segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Agora que penso nisso, passei uma semana sem beber leite
Diz que foi o Dom Dinis que mandou construir o castelo de Marvão. Percebe-se. O rei lavrador nasceu num planalto, em Santarém, e sabendo do alto de um morro em granito a mais de oitocentos metros acima do nível do mar não hesitou em ali erguer a fortaleza. Ou então foi para travar a mania que os de Castela tinham de vir para este lado da fronteira, como se isto fosse deles. É que Marvão está a meia dúzia de quilómetros de Espanha e dava um excelente posto de vigia, até perder de vista. De resto, ali próximo passava a estrada romana que ligava Cáceres a Santarém, e no sopé do monte passa o rio Sever e para o atravessar tinha de se pagar. A Portagem é hoje a aldeia onde se compra o jornal, porque em Marvão não há tabacaria. Nem pastelaria. Nem mais de cento e cinquenta pessoas. Mas é a vila mais alta do reino de Portugal e é a sede do concelho. Concelho? Dom Dinis não teria imaginado isso, nem que a albergaria na praça central da vila fosse chamar-se El Rei Dom Manuel, o bem-aventurado. Uma facadinha nas costas, portanto. É por estas e por outras que simpatizo com a ideia de uma reforma administrativa do território, que nada tem que ver com a semana que passei em Castelo de Vide. Acho que há presidentes de junta a mais. É só isso. Porque das gentes de Marvão não tenho a menor queixa. Ora veja-se.

Assim que perguntei por uma lavandaria onde deixar algumas camisas a engomar a dona da albergaria disse logo deixe estar que eu trato disso. E à noite lá estavam as quatro peças direitinhas e impecavelmente penduradas em cabides no roupeiro do meu quarto. A única coisa de que me esqueci foi que os alentejanos não dão ponto sem nó e por isso fui apanhado de surpresa ao segundo dia, de manhã, quando ia a sair: olhe que o homem gostava de falar consigo, disse-me o marido da dona da albergaria. O presidente da câmara passou por aqui, viu o carro da rádio estacionado e pensou logo que você podia dar uma ajuda. Em quê? É que vamos ter aqui a primeira feira do café, e há tradição nisto, porque estamos próximos da fronteira, contrabandeava-se café, e depois também houve aqui duas torrefacções, é tradição, acredite João Pedro. Eu acredito, eu acredito, mas não posso prometer, sabe que essas coisas não são comigo, e o homem já me tratava por João Pedro. É que a gente precisa de divulgar isto. Pois, pois. Mas vá lá falar com ele, o presidente tem um restaurante lá em Castelo de Vide, se calhar você ia lá almoçar com ele e coiso. Pois, pois, eu estou ali em trabalho, o tempo não é muito, mas logo se vê o que se arranja. Pense lá nisso. Vou pensar, vou pensar.

Ao sexto dia já via tudo laranja. O pôr do sol era bonito porque era laranja. Ao pequeno-almoço bebia sumo de laranja. À sobremesa do jantar perguntava se havia torta de laranja e acabava por comer encharcada de amêndoa só porque era cor de laranja. As moças — as que tinham mais de vinte aninhos — ficavam bem de laranja. Só já não podia é com os laranjinhas. Por isso é que resolvi apagar um parágrafo enorme que escrevi sobre os seis dias que passei com eles. Não sobrou nem uma vírgula. Como me parece não ter sobrado um minuto de jeito. Não sei que raio aconteceu, mas o tempo passou depressa demais. Nas horas livres fui a Portalegre, mas não sei o que fiz, fui a Nisa, mas consegui comer na pior taberna da vila, fui às ruínas da cidade romana de Ammaia e deparei-me com um triste espectáculo de abandono e falta de zelo, apesar dos dois euros que pagamos à entrada, vi Castelo de Vide e vi Marvão mas foi como em Portalegre, não sei o que fiz. Já nem sei onde guardei a factura do restaurante Sever, que já se está a ver onde fica, de que agora precisava para escrever sobre o almoço que daria o título a este texto. Caraças. É que não me recordo do que comemos. Javali à casa, parecido à carne de porco frita à portuguesa, mas mais rijo — o javali é um bicho duro, tem aqueles dentes salientes. Dentes salientes não funciona lá muito bem. Mas fica assim. Arroz de lebre, com um pedacinho a mais de sangue e a menos de limão, mas bem guarnecido de carne, suculenta, saborosa, e o arroz malandrino. Veado com castanhas, que na verdade é gamo, o melhor prato de todos. Cortada às fatias, a carne é um pouco gorda, mas o sabor é intenso. As castanhas congeladas e sem gosto deviam obrigar a adiar aquilo tudo para o Outono. Todos ganhavam. Ainda deixei a sugestão ao moço que nos serviu, que me retribuiu com a melhor sobremesa da casa. O tecolameco serve-se à fatia. A base é de amêndoa, o resto é ovo e açúcar e é divinal, porque no final de contas nem é muito doce. A sério! Mas, pronto, reconheço que à distância de dias e sem os meus apontamentos não consigo melhor. Costumo rabiscar umas notas de prova nas costas do papelito e sem factura agora nem me vão pagar a refeição. Estou duplamente lixado. Um bocado como fiquei com Óbidos.

