sexta-feira, 7 de setembro de 2007

A caminho de Florença, a terra dos gelados – dias 4 e 5
As duas horas que passámos na estação de Nice ficaram marcadas pela lata de polvo em vinha de alhos que a Joana teve de partilhar com o Rui, para não deitar fora. Ele diz que era bom.

A estação era muito mal frequentada e as ruas ali ao lado estavam sujas e malcheirosas, cheias de peep-show’s e chungas seguindo os movimentos dos viajantes, para além de mais confusão criada pelas obras nas calçadas. Ficámos com má impressão, mas dez dias depois, em Belgrado e Budapeste, aprenderemos que não se julga uma cidade pelo local onde se desembarca de um comboio ou autocarro. Portanto, Nice será bem bonita, como diz a Joana com a sua memória gigante e certeza de quem já viajou pela Europa toda, mesmo que em miúda, algo com que não foi fácil conviver nalguns momentos, para quem não conhece, e como contou a senhora italiana que partilhou o compartimento connosco até Florença.

Se ficámos assustados com a estação, ficámos aterrados com a composição da Trenitália onde iríamos passar as próximas nove horas — chegaríamos a Florença às seis da manhã. Nas palavras do Rui, o primeiro comboio nocturno da viagem era “um cangalho”. O chão e os bancos estavam sujos — e “sujos” é eufemismo —, as casas de banho não tinham água, o ar-condicionado desligou-se pouco depois do início da viagem, havia gente muito estranha a bordo e alguns fulanos que viajavam em pé e sem bagagem estavam nitidamente a trabalhar as carteiras alheias. Para melhorar tudo estava connosco uma família italiana, avô, avó e neto, ou seja, como dormiríamos todos ali?

Demorou até arrumarmos tudo no compartimento, mas quando voltámos do jantar volante sentados no corredor, a Joana, que obrigámos a ficar de guarda às nossas coisas, já tinha quebrado o gelo com a senhora e o miúdo italianos, que iam para Roma. O puto dominava várias ligas de futebol e sabia demasiado acerca clubes e jogadores portugueses do que seria de esperar dos seus onze ou doze anos de idade. Cristiano Ronaldo era o ídolo e a avó dizia-lhe que devia era estudar. Não lhe perguntámos o nome, que seria útil para esta história, um erro que cometeremos de novo com o pai de família australiano em viagem há nove meses com a mulher e os dois filhos pequenos, e as três portuguesas, que conheceremos em Ljubljana, entre outros, mas especialmente com estas raparigas, uma das quais me tirou o sono por uma noite. De tal forma que eu e o Rui — mais o Rui que eu — escrevemos um poema que deixámos no quarto delas, com os nossos e-mails, antes de sairmos de madrugada para a Croácia. Até hoje, zero respostas. Falámos de futebol com o miúdo até cansar e a senhora não deixou de notar quão estranho era ver uma rapariga viajar com três rapazes, porque as italianas não vão nisso e querem é ser cortejadas. E realmente eles dizem-lhes na rua a alto e bom som “piu bella!” e elas riem.

Não bastava o comboio ser velho, a noite abafada, a sauna dentro da carruagem e muita gente dormindo pelos corredores, como aquele cangalho ainda parou em quase todas as capelinhas e duas horas só em Génova, para mudar de maquinista ou apenas para o gajo fumar mais um cigarro à conversa com o pica, já suponho tudo, e uma paragem surreal no meio de um canavial, só porque sim. Isto já depois da polícia italiana ter levado uma mulher russa que estava no compartimento ao lado, de o pica ter apanhado e multado um pendura com mau aspecto que tinha demasiado dinheiro no bolso para quem viajava sem bilhete, e de o casal holandês de pé descalço que estava espojado à nossa porta ter acordado em Pisa, por acaso, me ter perguntado onde estavam e depois de um cool terem simplesmente saído, ele com a mão no rabo dela por dentro das calcinhas cor-de-rosa sujas que ela vestia.

