terça-feira, 10 de julho de 2007

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Um hálito de sonho

E não há muitas palavras que expliquem nem lotes de Colgate contrafeitos que cheguem para me contrariar. Porque eu vejo como vejo. E aqui sou rei e senhor.
Mesmo quando me magoo. Rei e senhor.
Mais rei, que senhor.
Rei sem reino.
Onde está a cerca? Quero mandar construir um palácio. Onde haverá sempre música e uma baqueta de metal a riscar o prato. Eu aprenderei o piano, só para te embalar. E o António será visita frequente. Porque o coronel Aureliano Buendia morreu no livro. Não te arrepias? “Se me tivesses beijado tinha sido tão diferente”. Garantes? “Estou só a dizer...” Estás a ver se me distrais... (sorri) Olha que eu não quero pensar. Só quero escrever. Deixa-me escrever, sim? “Escrevemos porque ninguém nos ouve.” Eu escrevo para que me vejas. (e como quem pede, grave) “Recorda, só; não si...” Sim, descansa. (interrompi) A razão está do teu lado. Consigo vê-la. E nem preciso subir à torre do meu palácio. “Vê-se bem, não é?” (silêncio, e depois) Achas que vai ser fácil? “Hondt é; Duverger e os outros já não digo.” Tenho dois dias. “Aproveita.” (virou costas; os cabelos castanhos caindo entre as omoplatas, dois ou três sinais na pele morena)
Já te disse hoje, sem ser logo de manhã, depois de acordar, quando já vestiste o vestidinho branco curto que contrasta com as tuas pernas bronzeadas, as alças fininhas nos teus ombros queimados, o decote que mostra um pouco mais da curva dos teus seios — esse sinal aí à esquerda —, os teus pés descalços no chão fresco que sabe tão bem porque é Verão, os teus olhos que não me olham enquanto sorris, matreira, e despejas o leite na tigela dos cereais, e eu sigo as tuas sobrancelhas e a tua boca e as tuas mãos com a atenção e o desejo de quem desenha um nu; já te disse hoje? Já te contei hoje, porque não sei cantar, ou já terei posto hoje a tocar, quando saíste do duche, aquela canção em que o Jorge diz que “fazes pinturas de sonhos, e pintas o sol na minha mão”, já?
Já te disse hoje que tens um hálito de sonho?


“Um hálito de sonho”, a música que sonoriza e dá nome a este rabisco, faz parte de “Movimentos Perpétuos, Música para Carlos Paredes” (2003)
Pode seguir-se a agenda de João Lobo, um dos intérpretes, aqui

2 comentários:

Cátia Simões disse...

Um arrepio, este texto... como todos!!!

[penso sempre que em Macondo tudo seria visto com outros olhos. Gostava que Macondo existisse mesmo e que o coronel Aureliano Buendia se sentasse à mesa comigo]

Maria de Castro disse...

O Jorge, ou a Mafalda?, ainda consegue dizer mais qualquer coisinha:

"(...)és mistura de vento e lama
entre os luares perdidos no chão

Em cada noite sem rumo
tu és igual a mim
De cada vez que procuro
preciso um abrigo
eu sou igual a ti(...)"