sábado, 28 de maio de 2005

Coisas antigas e sem data IV

A minha obsessão pelo documento impediu-me de ver para além da linha ténue que demarca o campo da arte. É uma miopia de que sofro. Esta limitação para a criação é uma terrível frustração. Tanto mais que a vontade é grande. A beleza sim, vejo-a. Mas nunca a consegui captar. E na necessidade de alguma mudança, interrompi.

A visualização diária do real custa, consome. Mas revigora, também. O exercício de observação do barco no rio, da água que se separa no casco, das pessoas bonecos sérios, do cego no metro, do velhote sentado no jardim e de todos os outros e de tudo o mais, é extasiante por ser belo. É a realidade que não magoa – porque não é a nossa.

Se naquela manhã ele tivesse demorado um pouco mais no banho, provavelmente estaria morto, esmagado por uma parede de tijolo. O gás teria continuado a sair pelo bico sem chama do fogão, porque um púcaro de leite foi esquecido e ferveu e derramou e abafou o lume mas não o gás. De lençol à cintura, foi quando sentiu o cheiro forte a propano e então caminhou, vagaroso, seguindo o ruído sssssssssssssssssss e girou o botão. Abriu uma janela e outras mais pelo caminho até ao quarto. Cinco minutos mais, ou quatro ou três ou dois ou apenas um e o gás poderia ter subido à flama do esquentador, meio metro acima.

Mesmo assim, o ferry continuaria a cortar o rio, as marionetas iriam para o emprego, o cego a pedir no metro e o velhote a deitar pão aos pombos e todos e tudo porque o sol se haveria de pôr também.

A realidade em que somos actores principais, o dia que amanhece na nossa almofada e ali acaba horas depois, consome-nos; e porque não a vemos de fora, encontramo-nos de mãos e pés atados e com uma mordaça. E é silêncio e é cinzento. Umas vezes mais claro, outras vezes mais escuro.

A simplicidade das coisas não-objectos assusta e arrebata. Mas, que assalte – sim; que assuste – não.

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