Terminada a missão alentejana, tarde e a más horas, achei por bem oferecer-me um jantar de faca e garfo na outra ponta do país. Ou quase, vá. Então, depois de dormir uma semana dentro de muralhas, e de passar os dias numa terra de castelo, rumei a Óbidos, que também está circunscrita às paredes da fortaleza. Só que em Óbidos não se janta. Só se ginja. Em todo o lado, que também não é muito lado, porque aquilo é mais pequeno que Marvão, há uma banca ou uma casa que vende ginja, em copo de plástico, de barro ou de chocolate. Se for de plástico custa um euro, se for de barro custa mais cinquenta cêntimos e pode trazer-se a canequinha pintada de azul e branco, se for de chocolate custa o mesmo euro e pode comer-se. Que era precisamente o que eu queria. Depois de dar uma volta inteira à vila decidi ir ao posto de turismo. Sabe, nós não podemos recomendar, mas temos aqui um mapa com os restaurantes. Que são catorze e a grande maioria fecha ao domingo. Que é uma atitude que eu subscrevo e aconselho. Em Óbidos, onde ao fim-de-semana chegam autocarros cheios de velhotes ou de crianças, e carrinhas com famílias de quatro, mais espanhóis que portugueses, mas também por lá ouvi franceses, italianos, e uma francesa em particular, mas já lá vamos, em Óbidos, dizia eu, o melhor que o proprietário de um restaurante tem a fazer em pleno Agosto é fechar as portas ao domingo. Descanso semanal do pessoal. Abra à segunda, senhor empresário. Mas feche ao domingo. Ao domingo, afinal, aquilo só está cheio, mas não se passa nada. Como na sua cabecinha: não se passa mesmo nada.

Acabei no Conquistador. Porque, no fundo, esta semana foi dedicada aos homens com uma missão. Da mesma maneira que o Dom Dinis ordenou a construção do castelo de Marvão, da mesma maneira que a Manuela está a “lutar” — precisamente, com aspas — para chegar a chefe de governo, da mesma maneira que os jotinhas foram aprender a ser jotinhas e cenário de mini-tele-comícios ao jantar, o fulano que está à frente do Conquistador, o Afonso, têm uma missão: fazer com que não se volte lá. É caro — mas isso, em abono da verdade, são todos, para turista ver — e banal. Azeitonas acabadas de sair do frigorífico e com sal grosso ao molho? Chouriço tipo corrente assado? Uma posta baixa de bacalhau no forno? Batata a murro por esmurrar? O que safou a Louise e a amiga foi eu estar ali em missão. As francesas são sempre assim: andam aos pares e há a Louise e a amiga, que é a simpática. Esta tudo dito. Lá lhes pedi as sardinhas, as batatinhas, a salada de tomate com cebola e orégãos e um vinho verde fresco. A Louise tinha o cabelo castanho claro acima dos ombros, a pele branca com umas poucas sardas, o nariz fino e arrebitado, os olhos verdes, as mãos delicadas e as unhas sem verniz, que isto de andar de mochila às costas não perdoa, digo eu, e vestia um vestido verde, curto, acima do joelho, pois claro, mais de trinta e cinco graus à sombra, e estava a descer desde o Porto, aos pedaços, para fazer render as semanas. Ainda disse ao fulano, trate bem as moças!, mas aquele sorriso que me atirou não augurou nada de bom.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Com esparregado?
Quando era puto eu não gostava de esparregado. Julgava eu. Quando era puto eu não sabia nada de comidinha. Hoje sei pouco, mas sei o suficiente para não dispensar esparregado. E por mim comia esparregado com tudo. Como as coisas mudam. Tenho quase mais dez quilos do que tinha há quatro anos. Mas isso não tem nada que ver com as minhas caminhadas de uma hora e picos até casa. Faço-o porque a cidade é bonita, porque ando a passar no Palladium todos os dias à procura da Monocle, que este mês traz um artigo sobre Lisboa, porque as noites estão amenas, e porque ando a ver quando é que me apaixono por uma turista linda e de pernas longas, daquelas que vejo no caminho de vez em quando, a descer a avenida do Tivoli ou do Sofitel. É que faz agora duas semanas que vi uma estrela cair e pedi um desejo, logo, nem demorei mais de trinta segundos a pensar, tem de ser logo de seguida, e eu pedi.


