segunda-feira, 18 de abril de 2005

Cuidado, perigo de aluimento
Em tempo que vem sendo de tantas certezas quantas as dúvidas que me não deixam adormecer, tropeçando de sobressalto em sobressalto pela noite dentro, o céu cinzento ajuda a pensar na areia da praia e no mar que bate nas rochas, no penhasco mais além, encimado por um farol que ainda não brilha.

Os faróis são brinquedos mágicos, mapas em forma de lanternas avariadas, que luzem as espaços, apontando o caminho do mar até à costa a embarcações perdidas ou que simplesmente navegam numa noite demasiado escura.

Queria ter um farol só meu. Daqueles que decoram o rochedo mais deserto, digno de postal, de onde se vê o sol enconder-se, onde a água bate mas não fere, onde o ar húmido entra por mim, enchendo-me os pulmões. E então sustenho a respiração, porque o quero aqui e não que a brisa imediata mo roube, mas revelo-me fraco e o ar gelado logo aquece e luta, bate-se pela liberdade e eu perco, já vermelho ou branco – não tenho espelho – e abro-me em esforço, como que tossindo, não que te queira expulsar, sabes bem que não!, mas porque te não posso mais ter dentro de mim, que acabarias por me matar.

Resigno-me. E logo quero agarrar, então, o mar. A água salgada e fresca que se transforma em espuma e depois em ar. Quero-a! Mas não consigo bebê-la. Não consigo tomá-la nas mãos. Não consigo senão leva-la na retina do coração.

Temos na cabeça uma glândula responsável pelo olfacto, pelos cheiros que nos entram narinas adentro e fazem sentido no segundo logo após o que. Queria ensopar a minha na água do mar, que nem um saquinho de infusão, e colocá-la depois cá dentro, amparando a minha palma direita por baixo e em concha, para não perder uma única gota.

A água do mar, numa garrafinha de plástico, morre. Não cheira; não sabe; não parece; não é. A água do mar fez-se – não foi feita. E fez-se para estar no mar, para alimentar sonhos de mergulhos, gargalhadas por fria que esteja, para se contemplar, para se tocar, até mesmo para se nos engasgar.

A água do mar, assim como o ar que nasce da espuma da onda que se desfaz na rocha, o ar do mar, fizeram-se – não foram feitos. E fizeram-se para ser livres. E para na sua liberdade nos acompanhar. Livres de nos fazer sentido quando bem entendam e não quando queremos que façam. Porque se for hoje à praia e gritar à água do mar ela virar-me-à as costas, indiferente. E se pedir ao ar do mar que me siga, ele logo me vai soprar e ser vento. «E o ar do mar? Hoje não está cá».

As notas do piano lembram o mar – ou o mar, porque se fez primeiro, lembra as notas do piano.

O instrumento de cordas “piano” requer mestria, para soar a mar. Tem que se lhe saber tocar – não basta manejar; aliás, manusear, manobrar ou dirigir não resultarão nunca, porque o piano, tal como o mar, tem que ser tocado.

Como quem passa os dedos na tua pele macia, desvendando os contornos do teu rosto, feio ou bonito, que tudo isso é relativo, já o diz o ditado «quem feio ama, bonito lhe parece». Mas não é de amor que me ocupo; é de tocar, viajar pela linha das tuas sobrancelhas, olhar-te nos olhos, cocegar o teu nariz e olhar o teu sorriso miúdo, sorrindo contigo enquanto subo para as rugas que entretanto se fizeram na tua testa, para depois cair na direcção dos teus lábios, que é por aí que me quero.

O piano tem cordas. Mas não há cordas que prendam a água do mar. Tampouco o ar do mar. As cordas, se fortes, podem segurar-nos, pessoas; segurar-me, homem.

A água do mar puxa-me. O ar do mar empurra-me. Sou eu quem tenho de me arrastar pela corda de piano. Ela só me segura. E se eu cair ela continuará atada à minha cintura, caindo comigo, atada como quem me mostra que me cabe a mim puxar, cortar as mãos e os braços no esforço por subir até onde possa assentar os pés, novamente. Não importa o sangue nem a dor, que não sinta as mãos ou os braços – basta que os veja. Por mais fundo que a corda de aço cave e desfaça a minha casca mole, epiderme, derme e endoderme, há que trepar até onde possa ver, cheirar, saborear e sentir a água do mar e o ar do mar. Tocar-lhes, não lhes tocando.

Sou eu quem tenho de me puxar pela corda de piano acima, a corda de piano atada ao meu farol, no cimo do meu penhasco.


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Primeiramente "postado" aqui

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