Hvar, onde o lusco-fusco existe – dias 10, 11, 12 e depois de discutir, 13
Quando vimos o comboio em que seguiríamos de Zagreb para Split ficámos animados. Tinha o formato daqueles comboios rápidos, apenas duas carruagens e muito bom aspecto. Mas foi tão mau. A Croácia é um país pobre e pouco desenvolvido, que tem no turismo a tentativa de amealhar algum dinheiro, embora boa parte desse sistema não pague impostos. Por isso a taxa de IVA é de vinte e dois por cento — eu analisei os talões do supermercado —, porque esse imposto todos pagam, ricos ou não e turistas incluídos. O comboio era movido a diesel, pois grande parte dos caminhos de ferro do país não estão electrificados, e por isso demasiado ruidoso no interior, algo a que os vidros simples ajudaram, e que os bancos duros e inflexíveis do tipo daqueles dos eléctricos novos da Carris ainda contribuíram mais para um monumental desconforto durante cinco horas, entre as onze e as quatro da tarde, o que foi perfeito dada a inexistência de cortinados ou qualquer tipo de protecção contra o sol. Sobrevivemos, a custo e mal-humorados.
Já em Split, debaixo de um sol abrasador, demorámo-nos um pouco mais na estação a verificar quantos comboios teríamos para sair dali, dias depois, o que nos valeu a todos um valente sprint qual Obikuelo até ao catamarã que nos levaria à ilha Hvar e que estava a um minuto de recolher a rampa e zarpar. Depois de perceber o pânico na cara da senhora da bilheteira, o Rui e o Pedro correram à frente, a Joana em seguida e eu arranquei pelo cais depois de pagar os quatro bilhetes. Foi com pouco mais de quinze quilos às costas e uma lancheira cor-de-laranja à tiracolo que percebi que não estava em boa forma física, apesar de ter ultrapassado a Joana e gritado uns “bálábêre”, à moda do outro João, para dar ânimo. Embarcámos todos e a viagem até foi tranquila, sem grande ondulação, mas a miúda acusou o esforço, a fome e o calor, e não demorou a levantar-se e ir andar pelo barco, a ver se ganhava alguma cor no rosto. Pior só o Pedro e o Rui, quatro dias mais tarde, no barco de regresso, onde chegarão a ficar verdes.
Era perto das seis da tarde quando o catamarã atracou em Hvar e assim que se abriram as portas e chegámos à rampa, o cais estava em êxtase para nos receber. O bar Carpe Diem, mesmo em frente, tinha música de dança a tocar altíssimo, muita “gente bonita” pouco vestida, tanto eles como elas verdadeiros party animals, a dançar em cima dos pequenos muros da esplanada e das cadeiras, sem espaço para mais um que fosse. Estávamos perante o lusco-fusco em Hvar — não o dos cinco/sete minutos, mas o das cinco e meia às sete da tarde, um festão de que já as três raparigas portuguesas em Ljubljana nos tinham falado.
Mas isto foi só enquanto descíamos a rampa, porque em terra firme esperava-nos um magote de gente: “need acômôdêxon?” Eram dezenas de leões, novos e velhos mas todos de chinelo no pé, atacando os turistas com mapas e álbuns de fotografias dos apartamentos prontos a mostrar. Depois de fintar um miúdo mais novo entre a multidão, esbarrei numa senhora dos seus quarenta anos, cabelo pintado de loiro, calça vermelha e uma camisola branca com lantejoulas escrevendo Police. Pareceu-me bem e então perguntei-lhe “what are de the conditions?”, ao que me respondeu: “Yes, ar condition! Hundressixty kuna!” E eu, não pá, não é isso: “No, that’s not what I’m asking...” E ela: “Okê, no ar condition! Hundrefifty kuna each! Is good, yes?” Apresento-vos a Anna. Depois de perceber que tinha lugar para os quatro num “apartamento” completo, e de ver as fotografias da vista da varanda, que nos dava a ideia de ser mesmo ali junto à praça central da ilha, seguimo-la.