Para fazer esparregado começa por se ferver os espinafres, que é diferente de cozê-los, depois de os comprar no mercado ao sábado de manhã. Não confio nos espinafres do Pingo Doce ou do Continente, e do A. C. Santos simplesmente não confio em nada que não esteja embalado — sou um gajo desconfiado. Deita-se os espinafres fervidos e bem escorridos num refogado de azeite e alho, que é estrugido acima de Leiria, o alho cortado fininho e apenas alourado, que há poucas coisas piores do que o sabor de alho queimado. O cheiro a alho nas mãos suporta-se. Mexe-se os espinafres e junta-se farinha e leite a olho, sempre mexendo, até ganhar a consistência pretendida, e não esquecendo o sal e a pimenta, com parcimónia, que esparregado salgado não tem piada e doce demais também não. Se vos disserem que na vez do leite pode juntar-se natas, soltem uma gargalhada forte e depois metam uma cara séria e um olhar impiedoso. Se vos disserem que é costume deitar-se umas gotinhas de limão, levantem só o sobrolho — é uma questão de paladar.


No H3 pode comer-se hambúrguer no prato com esparregado, em vez do arroz ou das batatas fritas que são às rodelas e cheias de gordura, para mostrar que não vêm do pacote. O H3 é aquele restaurante de hambúrguer gourmet, no que tem de restaurante uma casa que está nos centros comerciais de norte a sul do país, e que se apregoa not so fast food. O hambúrguer é alto, da grossura de um dedo e meio, dos meus, e diz que são duzentas gramas de carne de novilho, que vai à chapa no ponto que o cliente desejar. Para mim é médio, e foi mesmo médio, em cheio, o exterior durinho sem estorricar, o interior cor de rosa sem sangrar. Pela consistência do hambúrguer, que não se desfez ao cortar, por oposição àqueles que fazemos em casa com carne picada ou que compramos feitos, frescos, no supermercado, que ao primeiro encosto da faca já se vão esboroando, pela consistência o hambúrguer é decerto processado industrialmente — ok, não há milagres —, mas não se pense que isto é mau. E esta frase foi alterada, porque eu tinha escrito certamente processado industrialmente, mas depois achei que ficava mal.


O hambúrguer vem com duas fatias de queijo amarelo por cima, um borrão de ketchup e outro de maionese com sementes de mostarda, ao lado, e um tufo de cebola frita com qualquer coisa, que aquele docinho não é genuíno. Este é o sexto da lista, o H3 Cheese. Os outros são todos afogados em molhos de cogumelos, à portuguesa ou holandês. O esparregado pareceu-me congelado, algo líquido, mas, como dizem os próprios, é feito de espinafres. A limonada, demasiado doce, deixou-me na dúvida — espremida ou da garrafa? Para esclarecer na Rua Nova do Almada, no casinhoto abaixo do Tribunal da Boa Hora — não se deixem intimidar pelas sandes de panado, ali há mesmo li-mo-na-das. Para rematar, nada de sobremesas, porque se é para dar cabo de tudo procura-se uma Portugália e come-se uma taça de doce de ovos a sério e à séria, mesmo no Verão, ao balcão. Custa seis euros, é saboroso, tem um gosto natural. Para os fãs, também há no pão.

