segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Agora que penso nisso, passei uma semana sem beber leite
Diz que foi o Dom Dinis que mandou construir o castelo de Marvão. Percebe-se. O rei lavrador nasceu num planalto, em Santarém, e sabendo do alto de um morro em granito a mais de oitocentos metros acima do nível do mar não hesitou em ali erguer a fortaleza. Ou então foi para travar a mania que os de Castela tinham de vir para este lado da fronteira, como se isto fosse deles. É que Marvão está a meia dúzia de quilómetros de Espanha e dava um excelente posto de vigia, até perder de vista. De resto, ali próximo passava a estrada romana que ligava Cáceres a Santarém, e no sopé do monte passa o rio Sever e para o atravessar tinha de se pagar. A Portagem é hoje a aldeia onde se compra o jornal, porque em Marvão não há tabacaria. Nem pastelaria. Nem mais de cento e cinquenta pessoas. Mas é a vila mais alta do reino de Portugal e é a sede do concelho. Concelho? Dom Dinis não teria imaginado isso, nem que a albergaria na praça central da vila fosse chamar-se El Rei Dom Manuel, o bem-aventurado. Uma facadinha nas costas, portanto. É por estas e por outras que simpatizo com a ideia de uma reforma administrativa do território, que nada tem que ver com a semana que passei em Castelo de Vide. Acho que há presidentes de junta a mais. É só isso. Porque das gentes de Marvão não tenho a menor queixa. Ora veja-se.

Assim que perguntei por uma lavandaria onde deixar algumas camisas a engomar a dona da albergaria disse logo deixe estar que eu trato disso. E à noite lá estavam as quatro peças direitinhas e impecavelmente penduradas em cabides no roupeiro do meu quarto. A única coisa de que me esqueci foi que os alentejanos não dão ponto sem nó e por isso fui apanhado de surpresa ao segundo dia, de manhã, quando ia a sair: olhe que o homem gostava de falar consigo, disse-me o marido da dona da albergaria. O presidente da câmara passou por aqui, viu o carro da rádio estacionado e pensou logo que você podia dar uma ajuda. Em quê? É que vamos ter aqui a primeira feira do café, e há tradição nisto, porque estamos próximos da fronteira, contrabandeava-se café, e depois também houve aqui duas torrefacções, é tradição, acredite João Pedro. Eu acredito, eu acredito, mas não posso prometer, sabe que essas coisas não são comigo, e o homem já me tratava por João Pedro. É que a gente precisa de divulgar isto. Pois, pois. Mas vá lá falar com ele, o presidente tem um restaurante lá em Castelo de Vide, se calhar você ia lá almoçar com ele e coiso. Pois, pois, eu estou ali em trabalho, o tempo não é muito, mas logo se vê o que se arranja. Pense lá nisso. Vou pensar, vou pensar.

Ao sexto dia já via tudo laranja. O pôr do sol era bonito porque era laranja. Ao pequeno-almoço bebia sumo de laranja. À sobremesa do jantar perguntava se havia torta de laranja e acabava por comer encharcada de amêndoa só porque era cor de laranja. As moças — as que tinham mais de vinte aninhos — ficavam bem de laranja. Só já não podia é com os laranjinhas. Por isso é que resolvi apagar um parágrafo enorme que escrevi sobre os seis dias que passei com eles. Não sobrou nem uma vírgula. Como me parece não ter sobrado um minuto de jeito. Não sei que raio aconteceu, mas o tempo passou depressa demais. Nas horas livres fui a Portalegre, mas não sei o que fiz, fui a Nisa, mas consegui comer na pior taberna da vila, fui às ruínas da cidade romana de Ammaia e deparei-me com um triste espectáculo de abandono e falta de zelo, apesar dos dois euros que pagamos à entrada, vi Castelo de Vide e vi Marvão mas foi como em Portalegre, não sei o que fiz. Já nem sei onde guardei a factura do restaurante Sever, que já se está a ver onde fica, de que agora precisava para escrever sobre o almoço que daria o título a este texto. Caraças. É que não me recordo do que comemos. Javali à casa, parecido à carne de porco frita à portuguesa, mas mais rijo — o javali é um bicho duro, tem aqueles dentes salientes. Dentes salientes não funciona lá muito bem. Mas fica assim. Arroz de lebre, com um pedacinho a mais de sangue e a menos de limão, mas bem guarnecido de carne, suculenta, saborosa, e o arroz malandrino. Veado com castanhas, que na verdade é gamo, o melhor prato de todos. Cortada às fatias, a carne é um pouco gorda, mas o sabor é intenso. As castanhas congeladas e sem gosto deviam obrigar a adiar aquilo tudo para o Outono. Todos ganhavam. Ainda deixei a sugestão ao moço que nos serviu, que me retribuiu com a melhor sobremesa da casa. O tecolameco serve-se à fatia. A base é de amêndoa, o resto é ovo e açúcar e é divinal, porque no final de contas nem é muito doce. A sério! Mas, pronto, reconheço que à distância de dias e sem os meus apontamentos não consigo melhor. Costumo rabiscar umas notas de prova nas costas do papelito e sem factura agora nem me vão pagar a refeição. Estou duplamente lixado. Um bocado como fiquei com Óbidos.

