domingo, 1 de fevereiro de 2004

Bernardo
«Olá! Eh pá, há anos que não te via!» e é verdade, meu (agora) velho Bernardo, que ainda ontem nos davas chumbadas para os nossos ensaios pesqueiros de domingo manhã cedo, ali para os lados do Olho-de-Boi. «No outro dia estive para perguntar à tua mãe o que era feito de ti…» mas não há necessidade: aqui estou, pergunta-me o que quiseres ou diz-me porque cheiras a bebida às quatro da tarde de uma quinta-feira de chuva. Não, não te percas pelas peripécias que fazíamos, nós, enquanto miúdos, lá na rua, na praceta. Não recordes as tardes sem fim, vistas da tua varanda de reformado, fosse verão ou inverno, a bola que teimava – e não obstante os nossos mais que óbvios talentos futebolísticos – em bater no vidro da cabeleireira ou na janela da alentejana Bárbara ou no Honda Civic daquele sujeito, que até um alarme especial pôs no carro para ralhar connosco de cada vez que o esférico lhe tomava o gosto da chapa branca. Não vás por aí.

Fala-me de ti, que sei que queres. Fala-me dos teus setentas. Fala-me das razões que te fazem já não subir a rua carregado com os sacos das compras. Fala-me do teu Renault cinzento, agora sempre parado. Fala-me da tua filha, que é explorada naquele instituto público onde a hora de saída raramente se faz antes das sete. Fala-me da tua neta, alegria dos teus olhos, que agora vês de quando em quando, porque a senhora divorciada do teu filho foi de patins para Viseu. Fala-me deste teu andar trémulo e de como te custa esperar de pé. Fala-me do teu olhar vago e das palavras que entaramelas. Fala-me dessa tua descrença em chegar a 2005 para ver o metro, que na nossa cidade andará à superfície.

Falta muito para que saia o 101? Não. Mas chove que se farta, raio de dia este, eu com os pés encharcados pela minha teimosia de não carregar um guarda-chuva, tu que agora usas boina para camuflar a careca e que vens de beber o teu brandy numa qualquer taberna do Calhariz.

O Gonçalo? O Ricardo? Sim, crescemos todos. Ele está a acabar Direito, o outro está a braços com as informáticas. Eu? Estudo para jornalista. «Eh pá, mas não faças como aqueles jornalistas que a gente vê na televisão, aqueles que fazem perguntas que até metem dó. No outro dia vi um…» – sossega, que não me verás à frente de uma câmara de TV. «Antigamente ainda tínhamos o Mário Castrim, mas agora não há nenhum crítico de televisão. N’A Capital ainda há um sujeito que escreve, esqueço-me agora o nome…». Não cedes aos futebóis e comentas o exagero que foi o trato dado à morte daquele húngaro, como de repente acabou a pedofilia e a Casa Pia e a estagnação salarial na Função Pública.

«Eh pá, mas eu te peço, não faças como aqueles jornalistas que a gente vê…» – descansa, meu velho Bernardo, que por ti ou por mim ou por todos os que me estão perto ou por este sonho ou desejo que tenho, te honrarei no pedido.

«Gostei de te ver!» Eu também, saudinha da boa e talvez ainda bebamos um, ali no Calhariz.

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