Por entre ruelas e escadinhas, o apartamento da Anna e do Tony — que eu e o Rui conheceríamos horas mais tarde, em calção e tronco nu de peito cheio, pronto a esclarecer a mulher acerca do nosso pedido de devolução dos passaportes, que eles conservavam enquanto garantia de pagamento, procedimento que não nos agradou — era o segundo andar da casa deles, cujas paredes exteriores não estavam pintadas e a porta da rua sempre aberta. No rés-do-chão e primeiro andar estavam hospedadas umas bifas loiras, em dois quartos e uma casa-de-banho partilhada, por piso. Nós ficámos com aquilo que seria a sala, com a cozinha e as camas no espaço amplo contíguo, e a varanda. Por cima, no sótão, a família de quatro e as paredes por rebocar.
O sol estava a baixar, pintando os telhados, a torre da igreja e o castelo, que era o que víamos da varanda, num tom quente que convidava ao passeio. Foi o que fizemos, num primeiro reconhecimento, até decidir sentar para jantar pizza, pasta e salada — pela enésima vez — numa das três maiores esplanadas da praça central. Ali havia restaurantes, mercearias, a igreja, um supermercado, lojas de souvenirs e comércio tradicional, padarias, um hotel de quatro estrelas e bancas de venda de bijutaria. No limite da praça estava a baía onde os barcos de todos os feitios e tamanhos se arrumavam como que numa marina, incluindo dois enormes iates daqueles com tripulação própria vestida a rigor e placas junto às rampas avisando “private, no boarding”. E foi o que vimos, apesar do crescente movimento na baixa da ilha, depois de fazer umas comprinhas para cozinhar durante a estadia.
No primeiro dia em Hvar o programa foi simples: praia, que ficava a uns dez minutos a pé de casa, tinha cascalho em vez de areia, estava junto a um hotel e onde o aluguer diário de uma espreguiçadeira de plástico branco custava o equivalente a cinco euros. A moeda croata chama-se Kuna e com um euro compram-se sete kunas. A água do Mar Adriático é tépida e muito salgada, que até nos deixou com os olhos vermelhos e a mim, que tinha feito a barba naquela manhã, por qualquer razão que escapa à lógica do Homo Sapiens, com a zona do bigode a arder. “A zona do bigode a arder” é um belo pedaço de Português.
Por causa do cascalho, os meninos da cidade foram ao banho de chinelos. O Rui também. As sandálias do Pedro, a que ele chama sapatilhas, serviram os três, porque tínhamos medo de perder os chinelos na água, excepto a Joana e as suas havaianas avermelhadas. O relógio que o Pedro comprara na loja chinesa em frente de casa, em Vila Viçosa, um bocado de plástico azul a imitar aqueles Swatch grandalhões, depois de ter ficado embaciado no Mediterrâneo e demorar uns três dias até se conseguir ver novamente as horas, não resistiu ao Adriático e meteu água, fatalmente. Já o Rui resolveu mergulhar repetidamente de forma apalhaçada do pequeno pontão, além de tentar “jogar bonito” com a cabeça e os ombros, qual Cristiano Ronaldo, com um pêssego que deu à costa. Rui, “nunca percas essa alegria”.
Nessa noite preparámos um verdadeiro banquete, com magistral repetição e melhoramento na noite seguinte, de maneira que avencemos já para lá. Duas costeletas de porco fritas para cada um — excepto para a vegetariana — e temperadas por mim, com o sal e a pimenta que estavam lá em casa há não se sabe quanto tempo e regadas com um belo vinho branco que eu e o Rui nomearemos de néctar dos deuses, pelo estalo que deu o restante do litro que bebemos ao jantar; massa e uma deliciosa salada com tomate, mozzarella e um molho especial, pelas mãos da Joana; torta 7Days de chocolate e champanhe para sobremesa; duas cigarrilhas e mais uma Zlatorog de meio litro, cerveja aguada, só para rematar, no meu caso. Quando saímos para ver a noite de Hvar, na noite anterior, eu fui rindo, arrastando algumas sílabas e contando umas piadas parvas ao Pedro. Mas na noite seguinte nem tive coragem de abandonar a minha cadeira no escuro da varanda, de tão bem que tinha corrido o apuro do repasto e a segunda garrafa do vinho, finalmente fresco, cuja marca nem eu nem o Rui nos lembrámos de apontar, mas que é engarrafado com uma carica, em vez de rolha de cortiça, com as desculpas de querer avançar na escrita desta mesma história, mais importante para mim do que uns copos, e de que escrever levemente embriagado daria um singular contributo ao relato. Mas uma hora depois de terminar a Zlatorog encostei-me e só acordei com o barulho que eles fizeram ao regressar a casa. Por isso haverei de chegar ao final da viagem, vinte dias depois de ter posto a mochila às costas, inevitavelmente atrasado na narração.
