quarta-feira, 26 de abril de 2006

Uma ópera chata e um cigano loiro
«És muito sério», disseste-me. Não foi a primeira vez que o ouvi, mas nem por isso começámos mal. Gostei bastante da conversa. E do teu sorriso, o mesmo com que me atiraste essa à cara. Hoje, agora, não estou cansado, esse estado sobre que te insurges. Mas porque não sou pedra, e sem contudo me conhecer hipocondríaco, dói-me ligeiramente a cabeça, um latejar ritmado dos dois lados, como que uma prensa. E o dia nem começou cedo, pelo que não é da acumulação de horas. É de muito e do que te falei, daquilo, do que aqui se passa. E isso, sim, é extenuante, agastante e muito destruidor. A minha última pergunta, ontem, saiu trocada: como nos vemos outra vez?, é que está certa.

Quando uma criança grita que vai morrer porque tem SIDA, o impacto é maior. Quando o exterior familiar oferece o contrário da protecção, ao ponto de se querer voltar a uma reclusão institucional, paramos para pensar. Quando o João e a Bilú vêem reduzido o valor do cartão que recolheram e vendem para reciclagem por estar molhado, ou a cotação do alumínio baixar porque o dólar também emagreceu, ou o pneu furado do carro alugado por cinco reais reduzir em outros cinco a receita do dia, mas voltam para casa com o amor fraterno e a promessa de que amanhã sim conseguirão mais e o tal bife com batatas fritas, não podemos deixar de sorrir. Quando o Ciro se suicida na parede com a sombra das suas mãos em arma de cano enfiado na boca, e cai redondo em dança no chão, recordamos a sua expressão de felicidade no carrossel e a simétrica quando escuta os gritos da mãe à porta de casa. E tudo isto muito bem sonorizado.

«All The Invisible Children» teve hoje antestreia em Portugal, no festival Indie Lisboa, no Fórum Lx. Premiada em Veneza em 2005, a obra compõe-se de sete curtas-metragens realizadas por oito realizadores, renomados ou nem por isso. Genericamente retrata a posição frágil das crianças no mundo, pelo mundo, em contextos de guerra, pobreza e desestruturação, nos seus sentidos alargados.

Ficaram-me na retina, e no ouvido: «Blue Gypsy», de Emir Kusturica, filme que conjuga humor e dramatismo, com a ironia habitual e muito boa música, além de personagens por demais fotográficos; «Jesus Children Of America», de Spike Lee, cru na forma como oferece a realidade dos filhos da SIDA e a discriminição dos seropositivos que, se incomoda nos adultos, perturba nas crianças; «João And Bilú», de Kátia Lund, enternece; «Ciro», de Stefano Veneruso, é um bailado. Quando passar nas salas, procurem-no: «All The Invisible Children».

Hoje, no dia em que se assinalaram 32 anos sobre o golpe de Estado que devolveu a democracia e liberdade a este país; hoje, que o sol perdeu a timidez e o dia pediu mar; hoje, que debaixo de um céu alaranjado desejei em brincadeira ter um descapotável para não fazer figura de parvo — e sim figura de rico — com a cabeça quase totalmente de fora da janela a apanhar o vento quase frio e tão revigorante.

E ainda olhei em volta, a ver se te via.

1 comentário:

Anónimo disse...

Isto está um bocado parado, não? Até parece que andas muito ocupado...