Eu não dormi a noite inteira — excepto dois minutos e em pé, segundo o Rui —, o que se repetirá nos próximos comboios nocturnos de Split para Zagreb e de Belgrado para Budapeste. O Rui ainda partilhou parte da sentinela comigo, a Joana encostou-se uns pedaços e o Pedro dormiu umas sete horas seguidas, quase como a avó e o neto, que se arrumaram e só acordaram para nos dizer adeus já em Florença, com o sol a nascer — o avô não estava, afinal, no nosso compartimento.

Ver a Santa Maria del Fiore, ou il Duomo, praticamente sozinhos na rua e com aquela luz quente do sol que começou a subir, bem como a Ponte Vecchio e outros sítios por que fomos passear, foi fantástico. Três horas depois já era o caos de norte-americanos e japoneses. E Florença foi mais ou menos assim, passeando, e a Joana a comer três gelados por dia e a parar em todas as barraquinhas para estudar preços e sabores. “Opá, Itália é a terra dos gelados!”, dizia.

Almoçámos pizza a preços portugueses na Piazza della Signoria e depois de caminhar um bocado fomos dormir a sesta no nosso hostel, um dos piores da viagem, mesmo ali ao lado, tão central quanto possível. Mas era muito estranho. Um apartamento em que a suposta estalajadeira vivia ali mas não era a dona do estaminé; as piores camas de sempre com colchões de molas já sem força e onde era impossível dormir direito; zero toalhas e apenas um lençol; e na porta um aviso explicando que, porque alguns hóspedes trazem bed bugs, os colchões estavam envoltos numa ruidosa capa plástica, desculpem lá o barulhinho incómodo, mas que afinal só uma cama tinha e então eu preferi dormir em cima da esteira, por cima do colchão. Pelo meio a tipa nem teve vergonha de nos pedir para trazer a quarta cama do quarto ao lado, e no dia seguinte, quando me vestir, terei a surpresa de encontrar um percevejo na roupa que terei deixado na cadeira. Se puderem, não fiquem no Aily Home pelos vinte e três euros pedidos, mesmo apesar da ultra-centralidade do albergue. É que não vale o dinheiro.

Depois de um jantar volante voltámos à praça para jogar à sueca e beber uma cerveja, entre turistas e fotógrafos nocturnos, nativos veraneantes, réplicas do David e do Rapto de las Sabinas, e o empregado de mesa que nos atendera ao almoço, agora a fumar uma com os amigos de feições magrebinas, que foi mais ou menos quando fiz todos rir à gargalhada após ganhar uma mão de jogo, quando disse “até parece que estamos em Itália”.

Na noite em Florença subimos ao quarto pela uma da manhã e sem muito sono eu e o Rui quisemos ler. Durou pouco. Ele desistiu do “The Innocent Man”, de John Grisham, um CSI de bolso que comprou em França para substituir o Garcia Marquez; e eu deixei-me vencer pela escrita adjectivada das “bolhas saponáceas” da “Espuma dos Dias”, de Boris Vian, que recebi de surpresa em casa por correio na véspera da viagem e a propósito para ela, da Filipa, num gesto tão bonito, mas não consegui mesmo continuar.

Com a mesma inevitabilidade fomos assaltados ao pequeno-almoço antes de deixar Florença. Os dois euros e meio pedidos por um croissant foram aceites por todos sem grande espanto, o que é por si espantoso, vindo a derradeira pancada no preço do café e na taxa de serviço. Ao todo foram sete euros. Sem palavras. Pagámos e sorrimos, e eu agradeci aos senhores do café por me terem dado mais uma lição sobre as diferenças culturais existentes entre os nossos povos, respondendo aos vários “thank you” de sotaque italiano com insistentes “no, I thank you!”, situação que valeu à Joana umas valentes risadas — ao menos isso.

Rumo à vila de Monselice, a trinta quilómetros de Padova, apenas para jantar e dormir, pois de manhã lá seguiremos caminho, não sem antes passear pela cidade durante cinco horas e de ver a Joana ser barrada à porta de uma igreja por estar vestida com uns calções curtos e um top largo, o que dará discussão demorada entre ela e os dois rapazes sobre a Igreja e mais coisas, no MacDonalds non-stop de Praga onde passaremos tempo até ao comboio das quatro da madrugada para Dresden, o início do regresso a casa.

