Acordei com azia e com o barulho dos camiões às cinco e meia da madrugada, umas duas horas depois de nos termos deitado, depois de mais um belo improviso do João no órgão chinês. Na pousada de juventude de Ponte de Lima, estar no quarto ou acampado à beira da estrada nacional é a mesma coisa, no que toca ao ruído. Que bela obra de uma qualquer cabeça pensante que há seis anos não arranjou melhor terreno do que aquele, com vista para a estrada, os carros, as motoretas, os camiões, vrrrruuuummm... vrrrruuuummm. Impossível dormir, mesmo com um copo de vinho verde a mais. Tentei música, tentei rádio, tentei contar camiões, tentei a cabeça debaixo da almofada, tentei refrescar-me na casa de banho e tentei começar de novo. Foram horas. Acabei por convencer o João, o outro, a descer comigo para o pequeno almoço, antes das oito, para, pela primeira vez em muitos anos, beber leite com Nesquik. É que, lá em casa, depois das fases Cola Cao e Ovomaltine regressou-se ao Suchard Express para não mais o deixar. E é o que compro hoje. Mas a lata amarela de tampa azul com o amigável coelhinho, que hoje é um coelhinho todo urbano que veste calças largas e usa boné com a pala para trás, mantém os seus encantos: é muita doce. Eu fui membro do clube Nesquik mas no meu tempo não havia rios de leite chocolatado a correr por prados verdejantes, como há agora. Bebi duas canecas.
Sem mais para fazer ou ver, que Ponte de Lima é pequena e a água do rio é desaconselhada para banhos, depois de todos acordarem, depois de dois jornais lidos, cafés tomados em duas esplanadas, caminhada pela vila e um mergulho solitário dezasseis quilómetros mais acima, em Ponte da Barca, a meio da tarde rumámos a São Pedro do Sul, para a aldeia de Carvalhais. Havia quem tivesse encontro marcado no Andanças, festival internacional de danças populares, há catorze anos a mudar a vida aos pédexumbo. Como eu. No fundo tudo se resume a encontrar um bom professor. Um par que saiba conduzir e tenha paciência para ensinar, e coragem para aguentar umas caneladas e pisadelas. Acho que o festival tem, aliás, esse único objectivo, o de proporcionar encontros entre instrutores informais e instruendos empenhados em deixar-se instruir nos movimentos ritmados de coordenação entre o corpo, as pernas, e os pés — o meu pé direito não me obedece. Depois também tem aquela coisa das aulas e dos ateliês, de manhã, das sessões de djambé ao despique, à tarde na relva da escola primária, dos concertos e espectáculos, de noite, mas duvido que esses sejam os principais atractivos. Por fim, tem cerveja e uma espécie de hidromel. Uma espécie porque o que ali se vende já nada tem que ver com essa antiga bebida fermentada a partir de mel e água, com muito mais partes desta do que daquele, um néctar de cor amarela que tinha um teor alcoólico a rondar os quinze graus. Não. Ali há aguardente, ou bagaço, ou o que o valha, e de mel há um leve aroma. Resultado: bate forte e um dia depois o João, um deles, e recordo que somos três, não conseguirá sequer comer uma torrada. Fraquinho, portanto. O hidromel.
No Andanças até eu dancei. Arranjei uma professora do caraças, bailarina de grande experiência e demorada formação que, vendo-nos abandonados pelos compinchas, e depois de mais um copo, me levou pela mão para o meio da pista e estoicamente me explicou o que fazer, como fazer, e ainda louvou os meus progressos. Assim vale a pena voltar para o ano, mas desta vez que sejam uns três dias, que isto soube a pouco. A minha professora tem a pele branquinha, sardas, olhos claros, esverdeados?, apareceu de unhas vermelhas, calções escuros e chinelo no pé e, como todos os que por lá andavam, de canequinha de alumínio à cintura. Por acaso, quando se baila agarradito a caneca não ajuda. Mas a minha professora fez ballet durante quase vinte anos e irrita-se quando não consegue apanhar o passo daquelas danças assim mais mexidas. Ela chega, fica a observar uns minutos, vai batendo o pé e estudando os movimentos, até que arranca e já ninguém a pára. Profissionalíssima. Há mais de vinte anos que sabia dela, morámos na mesma rua, mas acho que nunca lhe tinha dito mais do que olá. Eu jogava à bola, ela aparecia pouco. Podem pedir o número para umas aulas, que eu não vos dou.
5 comentários:
frakinhoooo, o hidromel X)
As tuas histórias são as melhores. É que ninguém conta histórias como tu.
deram-me o endereço do teu blogue para espreitar um post... fiquei fã. escreves como eu gosto de ler.
errr.. nunca te disse que também sou fã? sou fã!
então vai passando :) mas o Rui tem o cartão número um e aquela menina ali de cima, apesar de desaparecida, tem o cartão número dois :) a outra gosta mesmo mesmo é de hidromel :P
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