sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

Um Porto branco seco
Que se lembrasse, nunca lhe tinha acontecido uma mulher pedir-lhe o número de telefone. Muito menos ligar-lhe cinco minutos depois de ter saído. Rindo e convidando-o para um jantar, sexta-feira, na Casa do Algarve, no Chiado. Em grupo. Aceitou, claro. E deitou-se sorrindo, curioso.

Na tarde seguinte resolveu desafiá-la para uma odisseia vínica. O aniversário de Tiago, o amigo do peito, já tinha passado e ele não tinha conseguido comprar atempadamente o vinho que queria oferecer. Então reservou a tarde para correr algumas garrafeiras da cidade e quis levá-la consigo. Era um teste, sim. Conhecê-la um pouco melhor, os dois sozinhos num campo neutro, sem horários que não os do fecho das lojas, sem constrangimentos. Para ver que assuntos surgiam, para ver se ela gostava ser deixada passar primeiro, para ver como contribuía para o passeio sem programa, para ouvir o que dizia e de que forma reagiam os olhos dela aos seus filmes preferidos, discos repetidos, lugares mais queridos e se gostava do nome que ele já tinha escolhido para o primogénito, o que, aliás, era condição inegociável mas, descanse-se, pode não ser o primeiro nome. Para saber dela e dos seus. Para se mostrar, ele e os seus. E os sentimentos também.

Joaquim Pedro — e Pedro é apelido — era um rapaz introvertido até ficar confortável, até ficar seguro de si, até a falsa timidez desaparecer, que não era falsa porque fosse mentirosa, mas sim a primeira casca a sair logo que sentisse reciprocidade no contacto.

Começaram na Garrafeira de Campo de Ourique, ali próximo à rua Ferreira Borges. O bairro tinha gente, lojas de todos os tipos, eléctricos a passar, pastelarias à antiga e até uma vista sobre o rio, a ponte e o Cristo Rei. Se anoitecesse entretanto, as iluminações de Natal comporiam o cenário e nem estava muito frio. Quase perfeito. Só não o foi porque o vinho, que havia no armazém, como meia hora antes a mulher tinha afiançado, que podiam até ir beber um café e voltar logo para buscar, afinal não havia. Nem uma garrafa. «Eu sei que é desagradável perguntar, mas então e na concorrência? Pode indicar alguém aqui perto?...» Visivelmente melindrada, a mulher lá deu um número. «Pode ligar daqui», disse, virando o telefone do balcão na direcção de Joaquim. «Ora essa, não é necessário…» Quando ele saiu já Clara se ria, como aliás só ela, dona de um sorriso e de um riso encantadores, de tão genuínos.

Clara Menezes de Andrade, ou «Clara, como a água», que foi como se apresentou da primeira vez. Clara era da altura de Joaquim, tinha olhos castanhos e cabelo curto acima dos ombros, de uma cor acobreada, que Joaquim lamenta não conseguir descrever melhor, porque é manifestamente ignorante no assunto e as suas três irmãs têm todas o cabelo preto, a mãe é loira pintada, e mais longe que isso ele não vai. Acobreado, portanto. O corpo era robusto, pelo que Joaquim já tinha visto, embora não hoje, que Clara vestia um casaco cinzento até aos joelhos. Robusto no sentido oposto àqueles corpos franzinos de miúdas magras, mas não robusto de peso excessivo, nada disso. Seria mais na categoria de “ossos largos”, e por aqui se vê que Joaquim não é nenhum Eça e mete os pés pelas mãos nesta coisa das descrições. Contudo, não se duvide: era sensual, e não somente pelos seios pronunciados, como o Bernardo e outros dos seus amigos notavam, como que hipnotizados e bastante primários. As mãos — e Joaquim é um homem de mãos — eram grandes com dedos longos e para ele, numa palavra, bonitas. O resto, que era ainda o início, resumia-se assim: extrovertida, obstinada, noctívaga e louca a conduzir.

Antes tinham passado tempo numa pastelaria, de que nenhum recorda o nome, mas que tem um toldo verde e que fica numa esquina junto a um jardim. Que tem apenas três mesas com duas cadeiras cada, duas delas junto a janelas e a outra encostada a uma parede dos fundos. Dois balcões avançados até mais de meio da casa, duas senhoras e dois senhores atendendo, e reformados habituais comendo rapidamente e em pé. Bolos ou especialidades, não se sabe. Joaquim bebeu um café, cheio, e Clara um galão, que veio tão quente que escaldava os dedos e teve que ser mudado de copo. À mesa, falaram de percursos passados e da relação com os pais. Em boa verdade, falou sobretudo Joaquim, entusiasmado com as perguntas empenhadas que Clara lhe fazia. Aliás — e que fique registado —, foi ela quem puxou a conversa dos “ex” sem saber se havia alguma, porquanto não se conheciam tão bem, o que Joaquim interpretou, com bastante agrado, tratar-se de uma pergunta interessada.

Depois de caminhar pela rua e enquanto ele descobria ao telefone que a concorrência indicada pela mulher mal disposta também não tinha o vinho, Clara olhava modelos e fazia perguntas numa sapataria. No bairro há muitas e os sapatos são uma das suas predilecções. «Porque não tenho pezinhos de princesa é difícil encontrar o que me sirva e que eu goste», explicou. Não precisava, porque não aborrecia Joaquim. A paciência para compras com mulheres só lhe faltava em centros comerciais e quando a visita tinha esse único objectivo, que aí elas parecem sempre ligar um modo de funcionamento cego ao resto e magnetizado em provadores e coisas assim. «Tenho de voltar cá» foi a deixa que confirmou: ela tinha gostado.

«Disseram-me que na João XXI há uma boa garrafeira e é possível que tenham. Vamos lá?» Ela, mais prática, preferia telefonar a perguntar. Mas acedeu. Mais do que uma garrafa de Apitiv, um Porto branco seco da casa Sandeman, que Joaquim agora já sabe que deixou de ser produzido e a haver será apenas em fundos de stock, o que ambos procuravam era passar um bom pedaço de tempo.

Pelo caminho, no carro, e para além do susto que Clara apanhou quando um sujeito recuou incauto do mau estacionamento para o meio da rua e Joaquim guinou para a esquerda buzinando, mesmo entalado por um Audi prateado que vinha desejoso de o ultrapassar, falaram de música. O Rui Veloso é que escreveu que «não se ama alguém que não ouve a mesma canção» e se fossem por aí, Clara e Joaquim estavam tramados. Mas quem é que falou em amor? Por agora, esse é como o vinho: não há em lado nenhum.

3 comentários:

Nem um ponto de vista vai ser ponto final disse...

posso pagar um apu para o seu blog?
*-*

Anónimo disse...

Não resisto...Joaquim??"tou-te a ver"!!LOL e, sim, ainda te leio.Ossos do oficio...

J.B. disse...

Assim se vê que muitas vezes os rasgos de inspiração estão mais perto do que parecem. Espero que este texto não seja só um texto, uma experiência. Desejo que tudo o que está além dele seja bem apreendido, que te sirva de mote para mais passeios, mais formas de estar e apesar de tudo te realize.

Aquele Abraço