domingo, 28 de outubro de 2007
Real Pudinsky, ou teorias da conspiração, ou exercícios de dedução, ou simplesmente porque é tão importante perceber a Rússia hoje, vivendo em Lisboa
É. Foi a semana quase perfeita para Vladimir Putin vir a Portugal passear o colete à prova de bala e a limusina Mercedes, para Marina Litvinenko e Alex Goldfarb lançarem o livro “Morte de um Dissidente” e para Andrei Nekrasov apresentar o documentário “Rebellion, The Litvinenko Case”. A história podia muito bem fazer um filme de 007. Mas é demasiado real.
A União Soviética desintegrou-se oficialmente em Dezembro de 1991. Boris Yeltsin demitiu-se oficialmente no último dia de 1999. Nesse dia o preço do barril de petróleo não chegava sequer a 30 dólares e já tinha batido num mínimo histórico de 11 dólares no início do ano. A Rússia tinha e tem petróleo e gás a rodos — quase na mesma proporção em que tem corrupção. A Europa é cliente e dependente da Rússia para esse abastecimento energético, tão dependente como os EUA dos combustíveis do Alasca ou do Médio Oriente, pelo que uma ameaça de fecho da torneira é ameaça grande demais para ser ignorada. Com o barril tão barato, Yeltsin não tinha, não teve, margem de manobra para desenvolver o paupérrimo e gigantesco país, então pós-comunista, pós-Perestroika de Gorbachev, e então democrático, mas sempre monumentalmente assimétrico e onde sempre existiram oligarcas, com que nomes fosse.
Vladimir Putin chegou a Presidente da Rússia enquanto desejado do embriagado Yeltsin e com 40 milhões de votos, que passariam a 70 por cento do eleitorado para a recondução em 2004. E chegou depois de menos de um ano como primeiro-ministro (Agosto 1999 a Maio de 2000), a que, por sua vez, chegou depois de outra breve passagem pela direcção do FSB (Julho 1998 a Agosto 1999, a convite de Yeltsin), a secreta russa substituta do KGB soviético, organização esta para onde foi primeiro recrutado ou se voluntariou — as fontes divergem — no ano de 1975, quando ingressou na universidade, e da qual esteve afastado entre 1991 e 1998.
A 8 e 13 de Setembro de 1999 ocorreram os Atentados de Moscovo. Primeiro, um prédio de habitação de nove andares/108 apartamentos é arrasado por 300 ou 400 quilos de explosivos detonados no piso térreo, matando 94 pessoas e ferindo 150, numa autêntica implosão demasiado incaracterística de atentado. Depois, outro edifício igualmente grande é arrasado da mesma forma, vitimando 118 e ferindo mais de 200. Pode-se acrescentar à contabilidade os 64 mortos em Buynaksk, no dia 4 do mesmo mês e ao estilo de carro-bomba em zona residencial, e mais quase duas dezenas no dia 16, em Volgodonsk.
Na sequência destes acontecimentos o primeiro-ministro Putin ordena um ataque à Chechénia, cujos nacionalistas estariam por detrás dos atentados em solo russo, dando início ao que se conhece como a Segunda Guerra da Chechénia.
Existe uma tese de que os Atentados de Moscovo terão sido uma operação negra do FSB, a secreta russa, para legitimar o ataque à Chechénia e precipitar a queda de Yeltsin e a tomada do poder por Putin.
Aleksander Litvinenko, agente do FSB desde a década de 80 até aos anos 2000, e obviamente durante a direcção de Putin, sustentou essa mesma tese pouco depois dos acontecimentos — anos mais tarde escreverá dois livros sobre isso, a corrupção generalizada no serviço e a agência enquanto máquina de poder pessoal do Poder. Para além de, juntamente com outros oficiais do FSB, ter denunciado outras acções, procedimentos e operações daquela agência à moda soviética, com muita corrupção e assassinatos pelo meio. Como a encomenda do assassinato de Boris Berezovsky — que não é nenhum santo, mas isso fica para depois —, um milionário russo que Litvinenko teve a incumbência de proteger enquanto aquele esteve no cargo de Secretário do Conselho de Segurança, e personalidade próxima do então presidente Yeltsin, passando-se isto no ano de 1998 e sob a direcção de Putin no FSB.