Dali fomos para Veneza, onde encontrámos a pior estação de comboios, repleta de bandidos e indigentes, para apanharmos a ligação para a Eslovénia, naquilo que foi um dia perdido graças ao pobre sistema ferroviário italiano, que só na página de internet é que garante o trajecto nalgumas horas seguidas, e não num dia inteiro. De bom, apenas o melhor sítio onde dormimos nos vinte e dois dias de viagem, e o fim da odisseia do siso da Joana — de vez.

10 comentários:

JAC disse...

Da estação de Nice não me posso esquecer do momento mais alto de PEDRO ROSMANINHO nesta viagem - aquele da porta. Até parece que o estou a ver na entrada, a 'saborear', se assim se pode dizer, o seu cigarrinho, quando aparece um empregado com uma corrente enorme em braços que elevou na direcção do nosso amigo. Ele só queria trancar aquela entrada, mas o Pedrinho ficou tão assustado que não só largou logo o cigarro como veio a correr para junto de nós visivelmente perturbado... 5 minutos depois, novamente de cigarro na mão, é confrontado com a minha pergunta - 'Pedrinho, OUTRO??' - e responde-me ele em tom revoltado - 'OUTRO? MAS EU NEM FUMEI! VIERAM COM UMA COLEIRA PARA ME PRENDER!!!!!!'

PRICELESS.

um dos momentos da viagem, para mim.

Itália foi especial... foi quando comecei a ficar mesmo feliz por não ter desistido :)

Adorei rever Florença ao amanhecer, parecia que era só nossa, foi fantástico como tu disseste e bem.

Tive pena de não ter explorado a feira dos brinquedos em Monselice.. by the way, a minha irmã adorou o caracol hahaha.

E claro, conhecer o menino italiano e a avó foi demais.. ainda me lembro como ela te gabou 'rapaz sério, rapaz sério...'
e agora lembrei-me que o sporting vai jogar com roma, o clube do miúdo!

Momentos inesquecíveis...

*

JPC disse...

Rapaz sério, de charmoso...

Filipe Pedro disse...

Só para dizer que estou verdadeiramente fascinado com esta viagem e, sobretudo, com este diário incrível. QUERO MAIS :D Quando é que posso ver o próximo episódio?

JPC disse...

Um novo capítulo a cada dois dias. Vai passando, pá!
:)

Anónimo disse...

Só queria trancar a porta?? Fdx...O mitra até metia medo, parecia um gajo de uma seita com uma corrente nas mãos.

Enfim...João continua a pintar o retrato da nossa odisseia k ja tens as minhas magníficas fotos! :)

Anónimo disse...

é pá, isto é muito emocionante, devia era ser um capítulo por dia! E já agora recomendo a Il Giglio Guesthouse mesmo ao pé da estação de comboio, menos de 50 euros o quarto duplo, ar condicionado, parabólica, chaleira eléctrica, imaculadamente limpo e a cargo dum bilingual couple, esloveno e italiano, que até nos ofereceu um espresso quando chegámos.
Em Florença comi um gelado de chocolate com tabasco, mas esse não recomendo à Joana...
E tenho que pena que os backpackers não tenham ido a veneza (santa lucia) e se tenham ficado por uma breve e aparentemente traumatizante paragem nos subúrbios piú schiffozi de itália. Vão lá com a(o)s namorada(o)s se puderem, de noite, a san marco. Tenho uma guesthouse a recomendar se precisarem também :D com um desgin bordélico mas chic, do melhor em que já dormi (acompanhada).
Anyways, estou ansiosa pelos próximos capítulos E POR QUE ME VENHAM VISITAR À PORCARIA DA ERICEIRA QUE TENHO UMA PRAIA EXÓTICA DESERTA PRA VOCÊS E NINGUÉM QUER SABER CARAÇAS!

Anónimo disse...

Ah...Monselice ensinou-me uma coisa: nada é tão bom como adormecer com a "leveza" de som do MP3 da Joaninha. :D

Anónimo disse...

disseste leveza de som?

Anónimo disse...

tlv levezinha seja melhor...

John Abreu disse...

Bello.. Molto bello! :)

PS: Desta vez foi «ktnxydtd»