cinco ou dez minutos depois, ser de água. Confiem em mim. Se, como eu, acharem que um euro e quarenta por um copo de sumo de laranja é muito, e se acharem, como eu, que o que se cobra por um copo de sumo de laranja em Lisboa ou em Portugal é insultuoso, porque diz que neste país se produzem das melhores laranjas de que há palato, que são vendidas ao desbarato pelo produtor, então anotem: dois euros por um sumo de morango não é mal empregue; o sumo de ameixa, que não há sempre, é muita bom; o de pêra é um clássico — percebem a necessidade do copo de água? — e depois é ao gosto do freguês, não há que enganar. E os pastéis de massa tenra? Sim, fazem um bocado de azia, mas são porreiros. Mas porquê o que é ‘porreiro’ quando se pode ter o que é mesmo bom? Antes de dormir: leitinho, meio gordo, fresco; um copo; para beber a tragos espaçados. Se não gostas de leite podes voltar ao início desta crónica e não começar a ler. Na minha cozinha mando eu.
Goodbye Amélie
O Fabuloso Destino de Amélie Poulain? Goodbye Lenin? Esquece tudo. Nasceu o rock. Yann Tiersen agora é rock. O violino tocou três vezes e não mais de uns três minutos sem distorção. Agora é tudo guitarras. Que pinta.

- Moço, tenho um bilhete.
A que horas é?
- Nove.
Oito e meia lá?
- Oito e quarenta e cinco.
Feito.
- Compra-me uns rissóis.

(depois de sair no jornal republico a crítica do Rui. o Rui é o homem que perdeu o Cem Anos de Solidão na primeira jornada do inter-rail e isso diz tudo de bom sobre o texto que ele vai escrever)

sábado, 27 de junho de 2009

Intro
O que raio é um blogue? “Uma espécie de pudim instantâneo” ou “nada do outro mundo”. José Saramago. Olha, hoje trato-te por tu. É que foi nisso que pensei a dezanove de novembro de dois mil e três. Hoje já bebiamos um copo, só para te pedir, José, que me contasses outra vez aquela coisa de, “se o Romeu da história tivesse os olhos de um falcão provavelmente não se apaixonaria pela Julieta, porque os olhos dele veriam uma pele que não seria agradável de ver, porque a acuidade visual do falcão, cujos olhos Romeu teria, não mostrariam a pele humana tal como nós a vemos”.

domingo, 21 de junho de 2009

The trees were mistaken
- Vocês já eram namorados na altura?
Não. Na altura já éramos amigos. As pessoas insistem em achar que somos namorados, o que fazer? E depois tenho de enxotar australianos em Belgrado. É a minha sina. Mas eu até gosto.

this is a story, some kind of a story
this is a story about a boy and girl,
a girl and a boy, a boy.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Manhattan
ele says - no fundo a vida é como os filmes do woody allen
eu says - então eu estou num que ainda está em pré-produção

terça-feira, 2 de junho de 2009

Peixinhos


Ando praqui suspenso.

domingo, 24 de maio de 2009

(desde que voltei que) durmo do lado esquerdo da minha cama
Comecei por dormir no chão, no colchão que comprei quando me mudei para esta casa, mas no chão, num metro e quarenta por dois de colchão no chão. Pensei que fosse dormir todo esticado, talvez na diagonal, espaço não faltava, mas fiquei-me pelo lado direito. Acho que o colchão até ganhou a minha forma. O colchão não e lá grande coisa, foi baratucho para o que custa um bom colchão, e não é de molas — detesto colchões de molas — e também não é daqueles assim altos.

Quando comprei a cama esqueci-me de levar também a trave central. Só dei por isso quando estava a montá-la, a armação toda de pé, o topo, as traves laterais, o fundo, os tensores nos quatro cantos, tudo pronto e a pouco mais de uma hora de ter de sair para o cinema, a dez minutos de casa. Sim, há um cinema nas traseiras de minha casa e mais dois aqui perto. Meti-me no carro e fui correndo à loja comprar a puta da trave, que por alguma razão de logística sueca não está junto das outras peças da cama. A minha cama é igual a milhões de outras pelo mundo, dizem que é a mais vendida. Foi sorte a Cátia não ter ficado chateada por eu ter chegado em cima da hora e pouco ou nada termos falado antes da fita. Ainda lhe devo um bolo de chocolate, o melhor do mundo — não posso fazer por menos. À uma da manhã desse dia de semana o meu quarto estava de pernas para o ar, o caos em torno de uma bonita cama sem estrado e sem colchão. No entanto, com a simplicidade de um lego e uma porradinha aqui, outra ali, ainda estreei uns lençóis verdes e acordei muito mais bem disposto.

Durante meses dormi ao meio da minha cama. Como não gosto de almofadas, há uma que fica sempre de fora e a outra não fica debaixo do meu pescoço mais do que até estar quase a cair no sono. Eu sei que ressono, mas só um bocadinho. A coisa boa de uma cama grande é não ter de me esticar ou levantar para deixar o livro na mesa de cabeceira ou no que lhe fizer as vezes. O bom de uma cama grande é que o livro pode logo ficar ali ao lado. Se depois acordamos em cima dele e a capa está amarrotada, isso são outros quinhentos.

Agora durmo do lado esquerdo da minha cama. Acho que há já uns meses. Tenho o hábito de adormecer ouvindo música com uns headphones. Durante anos tive um walkman com rádio digital. Tinha seis posições de memória e a antena três era a primeira. As outras já não me recordo. Sei, isso sim, que fiquei perito em mudar a cassete de olhos fechados, às escuras, debaixo dos lençóis. Tenho verdadeiras relíquias em cassete, que um dia tenho de ir buscar ao meu quarto antigo para as levar à rádio e passar umas noites a digitalizar aquelas gravações. Às vezes deixo-me adormecer ao som da europa lx — o francês embala. Ultimamente tem sido o disco do jp simões ao vivo no são luiz, ou fleet foxes, ou os do costume, miles davis ou keith jarret. Às vezes o governo sombra, graças aos podcasts.

Não sou gajo de dormir de lado. Geralmente durmo de barriga para baixo. Mas quando tenho insónias viro-me sobre o lado direito. Sempre fico de costas para a janela e o quarto parece mais escuro. Fechar o estore até abaixo dá quase sempre mau resultado. Quando tive de acordar às quatro e um quarto da madrugada comprei um aparelho temporizador para ligar ao candeeiro. Conto isto a toda a gente e toda a gente se ri, mas aquilo ajudou-me muito. Programava-o para ligar o candeeiro dois minutos antes de o despertador tocar para que quando abrisse os olhos já houvesse luz no quarto. Só assim não adormecia.

Não sei porquê, mas venho dormindo do lado esquerdo da minha cama.