Terminada a missão alentejana, tarde e a más horas, achei por bem oferecer-me um jantar de faca e garfo na outra ponta do país. Ou quase, vá. Então, depois de dormir uma semana dentro de muralhas, e de passar os dias numa terra de castelo, rumei a Óbidos, que também está circunscrita às paredes da fortaleza. Só que em Óbidos não se janta. Só se ginja. Em todo o lado, que também não é muito lado, porque aquilo é mais pequeno que Marvão, há uma banca ou uma casa que vende ginja, em copo de plástico, de barro ou de chocolate. Se for de plástico custa um euro, se for de barro custa mais cinquenta cêntimos e pode trazer-se a canequinha pintada de azul e branco, se for de chocolate custa o mesmo euro e pode comer-se. Que era precisamente o que eu queria. Depois de dar uma volta inteira à vila decidi ir ao posto de turismo. Sabe, nós não podemos recomendar, mas temos aqui um mapa com os restaurantes. Que são catorze e a grande maioria fecha ao domingo. Que é uma atitude que eu subscrevo e aconselho. Em Óbidos, onde ao fim-de-semana chegam autocarros cheios de velhotes ou de crianças, e carrinhas com famílias de quatro, mais espanhóis que portugueses, mas também por lá ouvi franceses, italianos, e uma francesa em particular, mas já lá vamos, em Óbidos, dizia eu, o melhor que o proprietário de um restaurante tem a fazer em pleno Agosto é fechar as portas ao domingo. Descanso semanal do pessoal. Abra à segunda, senhor empresário. Mas feche ao domingo. Ao domingo, afinal, aquilo só está cheio, mas não se passa nada. Como na sua cabecinha: não se passa mesmo nada.

Acabei no Conquistador. Porque, no fundo, esta semana foi dedicada aos homens com uma missão. Da mesma maneira que o Dom Dinis ordenou a construção do castelo de Marvão, da mesma maneira que a Manuela está a “lutar” — precisamente, com aspas — para chegar a chefe de governo, da mesma maneira que os jotinhas foram aprender a ser jotinhas e cenário de mini-tele-comícios ao jantar, o fulano que está à frente do Conquistador, o Afonso, têm uma missão: fazer com que não se volte lá. É caro — mas isso, em abono da verdade, são todos, para turista ver — e banal. Azeitonas acabadas de sair do frigorífico e com sal grosso ao molho? Chouriço tipo corrente assado? Uma posta baixa de bacalhau no forno? Batata a murro por esmurrar? O que safou a Louise e a amiga foi eu estar ali em missão. As francesas são sempre assim: andam aos pares e há a Louise e a amiga, que é a simpática. Esta tudo dito. Lá lhes pedi as sardinhas, as batatinhas, a salada de tomate com cebola e orégãos e um vinho verde fresco. A Louise tinha o cabelo castanho claro acima dos ombros, a pele branca com umas poucas sardas, o nariz fino e arrebitado, os olhos verdes, as mãos delicadas e as unhas sem verniz, que isto de andar de mochila às costas não perdoa, digo eu, e vestia um vestido verde, curto, acima do joelho, pois claro, mais de trinta e cinco graus à sombra, e estava a descer desde o Porto, aos pedaços, para fazer render as semanas. Ainda disse ao fulano, trate bem as moças!, mas aquele sorriso que me atirou não augurou nada de bom.

6 comentários:

maria disse...

Espera-te uma reforma a escrever críticas numa revista de alta culinária!!

eh eh

Márcio disse...

Caro amigo,
Gostei do seu testemunho, mas tenho a informar que não foi D. Dinis quem mandou contruir o Castelo de Marvão, este mandou contruir apena a muralha (fortificação).
O Castelo foi conquistado por D. Afonso Henriques aos Mouros no ano de 1166 tendo posteriormente sido reconstruido e possivelmente remodelado pelo mesmo. Assim, o Castelo de Marvão foi construido por IBN Marwan entre entre os anos 876 e 877.

JPC disse...

Tem razão, sim senhor. O Castelo já lá estava quando Dom Dinis ordenou uma intervenção de recuperação ou ampliação. Não procurei fontes, escrevi de ouvido. Mas a história daquela zona é realmente interessante e merece umas leituras. Obrigado.

JPC disse...

Maria, venha de lá essa revista e essa reforma :P

Rui Coelho disse...

já conheço a resposta, mas deixa-me fazer a pergunta na mesma: pediste ao dono de um restaurante chamado Conquistador, um Afonso que ficará conhecido por tudo fazer para que os seus clientes não voltem, pediste a este senhor para "tratar bem" de duas miúdas francesas de mochila às costas?

tss tss.

JPC disse...

E o que é que isso diz de mim? Que sou um cavalheiro. Ou apenas um moço às direitas. Como tu, de resto, meu caro. Tudo o que sei aprendi contigo :)