domingo, 9 de agosto de 2009

Olá, acho que nunca falei contigo mas posso pisar-te à vontade?
Acordei com azia e com o barulho dos camiões às cinco e meia da madrugada, umas duas horas depois de nos termos deitado, depois de mais um belo improviso do João no órgão chinês. Na pousada de juventude de Ponte de Lima, estar no quarto ou acampado à beira da estrada nacional é a mesma coisa, no que toca ao ruído. Que bela obra de uma qualquer cabeça pensante que há seis anos não arranjou melhor terreno do que aquele, com vista para a estrada, os carros, as motoretas, os camiões, vrrrruuuummm... vrrrruuuummm. Impossível dormir, mesmo com um copo de vinho verde a mais. Tentei música, tentei rádio, tentei contar camiões, tentei a cabeça debaixo da almofada, tentei refrescar-me na casa de banho e tentei começar de novo. Foram horas. Acabei por convencer o João, o outro, a descer comigo para o pequeno almoço, antes das oito, para, pela primeira vez em muitos anos, beber leite com Nesquik. É que, lá em casa, depois das fases Cola Cao e Ovomaltine regressou-se ao Suchard Express para não mais o deixar. E é o que compro hoje. Mas a lata amarela de tampa azul com o amigável coelhinho, que hoje é um coelhinho todo urbano que veste calças largas e usa boné com a pala para trás, mantém os seus encantos: é muita doce. Eu fui membro do clube Nesquik mas no meu tempo não havia rios de leite chocolatado a correr por prados verdejantes, como há agora. Bebi duas canecas.


Sem mais para fazer ou ver, que Ponte de Lima é pequena e a água do rio é desaconselhada para banhos, depois de todos acordarem, depois de dois jornais lidos, cafés tomados em duas esplanadas, caminhada pela vila e um mergulho solitário dezasseis quilómetros mais acima, em Ponte da Barca, a meio da tarde rumámos a São Pedro do Sul, para a aldeia de Carvalhais. Havia quem tivesse encontro marcado no Andanças, festival internacional de danças populares, há catorze anos a mudar a vida aos pédexumbo. Como eu. No fundo tudo se resume a encontrar um bom professor. Um par que saiba conduzir e tenha paciência para ensinar, e coragem para aguentar umas caneladas e pisadelas. Acho que o festival tem, aliás, esse único objectivo, o de proporcionar encontros entre instrutores informais e instruendos empenhados em deixar-se instruir nos movimentos ritmados de coordenação entre o corpo, as pernas, e os pés — o meu pé direito não me obedece. Depois também tem aquela coisa das aulas e dos ateliês, de manhã, das sessões de djambé ao despique, à tarde na relva da escola primária, dos concertos e espectáculos, de noite, mas duvido que esses sejam os principais atractivos. Por fim, tem cerveja e uma espécie de hidromel. Uma espécie porque o que ali se vende já nada tem que ver com essa antiga bebida fermentada a partir de mel e água, com muito mais partes desta do que daquele, um néctar de cor amarela que tinha um teor alcoólico a rondar os quinze graus. Não. Ali há aguardente, ou bagaço, ou o que o valha, e de mel há um leve aroma. Resultado: bate forte e um dia depois o João, um deles, e recordo que somos três, não conseguirá sequer comer uma torrada. Fraquinho, portanto. O hidromel.