Em Hvar sentimo-nos ricos. É que uma hora de internet em qualquer um dos ciber-quiosques da ilha custava apenas três euros e oitenta cêntimos, que pagámos com gosto, especialmente porque todos os computadores eram pouco mais que pré-históricos, corriam um Linux pouco mais rápido que o Carlos Lopes na actualidade e a largura de banda da internet deveria estar próximo da velocidade de uma linha RDIS, que bem podia ser um acrónimo para “desesperadamente lento”. Mas precisámos consultar e perceber as ligações para as próximas etapas da viagem, comprar um voo baratinho de regresso para Lisboa, a bem da nossa sanidade mental, e discutir até à unanimidade para ficar uma terceira noite em Hvar, aquela do jantar real, embora isso me tenha custado as passagens por Sarajevo e Pristina, algo que muito me incomoda e que desde então me persegue, e onde estive quase para ir a convite do “setas” australiano achinesado de Belgrado, embora eu saiba bem que ele me fez o convite apenas porque a Joana também iria, e assim ele teria hipótese de arrastar a asa para cima dela nas cinco horas que dura a viagem de autocarro.
Às dez da manhã em ponto tocaram os sinos da igreja e a Anna abriu a nossa porta. Estava na hora do chek-out, como combinado na véspera, quando ela nos foi devolver os passaportes do Pedro e da Joana, emigrantes ilegais na Croácia até então, situação que me serviu para exigir ao Pedro que fosse buscar coisas ao frigorífico, ou eu chamava as autoridades; receber o pagamento e deixar o caderninho de capa amarela que servia de livro de visitas, para inscrevermos uma dedicatória. O inglês da Anna era rudimentar e a expressão mais frequente era apenas “is good, yes?” Para ela tudo era “is good, yes?” Como por exemplo: “Here is my book... Write dedication... Good, yes?” Ou quando o Rui resolveu pagar quatrocentas e cinquenta kunas com quatrocentas kunas e cinquenta lipas, os cêntimos lá deles, não se livrando da piada: “You good for working bank... Is good, yes?” E logo no dia em que chegámos ela contou-nos a história de um grupo de bósnios que alojou e que se embebedou e fez muito barulho, o “ten botilla... problem!”, como ficou conhecido esse episódio, por causa das dez garrafas de vodka que terão despachado numa noite, uma vez que “I drink, my husband drink... Ten botilla too much, no? Ten botilla... problem!”, a rir à gargalhada com as mãos na cabeça e nós também. Nessa altura estava longe de adivinhar que lhe deixaríamos de presente no frigorífico uma panela com restos de salada de tomate e mozzarella para ela lavar, tudo porque o Rui disse que comia e não comeu e quem sabe não terá sido por isso que, já lá em baixo, quando arrumávamos as mochilas num canto até à hora do barco para o continente, e o Rui achou que devia usar a casa de banho do rés-do-chão, surgiu a cabeça da Anna nas escadas que, imponente, nos bradou: “No no no! Ten is good, yes?”
Finalmente em Split e depois de perder o comboio rápido de regresso a Zagreb, porque já não havia quatro lugares disponíveis, enquanto esperarmos por uma ligação nocturna que demorará nove horas a chegar ao destino — apenas mais quatro —, decidiremos separar-nos pela metade, com reencontro marcado em Praga, a quatro dias do fim da viagem.
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2 comentários:
hoje vou tentar sonhar c aquele vinho, depois deixo por aqui o nome e portanto uma santa noite para a tua pessoa.
1. Bálábêre indeed
2. Esse bar Carpe Diem devia ser um belo 'must'
3. Zlatorog, Zlatorog!
PS: Com este vou e venho à Grécia. O word verification pede-me «zkseoros»
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