domingo, 4 de setembro de 2005

Extenso apontamento na tentativa de ser cómico e alertar para alguns problemas da sociedade da era da globalização, além de ter pura crítica social ao bom estilo daquele programa da SIC, em que as miúdas vão às festas recolher declarações de escárnio sobre o jet-set, escrito numa tarde de anhanço num centro comercial, porque não tive coragem de ir à praia sozinho, e uma ia pró Avante e o outro estava a trabalhar, e então olha, resolvi brincar um bocado com frases longas pra caraças, que o Grabriel Garcia Marquez também o faz e deram-lhe um Nobel

Não sou melhor que aqueles que desprezo cada vez que cá venho. Porque também eu vim para cá hoje, domingo, com 30ºC de temperatura exterior à sombra, e eu num centro comercial (CC, para facilitar). Costumo dizer, acerca desta gente, «não têm nada de melhor para fazer?» Pelo que vejo, eu também não tenho. E se tiver em conta que vim para aqui apenas para estar sentado a uma mesa, bebendo café e tomando notas no meu Moleskine, ao invés de ver montras, fazer compras ou comer um hambúrguer, e somar a isto o facto de estar numa zona de esplanada interior junto ao McDonalds, quando poderia estar numa muito mais pseudo-intelectual Fnac, então ainda sou pior que todos estes peões que para aqui andam e me enojam. Por indução, hoje sou um deles e hoje também eu sou vómito.

Começa por me irritar entrar no parque de estacionamento, que é gratuito, e ver carros estacionados fora dos recortes e nas zonas de passagem, próximos da porta mais próxima, quando o parque está longe de estar lotado. Suspiro, estaciono e sigo com precaução para não ser abalroado por um Saxo de mil de cilindrada mas com escape de versão Cup, ou por um AX ou Uno quitados e manuseados por gajos mais velhos que eu, usando boné, calça tipo corsário branca e sapato-ténis Nike ou chinelo havaiano chinês.

Consoante a porta de entrada no CC, o odor ambiente oscila entre o neutro fresco do ar-condicionado e a fragrância Big Mac viajada do segundo piso para o rés-do-chão – foi por aqui que entrei. Os CC têm um cheiro característico, nojento em qualquer dos casos, e depois de trabalhar no laboratório fotográfico de um deles durante mais de um ano e meio, o que mais me incomoda nos CC é o cheiro, que nem mesmo o pivete do nocivo e não inspeccionado líquido revelador de películas tão característico das Kodak Fotosport, consegue apagar da minha memória.

As pessoas que andam pelos CC, qualquer que seja a categoria a que pertençam, também me provocam asco. Os vigilantes, engravatados ou fardados com bota e boina de tropa, que de maus só têm mesmo… tudo menos um duro carácter, que não têm de ser musculados ou ter cumprido o serviço militar, lembram-me um colega do liceu que, não sendo incapacitado, era e continua sendo burro, escolheu a sistemática do charro, de querer ser preto sendo branco, brinco e anel de ouro, ensino recorrente só para despistar e não ter de ouvir os pais – afinal, é à noite que estão em casa –, não sendo isso sinónimo de sequer entrar na sala de aula, colega meu esse que encontrei como vigilante, há coisa de um mês, no recém inaugurado auditório municipal. Para manter o lifestyle diurno.

Além destes, há as lojistas, aquelas raparigas da minha idade, give or take uns dois anos, uma boa parte das vezes bastante boazudas, giras até, muito arranjadas, amiúde até demais e decalques das gajas que se vê na MTV, que trabalham nas perfumarias, boutiques de roupa, malas ou sapatarias, nunca na Fnac ou na Bertrand, miúdas que um gajo só de olhar até coloca a hipótese de poder partilhar um café e conversa durante uma horinha, bastando para isso que ela não esteja a bulir ou não tenha um cão-pastor condutor de chaço tunning-rátátá, que é a onomatopeia para os rátéres, mas depois ouvimo-las falar e percebemos que o 12º ano foi uma miragem, que “inadvertidamente” não aparece nos Malucos do Riso, na rádio Oxigénio ou no Curto Circuito, e é, muito provavelmente, uma palavra inglesa, «e eu sempre tive negas a inglês». Estas não me lembram nenhuma colega do liceu, porque na altura elas não mostravam o umbigo sob as calças de cintura descida e camisolas subidas, não arranjavam as unhas, não iam ao cabeleireiro sozinhas, a TV Cabo era uma raridade e voltando ao que interessa, a gente não sabia que elas eram boas. Só o descobrimos agora, já no fim da faculdade, depois de nos termos tornado amigos e já não dar.