Não tendo cumprido a ordem, obviamente Litvinenko foi expulso do FSB, preso, julgado, absolvido e preso novamente na sala de audiência no momento seguinte à leitura da sentença da absolvição, sob acusações de ter agredido prisioneiros de guerra e roubado explosivos na primeira campanha da Chechénia. Após um mês na prisão foi libertado mediante a assinatura de um compromisso de não sair do país, que não cumpriu.
Andou fugido pela Turquia, Ucrânia, Turquia novamente e até chegar a Londres, onde pediu asilo político em pleno aeroporto de Gatwick no dia 1 de Novembro de 2000, o que lhe foi concedido em Maio do ano seguinte.
Em Outubro de 2006 tornou-se cidadão britânico e no dia 5 de Novembro foi envenenado por uma substância radioactiva extremamente rara, Polónio 210, vaporizado para a loiça de chá que lhe foi servido num conhecido hotel londrino, num encontro com outros supostos dissidentes russos do FSB, entre os quais Andrei Lugovoi, que o Reino Unido quer ver extraditado para o poder acusar e julgar, sem contudo pressionar muito os calos porque isso é chato, e que a Rússia protege e cuja extradição recusa. Litvinenko definhou lentamente durante 18 dias, até morrer sem se conhecer a causa concreta, descoberta apenas semanas depois.
Tudo isto é, no mínimo, interessante. E tem contornos que calham bem à lógica da dedução. Como mais este facto: a jornalista russa Anna Politovskaya, que escreveu sobre a dissidência de Litvinenko, sobre as guerras da Chechénia, sobre o massacre de Beslam, sobre o caso Kursk, etc etc, apareceu morta com quatro tiros no peito, à porta de casa, em Moscovo, no dia 7 daquele Novembro. Mas há muitos outros casos de jornalistas ou simples críticos ou opositores assassinados, à laia de, como diz um general soviético em sessão de doutrinação, em “Rebellion, The Litvinenko Case”, que «os traidores do regime devem ser abatidos como cães raivosos». É que a Rússia ocupa o 144º lugar da lista sobre liberdade de imprensa da Repórteres Sem Fronteiras, entre 169 países. E ditaduras assumidas na Europa só conheço a da Bielorrússia, que aparece mais mal classificada.
Porque Vladimir Putin esteve esta semana em Lisboa, com o coletinho de kevlar por debaixo do fato e a sua limusina Mercedes blindada. Porque vi “Rebellion, The Litvinenko Case”. Porque conversei com o realizador, Andrei Nekrasov. Porque essa sessão pública pós-projecção no Doc Lisboa foi muitíssimo participada e interessante. Porque esta semana, curiosamente, me deparei com detalhes do caso que não conhecia. Porque ontem um jornal inglês também veio deitar mais umas achas na fogueira — que Litvinenko terá sido sustentado pelo MI6 enquanto em Londres.
Porque o futuro da Europa joga-se, efectivamente, a Leste no continente e não na prevenção infundada de uma ameaça de mísseis e bombas nucleares por Estados muçulmanos. Porque a Rússia parece terrivelmente congelada, há já mais de cem anos, a fazer lembrar a passividade do feudalismo, sem querer puxar ao argumento da “predisposição genética para a servidão e escravatura”, que ouvi algures, e não obstante reconhecer que é dos movimentos populares aparentemente adormecidos que brotam as revoluções enquanto mudanças estruturais. Porque os tiques autoritários são mais do que tiques — isso é o que temos por cá, com a polícia a visitar sindicatos na véspera de manifestações. Ou simplesmente porque esta semana, tendo começado a dar notícias ao país, me tenha visto na obrigação de compreender melhor estes assuntos, todos os assuntos. Porque há alguma responsabilidade nisto tudo, não há? Há. Só espero que o José Manuel Fernandes, no Ípsilon desta semana, esteja enganado.
Sobre o caso Litvinenko.
Sobre o documentário.
E o resto está no Google...
Aleksander Litvinenko, por uma TV holandesa
É. Foi a semana quase perfeita para Vladimir Putin vir a Portugal passear o colete à prova de bala e a limusina Mercedes, para Marina Litvinenko e Alex Goldfarb lançarem o livro “Morte de um Dissidente” e para Andrei Nekrasov apresentar o documentário “Rebellion, The Litvinenko Case”. A história podia muito bem fazer um filme de 007. Mas é demasiado real.