No Andanças até eu dancei. Arranjei uma professora do caraças, bailarina de grande experiência e demorada formação que, vendo-nos abandonados pelos compinchas, e depois de mais um copo, me levou pela mão para o meio da pista e estoicamente me explicou o que fazer, como fazer, e ainda louvou os meus progressos. Assim vale a pena voltar para o ano, mas desta vez que sejam uns três dias, que isto soube a pouco. A minha professora tem a pele branquinha, sardas, olhos claros, esverdeados?, apareceu de unhas vermelhas, calções escuros e chinelo no pé e, como todos os que por lá andavam, de canequinha de alumínio à cintura. Por acaso, quando se baila agarradito a caneca não ajuda. Mas a minha professora fez ballet durante quase vinte anos e irrita-se quando não consegue apanhar o passo daquelas danças assim mais mexidas. Ela chega, fica a observar uns minutos, vai batendo o pé e estudando os movimentos, até que arranca e já ninguém a pára. Profissionalíssima. Há mais de vinte anos que sabia dela, morámos na mesma rua, mas acho que nunca lhe tinha dito mais do que olá. Eu jogava à bola, ela aparecia pouco. Podem pedir o número para umas aulas, que eu não vos dou.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Sabes onde é que há bons limonetes?
Imbuído do espírito conquistador, eu tinha uma missão: comer os limonetes da Confeitaria Moura em Santo Tirso, que mesmo não tendo provado dos concorrentes posso afiançar que são os melhores. Trata-se de um pastel que tem uma carapaça de massa que parece de suspiro ou daquela dos jesuítas. No topo, um fiozinho em cruz. O recheio parece, à primeira vista, de um pastel de feijão e por isso tem de se comer dois. Não é doce, é suave, não é cremoso, é pastoso, e não consegui que me dessem a receita ou e
xplicassem a origem do bolinho que tem nome de erva para chá. O mais que consegui arrancar da senhora que lá estava, pouco conversadora para quem lhe confessou ter feito quilómetros só para ir ali provar a iguaria aconselhada por uma moça da terra, foi que a casa é mais do que centenária, com uns cento e dezassete anos. Não tem nada que enganar: fica no centro, ao pé da Caixa Geral de Depósitos. O teu mapa é que não ajudou muito porque acho que me enganei a lê-lo.

Foi em Santo Tirso que o João comprou o órgão que irá animar o resto da viagem. Custou cinco euros numa loja chinesa, tem microfone, efeitos, volume com duas posições hi e lo que não fazem a menor diferença, funciona a quatro pilhas e tem entrada para um alimentador que não traz. O Miles XH322A compra-se em lotes de trinta e seis a setenta e três dólares e oitenta cêntimos, o que dá dois dólares e cinco cêntimos por unidade, que vendidas na loja a cinco euros dá uma margem de três euros e cinquenta e cinco cêntimos por cada órgão, câmbio actual e a preços do ebuychina.com, o que traduzido para português e despachando a mercadoria num contentor cheio de outras coisas para justificar os custos de envio é um granda negócio. A dois dólares por cada brinquedo, nem quero imaginar quanto ganha o operário chinês. Import-export é que está a dar e nós gastamos dinheiro naquelas tralhas que depois duram um mês, se tanto. Mas a musiquinha que dali sai é uma granda pinta e até Ponte de Lima viajámos ao som dos improvisos do João e do David. Acho que há uma filmagem disso. O David, aliás, filmou os primeiros dias da aventura e ficou de montar um pequeno vídeo sobre a odisseia. Pena que a partir do vinho verde não mais se tenha filmado. Coisas que acontecem.

O José João chegou pedindo um cigarro e acabou fumando meio maço, sentado na nossa mesa, com a mulher, espanhola, bebendo bagaço e mostrando duzentas e oitenta e uma fotografias da viagem que estão fazendo desde Dezembro, a pé. Começou por ser o caminho de Santiago, desde Tarragona até Compostela, agora é uma caminhada até Fátima que terminará lá para o final do mês em Corroios, onde o José João vai visitar o seu velhote, que está num lar. Caminhar foi a forma que o José João e a mulher encontraram para não vagabundear por Tarragona depois de perderem os empregos e a casa onde viviam. É a crise, diz ele, afagando o bigode, meio em português, meio em castelhano, que este carpinteiro metálico já leva vinte anos de Espanha e está zangado com o Zapatero, que “fodeu isto tudo, pá, crê no que te digo”. Não sabe se regressará. Agora vive um dia de cada vez, sem pressa de chegar, sem pressa de sair, porque quem tem pressa não termina a viagem, acampando pelo caminho, um albergue de peregrinos aqui, outro acolá, pernoitar num quartel de bombeiros, com companheiros que encontram pela estrada, comendo o que lhes oferecem, comprando um chouriço no minimercado com dinheiro que lhes dão os amigos que fazem na jornada, seguindo em frente com a determinação de não parar. Cigarros é que não, é um vício caro e pelo caminho há sempre quem dispense um. Depois de fazeres um caminho de Santiago só queres fazer outro, diz, com a voz rouca, a pele queimada do sol, as pernas magras dos cinco mil quilómetros que diz ter percorrido.


