domingo, 9 de setembro de 2007

Leiria em Ljubljana – dia 7 e mais alguns
Mais uma vez não conseguimos evitar chegar ao destino no final do dia e enquanto o sol se punha pedimos duas vezes a um casal italiano que saiu do comboio com um desamparo parecido ao nosso, porque ali fomos confrontados pela primeira vez com uma escrita diferente, que partilhasse o mapa que tinha, a ver se encontrávamos a Pousada de Juventude, que o Martin havia reservado. Não fosse ele e provavelmente não teríamos visto o que a Eslovénia tem de mais bonito: os lagos no sopé dos Alpes.

Ljubljana, onde vestimos calças pela primeira vez, porque chegou a chover...

O Martin viveu em Lisboa durante um ano, em casa do Rui, saindo de lá a falar um português correcto que ainda hoje mantém, um ano depois, e com saudades de Super Bock. Já em Lisboa, no almoço de boas vindas que nos ofereceremos no Chimarrão, eu proporei aos rapazes enviar-lhe uma caixa de loirinhas, como agradecimento. Finalista de Economia, mede perto de um metro e noventa e trabalha como recepcionista nocturno num hostel próximo da pousada.

Acho que foi logo enquanto fazíamos o check-in na pousada que nos apercebemos de outros portugueses de Lisboa e da nossa universidade. O mundo é pequeno e Ljubljana parece estar nos planos de todos os que viajam pela Europa no Verão. Não recordamos o nome de nenhum deles ou sequer se chegámos a nos apresentar, mas o miúdo brasileiro parecia ter engolido uma pilha Duracell e não parava nem se calava com “ispêtacúlarrr”, “do bagulho”, “pôrra” e outras expressões de contentamento, enquanto partilhava a “mácárrônada” do seu jantar com dois ingleses, cuja história é interessante e se segue.

Aqueles dois viajaram para Ljubljana na mesma carruagem que nós, no melhor e mais luxuoso comboio de toda a viagem, e a Joana achou piada a um deles, o de cabelo castanho assim meio encaracolado e maior, de camisola às riscas horizontais e ténis de lona “da cena” todos rotos e sujos. Era o seu “setas”. O termo “setas” é da autoria do Pedro, que o inventou em Florença quando, gozando com a Joana, lhe perguntou se o jeitoso que metera conversa com ela lá no hostel imundo a tinha “convidado para jogar às setas”, assim nascendo a frase “Joaninha, nós só queremos que tu encontres o teu setas”; e serve para designar “um gajo que a Joana ache engraçado e pelo qual possa interessar-se”, algo que se repetirá sete dias mais tarde, em Belgrado, com um australiano achinesado, embora ela o negue.

Então, o setas e o amigo eram presença regular lá na pousada e no bar do hostel onde trabalha o Martin, que era onde o pessoal costumava começar a noite bebendo uma cerveja e conversando um bocado, porque era perto. Eles viajavam juntos havia já cinco semanas, o que não é fácil, e numa das noites tiveram uma discussão estranhíssima a que eu e a Joana assistimos na primeira fila, de costas. Afirmou o setas, sincero: “I had the feeling you would enter that boat without me”. Disse o amigo do setas, que era branquinho como se exige num inglês, tinha cabelo meio ruivo e aloirado, usava uns óculos pequenos de armação oval e um aparelho auditivo, quando lhe estalou o verniz e a coisa subiu de tom: “You don’t trust me. You’re saying that I would enter that boat without you! You don’t trust me and that is disgusting!” Eu e a Joana, ao computador, olhámo-nos de esguelha e pensámos “isto vai dar estrilho”... Respondeu o setas: “I’m going to get a drink”, levantando-se de rompante. Dez segundos depois voltou e o surdo disparou: “Where’s that drink?!” E saíram um atrás do outro, perturbados.

A Joana acha que foi usada pelo setas e pelo amigo. Ambos foram muito simpáticos para ela lá na pousada, deram o número do quarto para ela lá passar, que eles ajudavam a orientar a nossa etapa na Croácia, de onde tinham vindo, e ela conclui que aquilo foi mas é para fazer ciúmes um ao outro. Porque aquela discussão foi nitidamente uma guerra de casal. E porque de manhã faltaram ao pequeno-almoço mas estavam bastante alegres. Enfim.

Dois dias antes de nós chegarmos o Martin comprara um Renault Clio de três portas azul, porque não quisera esperar por um de cinco e pensou: “Quantas vezes é que vou andar com o carro cheio? Poucas.” Mas a malta aqui é muito oportuna e a estreia foi logo connosco, para testar o bólide. Na Eslovénia, como na Checa, é obrigatório circular com os faróis acesos todo o ano, um acto de segurança rodoviária que aprecio e não evito destacar — daí esta frase —, vivendo num país europeu possuidor de elevadíssima taxa de sinistralidade e morte nas estradas, Portugal.

Mas o que interessa é que fomos os cinco ao lago Bled, a norte de Ljubljana, um sítio lindíssimo. O lago é enorme e no Inverno chega a gelar completamente e pode-se atravessá-lo a pé. Ali tinha água morna e um dia na praia custava quatro euros. Cenário idílico, nele havia patinhos, casalinhos, um cão poeta, geladinhos — comemos todos — e bolinhos, umas especialidades eslovenas que o Martin nos levou a provar e que eram di-vi-nais.

