segunda-feira, 3 de setembro de 2007

O início – dia zero
“O coronel Aureliano Buendia promoveu trinta e dois levantamentos armados e perdeu-os todos. Teve dezassete filhos varões de dezassete mulheres diferentes, que foram exterminados, um após outro, numa única noite, antes de o mais velho fazer trinta e cinco anos”, que foi quando o Rui perdeu o livro, entre Madrid e Barcelona. Dias mais tarde comprará, por dez euros, um pedaço de lixo literário inglês que desejará, esse sim, ter perdido algures. O Rui, de Portimão, um metro e oitenta e três de altura, é um cabeça de vento e perdeu nesta viagem quase tudo o que havia para perder, como se verá.

Dias antes de partir o João disse-me: “Lembra-te que tudo o que estás a planear pode correr mal”, que é o que dá piada à coisa, e efectivamente chegámos a Madrid e para Barcelona já só havia plazas no comboio das seis e vinte e cinco da manhã seguinte. Merda, pensámos em conjunto. Começava bem a viagem, a 12 de Agosto de 2007.

Sem sítio onde dormir e porque a estação de Atocha fecha entre a uma e as cinco da madrugada, ainda ponderámos ficar na entrada do prédio de um hostel onde fomos insultados com os preços pedidos, ou com o sem abrigo com quem eu e o Pedro confirmámos o fecho da estação e que nos ofereceu cartões, mas o Rui e a Joana precisaram ir à casa de banho de um café ali ao lado e assim descobrimos o El Pando, um pequeno tasco que nunca fecha.

No meio de prostitutas velhas e feias, novas e bonitas, proxenetas e clientes, encontrámos o senhor Daniel e os seus dentes castanhos, que emigraram de Bragança para Madrid há 35 anos, e que logo nos deixou à vontade: “Quando fecha? Não vos preocupais, podeis ficar até querer.” O sítio era pequeno, tinha meia dúzia de mesas e ao balcão concentrava-se a maior parte da clientela, que vai ali para aconchegar o estômago pela noite dentro enquanto gasta umas moedas na máquina de flippers. Apesar da chungaria dentro de portas e nas imediações, o El Pando era àquela hora o sítio mais seguro da cidade, ou não estivesse uma vintena de polícias a cear à porta.

Entre hamburguesas gordurentas pedidas à vez para esticar o tempo e conservar a mesa, canecas de cerveja, pratinhos de azeitonas e amendoins que o senhor Daniel nos oferecia, e perguntas parvas acerca de como se diz em castelhano fiambre e presunto, ficámos até às cinco e meia, que acho que foi quando a Joana engoliu mais um de muitos analgésicos potentíssimos para suportar as dores e a infecção de uma tentativa falhada de extracção de um siso, quatro dias antes, por um dentista jovem e inexperiente. E partimos.

Até Barcelona o comboio foi um luxo e eu até dormi, a Joana dormiu, o Pedro dormiu e o Rui, depois de dormir também, foi o resto da viagem a dar charme a uma catalã loira e bem gira que estava ao lado dele. Repetirá a proeza na última jornada, a caminho da República Checa, com uma viajante irlandesa solitária. O Rui é um galã.

Na estação de Saints, de manhã, comemos sentados no chão, o Rui deu pela falta do livro e ficou de trombas o resto do dia, o Pedro fumou dois ou três cigarros de rajada à porta da estação enquanto certamente pensou na vida dele quando Portugal adoptar com o mesmo rigor a lei anti-tabaco que os espanhóis já tanto acarinham, e a Joana, a curtir a tripe, estava feliz e sorria. Seguimos para Cerbere, na fronteira, e daí para Montpellier, no primeiro comboio de compartimentos até então. Um dia gasto a andar de comboio.

Enquanto eles dormiam, uma constante em toda a viagem e porque eu não consigo cair no sono em nenhum transporte, ajudei a Débora a arrumar a mochila no compartimento, e fiquei um bocado perdido no rosto e no decote dela, que pouco falava inglês, e foi a mímica de sorrisos e olhares que nos entreteve até a Joana acordar e começar a falar francês. A Joana foi sempre a mais afoita a falar com os nativos de todos os sítios por onde passámos, um gesto de valor que todos lhe agradecemos. Residente no Seixal, é fluente em inglês, francês e espanhol, além de dar uns toques no checo, holandês e italiano. Praga, onde viveu seis meses, será o último destino desta viagem.

A Débora era morena, tinha um cabelo preto comprido, olhos castanhos resguardados por uns óculos com hastes de massa preta, e mãos de menina que não paravam de ajeitar o cabelo em direcção ao peito, para cobrir o que dele conseguisse, que era pouco. Regressava de um festival de música e ia para Avignon, umas horas depois da nossa paragem.

Quando acordou, o Rui quis logo saber o que era aquele prato gigante de tecido que ocupava o banco ao lado. Estava longe de imaginar estar perante uma maravilha da tecnologia terrestre mais simples de todas: uma tenda que se arma sozinha depois de atirada ao ar, como lhe explicou a Débora. “You throw and fsssssssiu tchcpum” (com gestos a explicar a coisa). Ela era muito gira. Mas giro giro, pelo menos para nós, porque ela não deve ter percebido bem, foi quando o Rui resolveu apresentar-nos à miúda e traduzir os nossos nomes para francês, ficando uma Joana que era Joanna D’Arc, um João que era Jean, um Rui que era Rui, e para gargalhada geral um Pedro que se tornou “Pitérre”, de Piérre. O Rui foi o bom palerma da viagem, como ele próprio confirmará. E tudo começou bem cedo quando à saída de Badajoz, onde começámos, percebeu que tinha deixado algures em casa o carregador do leitor de MP3, comprado a propósito para a viagem.

Adeus Débora, chegámos a Montpellier, a primeira paragem, onde me apaixonarei à segunda e última noite por uma das mulheres mais sensuais que vi até hoje.

5 comentários:

JAC disse...

correcção: eu era Jôaninhá D'arc ( o que devido à cara de espanto da Débora deu direito a outra tradução do Rui, desta vez em inglês - Little Joana D'arc!)...

Sou a rainha das onomatopeias, e tu és um futuro Gabriel. Aquele que escreveu o livro que o Rui perdeu...

Estou a adorar ler esta história, é um enorme prazer. Maior ainda é o prazer de fazer parte dela :)

Bj

JAC disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
JAC disse...

Ah! E não são máquinas de flippers... são slot machines, a única razão pela qual os espanhois precisam de moedas!

Anónimo disse...

E mais? E depois?
Hilariante :-)
POsso fazer parte da historia tb? Mesmo no finzinho - em como uma irma caridosa, mas sem nenhuma ordem religiosa, acolheu os viajantes, lhe deu de comer, cama (e roupa lavada) :-) :-):-)

Beijinhos

John Abreu disse...

Aqui está o meu primeiro comentário ao inter-cenas de vós ;)

Belíssimo! Essa débora é que me interessou deveras. Algum contacto para a posterioridade? ehehe ()