No pequeno café do outro lado da ponte medieval e romana de Ponte de Lima conhecemos também o Melo e a Beatriz, pai e filha de cinco anos, que estavam na mesa do lado e com quem acabaríamos por jantar, por sugestão dele, num tal de Katequero, entre brincadeiras com a miúda, que a mãe não teve férias este ano. Serviu-nos a Céline, pele branca, cabelo castanho apanhado, olhos claros e sorriso envergonhado com as nossas palhaçadas para a Beatriz e o charme palerma para ela, que está de férias a trabalhar para juntar uns dinheiros, que terminou agora o décimo segundo ano e quer ser veterinária, só não sabe onde. O bacalhau à minhota é o melhor prato da casa e meia dose chega para dois.


Ainda esperámos por ela no Rampinha, mas nada. Só o Luís, atrás do balcão, de barba e cabelo brancos, mal disposto e facilmente irritável, mas que acabou a noite a escrever-me nas costas do cartão de visita do bar “do amigo Luís Tavares”. Por momentos ainda pensei que escrevesse “do camarada”, mas enganei-me. O Luís é comunista e o Rampinha também. Por todo o lado, mas por todo o lado mesmo, há fotografias, caricaturas, recortes e textos de e sobre Che Guevara. O suporte para os pés nos bancos do balcão são a cara do Che, a daquele retrato famoso, recortada numa chapa de aço. Nas paredes amarelecidas estão pintados a preto dois retratos do comandante e um do Zeca Afonso. Aqueles vão morrer ali, no dia em que fechar o Rampinha, que há vinte e dois anos conserva a mesma imagem, ao início da Rua Formosa, que é uma rampa. Lá está.
Na cidade do rock amanhece muito depressa
Desde logo porque o El Rock é o bar mais antigo do Largo da Oliveira, no centro histórico de Guimarães, e junta ali muita gente diferente, desde a malta dos futebóis aos turistas estrangeiros. Guimarães também não é assim muito grande e a zona boémia, para beber um copo e conversar, de noite ou de dia, parece ser mesmo por ali, naquelas pracinhas e larguinhos ladeados de casas de pedra cinzenta, telhados pronunciados para contrariar a neve, varandas e janelas de madeira decoradas com dezenas de bandeiras da fundação, a que tem uma cruz azul sobre fundo branco, o símbolo do Condado Portucalense que diz que é derivada do pendão de Henrique de Borgonha, o primeiro a mandar no burgo. Ali há esplanadas de cafés, de bares e de restaurantes para todos os gostos e todos gostámos, sobretudo das pessoas. O Convívio, no Largo da Misericórdia, uma associação cultural e recreativa fundada em mil novecentos e sessenta e um, é ponto de passagem obrigatória para se encontrar com quem conversar sobre o que quer que seja. Com a Mafalda, a nostálgica, sobre a capital europeia da cultura daqui a dois anos, com a Raquel, a do sorriso, sobre os desejos para o futuro da cidade e o problema do desemprego no concelho, com o João, o da máquina ao peito e dentes amarelos, sobre fotografias e a dona Suze. O Convívio está, por exemplo, na origem do Guimarães Jazz e se te disserem que fecha às duas da manhã isso é mesmo um boato, porque nunca saímos dali antes das cinco, que tem a particularidade de ser a hora ideal para caminhar até ao tio Júlio, ali próximo à praça do Toural, onde meia Guimarães vai aconchegar o estômago com tostas com molho especial, francesinhas, hambúrgueres, cachorros, moelas ou o que mais houver feito pela mulher do tio Júlio.