O lago Bled

Quando já tinhamos decidido onde jantar, daí a pressa de uns e o contentamento de outros

No outro dia fomos visitar Zagreb, a apenas duas horas de distância, e o pica achou que lá por termos o bilhete de inter-rail, que me tirou das mãos com violência e com ele as reservas usadas de outros comboios, tínhamos de lhe pagar qualquer coisa, porque: “Italy reservation, Ljubljana reservation, Zagreb no reservation?”, enquanto remexia nos papéis que eu guardava com o meu bilhete, e então chegou ali a um arranjinho que lhe pareceu bem e algures entre o que tínhamos pago dos bilhetes que ele viu e passa para cá “Eight euro!”, que iam nitidamente para o bolso dele. Depois da tensão, porque ele agia como se o estivéssemos roubando, lá me chateei e até acedi a pagar, porque não conseguia comunicar com ele de forma nenhuma, mas ele amarrou o burrinho e foi-se embora.

Não bastasse isso para me irritar e o Rui também amarrou o dele, mas com nós de marinheiro, enquanto julgou ter perdido a chave do quarto, na única vez que tal monumental tarefa ficou a seu cargo. Afinal tinha-la deixado na recepção, à saída, mas isso não evitou que logo à porta da estação em Zagreb se atirasse para a frente dos carros que atravessavam a passadeira por ordem do polícia sinaleiro, que ainda lhe atirou uma apitadela, mas ele estava demasiado compenetrado naquele amuo infantil e vitimizante de “sou um gnu e perco tudo”, que nem foi atropelado. E Zagreb foi curto demais.

Zagreb, rápido demais

Antes, porém, quando nos preparávamos para sair da pousada cruzaram-se connosco três raparigas giras, que eu sorrateiramente segui pelas escadas acima até confirmar ouvir falar português, que foi quando irrompi com qualquer coisa como “é no andar seguinte”. A portuense, que o Rui assaltou de imediato, recolheu os votos favoráveis da Joana e do Pedro. Mas uma das leirienses, a que tinha feito Erasmus em Florença — as coisas que eu saco em dois minutos de conversa no corredor duma pousada, hein? —, assim morena mesmo natural e achocolatada, com calção pelo joelho, t-shirt vermelha, cabelo preto comprido ondulado com a franja apanhada entre ganchinhos, olhos castanhos bem escuros e um sorriso rasgado, essa sim. Estavam no quarto 53, um daqueles com muitas camas. Combinámos na recepção às dez da noite para ir beber um copo, que era quando esperávamos já ter regressado de Zagreb, mas só chegámos depois da uma da manhã e eu já não dormi. Porque o comboio para Split, onde seguiríamos de barco até à ilha Hvar para quatro dias de praia, comida caseira e descanso, partia às seis e porque a miúda do quarto 53 não me saía da cabeça. O poema que eu e o Rui lhes escrevemos metia rimas parvas e piadas com o Douro e o Lis. Que desespero... Piorará em Hvar, com muita epiderme a descoberto, temperaturas altas e demasiada humidade na atmosfera, ao que o Rui dirá a cada cinco minutos passados fora de casa: “Que tosta, moço!... Tu és tolo?”

10 comentários:

JAC disse...

O Martin... com quem eu troquei uns conhecimentos de checo! Uma pessoa começa a chegar a "esses lados" e sente-se logo em casa :) Tenho de lhe enviar um postal.

Adorei os dias em Ljubljana, e esse hostel tinha o melhor pequeno almoço.

Foi pena não termos mergulhado no lago, mas aqueles docinhos típicos que o Martin nos levou a provar também valeram bem a pena! Bizarro bizarro foi aquele teatrinho naquela língua que nem o Martin conseguiu identificar: "taca taca, taca taca".

Se já se notava alegria antes do jantar, então depois daquelas pizzas gigantes...

não vou comentar o Australiano...talvez depois do post sobre Belgrado!

Ah... gostei muito de Zagreb e tenho pena de não ter ficado mais tempo.

*

M disse...

A Joana garantiu-me que isto estava tudo muito composto e bem escrito, tinha de confirmar. Adoro e anuncio que o meu google reader já alberga este blogue :)

JPC disse...

Fico contente :)
Mas... Google Reader?! Haja gente na "vanguarda da técnica".

Amanhã à noite há mais.

Anónimo disse...

E pronto la vem o zé exigir direitos de autor mas acontece que, por acaso, fui eu que associei essa situação das setas a um nome que de ora em diante denominaria os concorrentes ao coração da joanitas - O setas. E posso desvendar que é um termo com tradição aqui em marrocos, vai para 3 ou mesmo 5 anos. Mas noutro contexto. Um gajo pode ser mesmo muito chato a esta hora da madrugada. Cala-te dé, vai dormir! ?

JPC disse...

Pronto, pronto, o Rui é que inventou a cena... :)

Anónimo disse...

Regionalização...

Anónimo disse...

ke que eu fiz!?

Anónimo disse...

Fizeste aquilo

John Abreu disse...

Portantos, passo a citar: «assim morena mesmo natural e achocolatada». Mas o que é isto!? Achocolatada? Para umas lambidelas, é!? Devias ter vergonha de fazer comentários destes a gentes do sexo feminino. lol =P

Já quanto ao grupo de viagem: apetece-me insultar-vos de inveja por lagos paradisíacos e afins. Ao Rui, não perco esta oportunidade para lhe chamar, alto e bom som, um GNUUU!!!! Já o pedrinho é o verdadeiro 'smouka'. A Joana, para além de chata, tem da mania que conhece pandinhas ursonificados.. e tu.. ahh.. tu, meu caro JPC, não passas de um.. de um.. maltrapilho! (se é assim que se escreve).
É que no fundo.. este relato está delicioso

PS: Desta vez parece fazer sentido, vindo o teu relato de leste. «bawiq» é o que o word verification me pede

JPC disse...

«Achocolatada, para umas lambidelas»
Tá bem, pode ser! :D