A União Soviética desintegrou-se oficialmente em Dezembro de 1991. Boris Yeltsin demitiu-se oficialmente no último dia de 1999. Nesse dia o preço do barril de petróleo não chegava sequer a 30 dólares e já tinha batido num mínimo histórico de 11 dólares no início do ano. A Rússia tinha e tem petróleo e gás a rodos — quase na mesma proporção em que tem corrupção. A Europa é cliente e dependente da Rússia para esse abastecimento energético, tão dependente como os EUA dos combustíveis do Alasca ou do Médio Oriente, pelo que uma ameaça de fecho da torneira é ameaça grande demais para ser ignorada. Com o barril tão barato, Yeltsin não tinha, não teve, margem de manobra para desenvolver o paupérrimo e gigantesco país, então pós-comunista, pós-Perestroika de Gorbachev, e então democrático, mas sempre monumentalmente assimétrico e onde sempre existiram oligarcas, com que nomes fosse.
Vladimir Putin chegou a Presidente da Rússia enquanto desejado do embriagado Yeltsin e com 40 milhões de votos, que passariam a 70 por cento do eleitorado para a recondução em 2004. E chegou depois de menos de um ano como primeiro-ministro (Agosto 1999 a Maio de 2000), a que, por sua vez, chegou depois de outra breve passagem pela direcção do FSB (Julho 1998 a Agosto 1999, a convite de Yeltsin), a secreta russa substituta do KGB soviético, organização esta para onde foi primeiro recrutado ou se voluntariou — as fontes divergem — no ano de 1975, quando ingressou na universidade, e da qual esteve afastado entre 1991 e 1998.
A 8 e 13 de Setembro de 1999 ocorreram os Atentados de Moscovo. Primeiro, um prédio de habitação de nove andares/108 apartamentos é arrasado por 300 ou 400 quilos de explosivos detonados no piso térreo, matando 94 pessoas e ferindo 150, numa autêntica implosão demasiado incaracterística de atentado. Depois, outro edifício igualmente grande é arrasado da mesma forma, vitimando 118 e ferindo mais de 200. Pode-se acrescentar à contabilidade os 64 mortos em Buynaksk, no dia 4 do mesmo mês e ao estilo de carro-bomba em zona residencial, e mais quase duas dezenas no dia 16, em Volgodonsk.
Na sequência destes acontecimentos o primeiro-ministro Putin ordena um ataque à Chechénia, cujos nacionalistas estariam por detrás dos atentados em solo russo, dando início ao que se conhece como a Segunda Guerra da Chechénia.
Existe uma tese de que os Atentados de Moscovo terão sido uma operação negra do FSB, a secreta russa, para legitimar o ataque à Chechénia e precipitar a queda de Yeltsin e a tomada do poder por Putin.
Aleksander Litvinenko, agente do FSB desde a década de 80 até aos anos 2000, e obviamente durante a direcção de Putin, sustentou essa mesma tese pouco depois dos acontecimentos — anos mais tarde escreverá dois livros sobre isso, a corrupção generalizada no serviço e a agência enquanto máquina de poder pessoal do Poder. Para além de, juntamente com outros oficiais do FSB, ter denunciado outras acções, procedimentos e operações daquela agência à moda soviética, com muita corrupção e assassinatos pelo meio. Como a encomenda do assassinato de Boris Berezovsky — que não é nenhum santo, mas isso fica para depois —, um milionário russo que Litvinenko teve a incumbência de proteger enquanto aquele esteve no cargo de Secretário do Conselho de Segurança, e personalidade próxima do então presidente Yeltsin, passando-se isto no ano de 1998 e sob a direcção de Putin no FSB.
Não tendo cumprido a ordem, obviamente Litvinenko foi expulso do FSB, preso, julgado, absolvido e preso novamente na sala de audiência no momento seguinte à leitura da sentença da absolvição, sob acusações de ter agredido prisioneiros de guerra e roubado explosivos na primeira campanha da Chechénia. Após um mês na prisão foi libertado mediante a assinatura de um compromisso de não sair do país, que não cumpriu.
Andou fugido pela Turquia, Ucrânia, Turquia novamente e até chegar a Londres, onde pediu asilo político em pleno aeroporto de Gatwick no dia 1 de Novembro de 2000, o que lhe foi concedido em Maio do ano seguinte.