Não há reclamos luminosos nas paredes nem sinais
nas duas portas verdes de metal, mas qualquer pessoa sabe indicar o sítio, que é minúsculo, tem uma tostadeira e uma pequena chapa que só mesmo com a destreza do chefe é que dão conta da avalanche de pedidos quando a noite começa a clarear. O hambúrguer leva queijo, maionese, ketchup e mostarda, para agradar a todos, mas o melhor é mesmo o bem que faz e o preço. Ou a organização da casa: o tio Júlio chega às seis da tarde e fica até de manhã, até às oito ou nove, conforme o negócio, até que se fecha a porta durante meia hora para que a dona Rosa, a mulher do patrão, limpe tudo com aprumo e torne a abrir até ao final da tarde, que é quando regressa o homem da casa. São vinte e três horas e meia sobre vinte e três horas e meia há mais de vinte anos, com descanso na véspera de Natal e pouco mais. De dia, que chega sempre depressa demais, está quase vazio, mas o café é bem melhor que o da pousada de juventude, mesmo ali ao lado, que é uma aposta seguríssima, ao contrário da de Ponte de Lima, como se verá.

Subimos à Penha no teleférico, vimos as vistas desde o templo mariano que está no topo do monte de onde os betetistas da terra praticam o downhill, conquistámos o castelo e demos um abraço ao Afonso. Falhámos o Centro Cultural Vila Flor, as Dominicas e o CAR. Estaremos de regresso em Novembro, a vinte e nove, para a festa do pinheiro, e já sabemos onde vamos jantar: no & Etc, onde não há nada mau. Uma simples casa de óptimos grelhados com um vinho verde de marca própria e onde a sobremesa é inqualificável: uma travessa cheia de fruta e pedaços de cada um dos doces que a casa tiver na carta naquela noite — impossível comer tudo. Não faz almoços, não aceita marcações, o patrão não sorri e não quer lá mariquinhas, que é coisa que não serve ao John Portsmouth Football Club Westw
ood, o mais emblemático adepto do clube inglês que foi a Guimarães perder dois jogos.
O tipo mudou o nome, está todo tatuado com motivos alusivos ao jogo, mede uns dois metros, pesa uns cem quilos e tem capacidade para transportar uma dezena de litros de álcool na barriga. Vê-se bem ao longe porque anda despido a rigor, de calção, colete, chapéu e botas de xadrez azul e branco. O cinto tem umas luzinhas a piscar e a dizer hello. E apesar de intimidar é mesmo simpático. De cinco em cinco minutos lembrava-se de gritar num tom muito rouco e grave “vitóóóóóória” e “puuuuoooorrtsmuth”, que se percebia logo porque as bebidas pousadas nas mesas num raio de cinco metros começavam a vibrar — podem ler sobre ele aqui e aqui. O David adorou conversar com o Adam, ou o Dave, já não sei, um dos ingleses que se sentou connosco e passou duas horas a oferecer da sua amêndoa amarga, que bebia da garrafa que lhe custou apenas três euros no supermercado, encantado com Portugal. Quem não fica?