A mais vasta categoria de pessoal que anda pelos CC é a maralha, que a um domingo como este vem maioritariamente aos grupos, com os putos pela mão ou no carrinho, e os avós cansados de tanto andar, que aqui se fazem quilómetros sem se dar por isso. Hoje está particularmente escasso o pai de camisola branca de alças, calção de praia e chinelo, aqueles que não empurram o carrinho, nem o do puto quanto mais o das compras. Mas há-os de t-shirt da JB arranjada pelo Alfredo do café, alguns de pólo!, com óculos escuros de armação plástica azul metalizada, no cimo da cabeça, calça de ganga também azulada – não vi nenhuma daquelas coçadas na coxa ou rasgadas na canela, muito trendy aí há uns anos –, sandália de tipo não-Excesso, vá lá, ou sapato-ténis desportivo, daqueles Puma para futebol de salão, sujeitos que fumam copiosamente e não falam do jogo da selecção com o cunhado porque os luxemburgueses levaram seis a zero e por isso eles estão contentinhos, ainda mais se tivermos também em conta que o Benfica não joga este fim-de-semana e assim não há hipótese de desgosto. Por ser domingo, a sogra, geralmente dele, também veio ao CC. As mães espelham no rosto algum alívio, saíram de casa pela primeira vez no fim-de-semana inteiro, a cozinha ficou longe e o jantar vai ser, pela certa, McDonalds. A mãe, que veste um modelito em que o sapato laranja bate certo com os motivos florais também cor-de-laranja da camisola branca, a mãe que bebe um café ou um Trina – já me esquecia: o pai já está na imperial –, nos espaços de tentar aquietar a miudagem. Estão aqui uns vizinhos meus.

Infelizmente este é o primeiro fim-de-semana de Setembro e a emigrantada já se foi toda embora, digo eu, que não ouço pelos corredores «Jean Pierre, vien ici! Ouvistes? ‘Tás aqui, ‘tás a levar!», Jean Pierre que é como se chama aos putos que nascidos cá teriam sido João Pedro, numa semana em que a TV tivesse avariado e a novela da Globo na SIC não tivesse entrado lá por casa.

Verdadeiro reflexo dos tempos modernos, isto só para elevar um pouco o nível da conversa, até porque desde as gajas lojistas fodíveis, que é uma palavra que aprendi no melhor blog do universo, que ninguém mais se riu, e portanto há que ter um apontamento inteligente, equilibrado e ponderado, que é uma palavra que começa com “P”, assim como Estado-Providência, também há velhos, casais de velhotes que vêm aos CC aos domingos, beber a bica, porque eles chamam-lhe bica e nós café, e passam umas horas sentados à mesa da esplanada, calados, olhando a carneirada, como este casal que está aqui à minha frente. Isto é um verdadeiro reflexo dos tempos modernos e da boa vida que se têm no Portugal de hoje, na medida em que há 40 anos atrás era inconcebível que os velhotes tivessem esta autonomia, almoçassem no restaurante ou fizessem turismo sénior, simplesmente porque não havia reformas. Nem do tipo da do Campos e Cunha nem nenhuma – não havia. Mesmo assim, hoje eles não parecem muito à vontade no CC, o ambiente continua sendo estranho para eles, cujos filhos estão a regressar de férias no Algarve, alugaram um apartamentozinho em Armação de Pêra, e os progenitores cá ficaram, na monotonia da solidão, tão igual à dos outros dias. Contudo, eles são diferentes delas. Eles não vêm em grupo, preferem ficar na taberna a jogar à lerpa; elas vêm, aos trios, arranjadas, para lanchar dois Sundaes de caramelo, um de morango e dois copos com água.

A malta nova também anda por aí. Elas parecem saídas dos telediscos da MTV, tão mal aloiradas que faziam melhor se estivessem a esbofetear violentamente a cabeleireira responsável por aquela merda, ou o namorado que lhes diz, enquanto ela carinhosamente lhe massaja a nuca na viagem de regresso ao bairro, no autocarro apinhado, «môr, tás linda, pareces a Shakira». Mas eles não estão melhor, parecem um dos manos Anjos, à vez, porque os há lambidos e com barba de três dias e igualmente com o cabelo espetado e carinha de menino, de jeans justos, carteira e telemóvel de terceira geração numa mão, gaja na outra e porta chaves pendurado ao pescoço. Ou então elas parecem-se com 90 por cento das gajas lá da faculdade, com calças largas e descidas, top de alças e penteado com franja, e eles também de calças largas, chinelinho e cabelo à surfista de água doce, como o rapazola que apresenta programas na MTV.

Há um ruído constante nos CC, das vozes das pessoas, berros das crianças, pratos e chávenas, moinhos de café, tabuleiros de plástico sendo batidos e arrumados pelas senhoras da limpeza. Gostava de poder medir o ruído num CC, com uma daquelas maquinetas engraçadas, mostrador digital, não sei quantos dB, lê-se dê-bê. As senhoras da limpeza, voltando à sociologia e ao preconceito, teorias de hierarquia social e afins, as senhoras da limpeza têm a minha compaixão. Passam oito ou 12 horas em pé, de um lado para o outro, a limpar as mesas que emporcalhámos e a recolher as merdas que lá deixámos, quando saímos sem nos preocupar. Ah e tal é o trabalho delas. ‘Tá bem, mas nós somos porcos. Estas senhoras, e há aqui algumas que aparentam ter passado a idade da reforma, são exploradas pelo valor mais baixo, neste país merdoso que vive a barreira dos 500 euros, que conheci um suíço e o tipo ficou parvo quando lhe disse que o salário mínimo nacional aqui ronda os 380 euros, muitas destas senhoras da limpeza são africanas e nem falam português, escondem-se da supervisora atrás dos pilares para atender o telemóvel, ninguém sequer lhes agradece quando levam a tralha da mesa. Por que raio agradecemos à brasileira que nos dá o café e cobra por isso, e desprezamos, sem lhe dirigir uma palavra, a senhora que nos limpa a mesa de borla?

Vou buscar um Big Mac. Não quero ser diferente.

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