Em Outubro de 2006 tornou-se cidadão britânico e no dia 5 de Novembro foi envenenado por uma substância radioactiva extremamente rara, Polónio 210, vaporizado para a loiça de chá que lhe foi servido num conhecido hotel londrino, num encontro com outros supostos dissidentes russos do FSB, entre os quais Andrei Lugovoi, que o Reino Unido quer ver extraditado para o poder acusar e julgar, sem contudo pressionar muito os calos porque isso é chato, e que a Rússia protege e cuja extradição recusa. Litvinenko definhou lentamente durante 18 dias, até morrer sem se conhecer a causa concreta, descoberta apenas semanas depois.
Tudo isto é, no mínimo, interessante. E tem contornos que calham bem à lógica da dedução. Como mais este facto: a jornalista russa Anna Politovskaya, que escreveu sobre a dissidência de Litvinenko, sobre as guerras da Chechénia, sobre o massacre de Beslam, sobre o caso Kursk, etc etc, apareceu morta com quatro tiros no peito, à porta de casa, em Moscovo, no dia 7 daquele Novembro. Mas há muitos outros casos de jornalistas ou simples críticos ou opositores assassinados, à laia de, como diz um general soviético em sessão de doutrinação, em “Rebellion, The Litvinenko Case”, que «os traidores do regime devem ser abatidos como cães raivosos». É que a Rússia ocupa o 144º lugar da lista sobre liberdade de imprensa da Repórteres Sem Fronteiras, entre 169 países. E ditaduras assumidas na Europa só conheço a da Bielorrússia, que aparece mais mal classificada.
Porque Vladimir Putin esteve esta semana em Lisboa, com o coletinho de kevlar por debaixo do fato e a sua limusina Mercedes blindada. Porque vi “Rebellion, The Litvinenko Case”. Porque conversei com o realizador, Andrei Nekrasov. Porque essa sessão pública pós-projecção no Doc Lisboa foi muitíssimo participada e interessante. Porque esta semana, curiosamente, me deparei com detalhes do caso que não conhecia. Porque ontem um jornal inglês também veio deitar mais umas achas na fogueira — que Litvinenko terá sido sustentado pelo MI6 enquanto em Londres.
Porque o futuro da Europa joga-se, efectivamente, a Leste no continente e não na prevenção infundada de uma ameaça de mísseis e bombas nucleares por Estados muçulmanos. Porque a Rússia parece terrivelmente congelada, há já mais de cem anos, a fazer lembrar a passividade do feudalismo, sem querer puxar ao argumento da “predisposição genética para a servidão e escravatura”, que ouvi algures, e não obstante reconhecer que é dos movimentos populares aparentemente adormecidos que brotam as revoluções enquanto mudanças estruturais. Porque os tiques autoritários são mais do que tiques — isso é o que temos por cá, com a polícia a visitar sindicatos na véspera de manifestações. Ou simplesmente porque esta semana, tendo começado a dar notícias ao país, me tenha visto na obrigação de compreender melhor estes assuntos, todos os assuntos. Porque há alguma responsabilidade nisto tudo, não há? Há. Só espero que o José Manuel Fernandes, no Ípsilon desta semana, esteja enganado.
Sobre o caso Litvinenko.
Sobre o documentário.
E o resto está no Google...
Aleksander Litvinenko, por uma TV holandesa
terça-feira, 23 de outubro de 2007
segunda-feira, 22 de outubro de 2007
Well it's been a long time, long time now
Passava pouco das duas da manhã quando decidiste vir, afinal, e eu abri a porta para ficarmos num abraço demorado, sem palavras, tu soluçando e apertando-me com os braços a toda a volta do meu tronco, eu passando a mão no teu cabelo comprido e afagando as tuas costas por cima do casacão vermelho, mudo.
Trouxe água morna num pequeno alguidar de plástico azul escuro, e uma toalha. Descalcei-te as sabrinas brancas sem que reagisses e só te senti um breve arrepio quando passei a toalha humedecida no teu pé de menina, as unhas pintadas de vermelho, a tua pele morena de chocolate, para tentar aliviar-te a dor e um dia longo demais, duro demais, em que não andaste nas nuvens ou sobre algodão, como deverias, e como sempre parece de cada vez que te vejo ao longe a caminhar para mim ou naquela noite em que passei no eléctrico pachorrento ali à curva da geladaria e tu descias a rua num passo apressado, e o teu casacão vermelho.
