sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Sabes onde é que há bons limonetes?
Imbuído do espírito conquistador, eu tinha uma missão: comer os limonetes da Confeitaria Moura em Santo Tirso, que mesmo não tendo provado dos concorrentes posso afiançar que são os melhores. Trata-se de um pastel que tem uma carapaça de massa que parece de suspiro ou daquela dos jesuítas. No topo, um fiozinho em cruz. O recheio parece, à primeira vista, de um pastel de feijão e por isso tem de se comer dois. Não é doce, é suave, não é cremoso, é pastoso, e não consegui que me dessem a receita ou e
xplicassem a origem do bolinho que tem nome de erva para chá. O mais que consegui arrancar da senhora que lá estava, pouco conversadora para quem lhe confessou ter feito quilómetros só para ir ali provar a iguaria aconselhada por uma moça da terra, foi que a casa é mais do que centenária, com uns cento e dezassete anos. Não tem nada que enganar: fica no centro, ao pé da Caixa Geral de Depósitos. O teu mapa é que não ajudou muito porque acho que me enganei a lê-lo.

Foi em Santo Tirso que o João comprou o órgão que irá animar o resto da viagem. Custou cinco euros numa loja chinesa, tem microfone, efeitos, volume com duas posições hi e lo que não fazem a menor diferença, funciona a quatro pilhas e tem entrada para um alimentador que não traz. O Miles XH322A compra-se em lotes de trinta e seis a setenta e três dólares e oitenta cêntimos, o que dá dois dólares e cinco cêntimos por unidade, que vendidas na loja a cinco euros dá uma margem de três euros e cinquenta e cinco cêntimos por cada órgão, câmbio actual e a preços do ebuychina.com, o que traduzido para português e despachando a mercadoria num contentor cheio de outras coisas para justificar os custos de envio é um granda negócio. A dois dólares por cada brinquedo, nem quero imaginar quanto ganha o operário chinês. Import-export é que está a dar e nós gastamos dinheiro naquelas tralhas que depois duram um mês, se tanto. Mas a musiquinha que dali sai é uma granda pinta e até Ponte de Lima viajámos ao som dos improvisos do João e do David. Acho que há uma filmagem disso. O David, aliás, filmou os primeiros dias da aventura e ficou de montar um pequeno vídeo sobre a odisseia. Pena que a partir do vinho verde não mais se tenha filmado. Coisas que acontecem.

O José João chegou pedindo um cigarro e acabou fumando meio maço, sentado na nossa mesa, com a mulher, espanhola, bebendo bagaço e mostrando duzentas e oitenta e uma fotografias da viagem que estão fazendo desde Dezembro, a pé. Começou por ser o caminho de Santiago, desde Tarragona até Compostela, agora é uma caminhada até Fátima que terminará lá para o final do mês em Corroios, onde o José João vai visitar o seu velhote, que está num lar. Caminhar foi a forma que o José João e a mulher encontraram para não vagabundear por Tarragona depois de perderem os empregos e a casa onde viviam. É a crise, diz ele, afagando o bigode, meio em português, meio em castelhano, que este carpinteiro metálico já leva vinte anos de Espanha e está zangado com o Zapatero, que “fodeu isto tudo, pá, crê no que te digo”. Não sabe se regressará. Agora vive um dia de cada vez, sem pressa de chegar, sem pressa de sair, porque quem tem pressa não termina a viagem, acampando pelo caminho, um albergue de peregrinos aqui, outro acolá, pernoitar num quartel de bombeiros, com companheiros que encontram pela estrada, comendo o que lhes oferecem, comprando um chouriço no minimercado com dinheiro que lhes dão os amigos que fazem na jornada, seguindo em frente com a determinação de não parar. Cigarros é que não, é um vício caro e pelo caminho há sempre quem dispense um. Depois de fazeres um caminho de Santiago só queres fazer outro, diz, com a voz rouca, a pele queimada do sol, as pernas magras dos cinco mil quilómetros que diz ter percorrido.


No pequeno café do outro lado da ponte medieval e romana de Ponte de Lima conhecemos também o Melo e a Beatriz, pai e filha de cinco anos, que estavam na mesa do lado e com quem acabaríamos por jantar, por sugestão dele, num tal de Katequero, entre brincadeiras com a miúda, que a mãe não teve férias este ano. Serviu-nos a Céline, pele branca, cabelo castanho apanhado, olhos claros e sorriso envergonhado com as nossas palhaçadas para a Beatriz e o charme palerma para ela, que está de férias a trabalhar para juntar uns dinheiros, que terminou agora o décimo segundo ano e quer ser veterinária, só não sabe onde. O bacalhau à minhota é o melhor prato da casa e meia dose chega para dois.


Ainda esperámos por ela no Rampinha, mas nada. Só o Luís, atrás do balcão, de barba e cabelo brancos, mal disposto e facilmente irritável, mas que acabou a noite a escrever-me nas costas do cartão de visita do bar “do amigo Luís Tavares”. Por momentos ainda pensei que escrevesse “do camarada”, mas enganei-me. O Luís é comunista e o Rampinha também. Por todo o lado, mas por todo o lado mesmo, há fotografias, caricaturas, recortes e textos de e sobre Che Guevara. O suporte para os pés nos bancos do balcão são a cara do Che, a daquele retrato famoso, recortada numa chapa de aço. Nas paredes amarelecidas estão pintados a preto dois retratos do comandante e um do Zeca Afonso. Aqueles vão morrer ali, no dia em que fechar o Rampinha, que há vinte e dois anos conserva a mesma imagem, ao início da Rua Formosa, que é uma rampa. Lá está.

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