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Uma lamentável cena de pugilato
Em Guimarães, onde não se come peixe. O robalo tinha para aí uns dois quilos, era do mar, grande, e demorou a assar. Não é qualquer pessoa que assa bem um peixe daquele tamanho, por isso há que ser um homem da faina. O empregado disse logo “esse mais pequeno é de viveiro, como a dourada”. Eu não percebo, respeitando, a opção pela dourada. Nem quando é ‘ao sal’. Foi alimentada a farinhas, viveu sem desfrutar da paisagem do fundo dos mares e andou a curta vida toda à cabeçada com as outras douradas. E raramente sabe a alguma coisa. Mas que é um belo negócio, deve ser. Aquele robalo também foi, para o restaurante, mas o dinheiro foi muito bem empregue. Chegou-nos aberto ao meio, escalado, amarelo por dentro e do outro lado com a pele quase seca e estaladiça mas não estorricada, gigante, a cabeça e o rabo de fora da travessa. Sem azeite ou limão, apenas com o sal que levou na grelha, soube genuinamente a peixe, a um peixe que não é gordo, que é branco e suculento. Que é o mesmo que dizer: ‘soube’, por oposição a ‘não ter gosto’. O bom robalo acompanha-se só com vinho branco, que as batatas, os legumes ou a salada podem bem esperar e seguir depois, à laia de entretenha até que os outros acabem, e o Prova Régia foi uma bela descoberta, ali de Bucelas, monocasta arinto, fresco, frutado, embora um pedacinho ácido, com apontamentos pouco habituais de maracujá e suor humano, e isto já escreve o crítico Pedro Gomes, porque eu não senti nada disso nem cheirava mal, o de 2006 melhor que o de 2007 — sim, foram duas garrafas — e se for comprado no supermercado, que também lá o há, sabe trezentos por cento melhor, na exacta proporção da metidela de unha dos estabelecimentos de restauração e comércio de bebidas, pois é um vinho muito em conta nas grandes superfícies. Na Barraca, em Burgau, a caminho de Vila do Bispo, há bom peixe fresco, turistas ingleses parvos e barulhentos, e “monkfish with rice” que é arroz de tamboril. Fica junto à praia, bem lá em baixo, não tem nada que ver que não seja a vista de mar, a luz é fluorescente e os guardanapos de papel, não há cá requintes. Nem há peixe: há pêxe. De resto, os dias em Lagos foram, desta vez, assim: menu único. Se tinha espinhas ou concha, comia-se. Sardinhas — há todo um conhecimento sobre a subespécie que habita as águas do Algarve, diferente das que se encontram cá por cima, mas que eu não domino a não ser na constatação do palato —, amêijoas, batatas de molho frio, mexilhões e melão branco. E pela primeira vez um misto algarvio: alfarroba, amêndoa e figo, três camadas diferentes de cor e de sabor, cuja ordem e proporção não recordo, dispostas numa forma baixa das que se usam para as tartes, uma sobremesa servida à fatia e que não é doce mas é saborosa pelo contraste intenso do figo, que é escuro e tem grainhas, do travo levemente amargo da amêndoa, e do aroma frutado da alfarroba — é o melhor que consigo, à distância de dias. Ficaram adiados os perceves, os salmonetes ou as cavalas. Enfim, para uma outra vez, que não sei quando será. Antigamente era uma vez por ano e logo um mês inteiro. Eram as férias, quando as coisas tinham outro cheiro, outras pessoas, outros ritmos, outros afazeres de cá e de lá. Era outra vida. Afugentar as gaivotas na Meia Praia às oito e meia da manhã, comer melancia depois do almoço, dormir a sesta, andar de bicicleta, os cães e a padaria, brincar na rua até tarde, ouvir o comboio ao longe nas noites quentes de calmaria. Depois cresce-se, as pessoas desaparecem, mudam-se as vontades e as coisas parece que perdem sentido. Mesmo com maiores facilidades em ir e estar. Só que as facilidades não são nada. Lagos, no entanto, continua sendo uma cidade bem bonita. Como Guimarães, que nos surpreendeu a todos pela convivência entre a jovialidade das gentes e a antiguidade dos espaços. É também de onde temos a maior parte das fotografias destes dias porque depois, na aldeia de Carvalhais, andaremos todos muito ocupados a (tentar) dançar e a máquina, embora à cintura, nem sairá da bolsa. Reza, contudo, que nem foi por alguma bolsa que, no Convívio, dois sujeitos se pegaram à pancada por volta das três da manhã, hora de muita cerveja bebida, na fila para a casa de banho. O Convívio é uma associação cultural que explora um bar e passou-se tudo diante do João. Se tivesse sobrado para o lado dele tinha apanhado, que os reflexos já estavam cansados. Uma lamentável cena de pugilato que deu por terminada a festa, um duelo de pôr-do-sol com discos na vez das pistolas, daqueles que recua dez passos e dispara o teu melhor hit do rock de sempre com didjeis de dois bares a ver quem animava mais. À custa dos boxeurs terminou antecipadamente às cinco da manhã, uma boa hora para ir comer hambúrgueres ao tio Júlio, que nunca fecha mesmo.