Primeiro um, depois o outro, pela palma, do calcanhar aos dedos, pequeninos, do peito ao tornozelo, subi-te um pouco as calças com duas dobras e olhavas o vazio, imóvel, quando te beijei a pele muito levemente e disse, levantando-me com a toalha numa mão e o pequeno alguidar de plástico azul escuro na outra, “Deita-te na cama, descansa. Mesmo que não tires essa roupa, recosta-te e fecha os olhos”.
Deixei apenas a luz ténue do foco de leitura do candeeiro alto à cabeceira, sentei-me contigo e peguei no livro, naquela indiferença falseada que queria somente era que adormecesses. “Não sei se quero dormir”, disseste sem me olhar, com uma voz de garganta dorida por um dia longo demais, duro demais, mas recheado de poucas palavras. “Não faz mal. Chega-te perto de mim, logo se vê”, e encostaste a cabeça à minha anca e a tua mão na minha perna, as tuas ligeiramente arqueadas, as calças de ganga acinzentada da luz e os teus pés morenos com as unhas pintadas de vermelho no contraste com o edredão.
«A população queixa-se da dureza das condições de vida — verdadeiramente espartanas. Os traços de miséria são visíveis. A emigração da área agravou-se e, por toda a parte, vêem-se aldeias e terras abandonadas. Agentes de Belgrado percorrem, após o assalto croata, as aldeias de Plaski, tentando convencer a população a abandonar essa zona e a “colonizar” as áreas limpas de muçulmanos no Noroeste ou no Leste da Bósnia.», que foi quando te deixaste dormir, eu te cobri com um lençol fino e peguei no telefone para escrever ao Pieter, sentado no pufe castanho junto à parede do fundo da sala, do outro lado do corredor pequeno, a porta aberta olhando o quarto: “hoje não vou à agência, trabalho a partir de casa, liga-me de manhã”.
quinta-feira, 18 de outubro de 2007
Da doutrina do choque
É também o título do último livro de Naomi Klein, jornalista canadiana, que sumariza nesta curta-trailer, com o mexicano Alfonso Cuarón. Diz que anda a ser mostrada por aí, em festivais e coisas. A dica foi deste senhor.
É também o título do último livro de Naomi Klein, jornalista canadiana, que sumariza nesta curta-trailer, com o mexicano Alfonso Cuarón. Diz que anda a ser mostrada por aí, em festivais e coisas. A dica foi deste senhor.
domingo, 14 de outubro de 2007
Ela tinha água, mas só lhe dava melancia
Vejo cinema japonês pela mesma razão que vejo português, francês ou alemão: à procura de algo diferente de Hollywood. Por isso fui ver “O Sabor da Melancia”, de um profícuo cineasta de Taiwan, de que não conheço mais nada, Tsai Ming-Liang. E fui sem ler mais do que a sinopse: «Erótico, musical e lúbrico (...) uma história de amor em tempo de seca e de uma obsessão por melancias. Taiwan sofre uma terrível falta de água. Os canais de televisão aconselham a população a economizar e a beber sumo de melancia (...)» O que encontrei foi diferente de tudo o que havia visto até então. E a senhora que estava a umas cadeiras de mim, escondia-se com embaraço; o rapaz à minha frente não se movia; no casal atrás, ela fazia perguntas parvas — «onde é que é isto?» «que água é aquela?» — e ele tentava responder; o grupo lá de trás falava alto.
A solidão é um dos temas da fita e as personagens estão sempre sozinhas no ecrã e desencontradas entre si. O aspecto cómico é dado pelos momentos musicais, coloridos e divertidos nas coreografias e nas temáticas erótico-pornográficas, bem como na questão da escassez de água e forma como é explorada ao longo de todo o filme, e pontualmente no papel que é dado à melancia. Não tendo a pornografia nada de cómico, consegue fazer-nos rir, até à trágica cena final, em que somos esbofeteados. Há, portanto, uma pornografia não explícita (?).
Ela recolhe garrafas plásticas do lixo, para armazenar água. Ele é actor pornográfico. Encontram-se e apaixonam-se. Não se envolvem fisicamente, apenas cozinham juntos. Ela mata a sede com água, que esconde, e só lhe oferece sumo de melancia. Ele sofre uma “crise de vocação”, deixando de conseguir desempenhar o seu papel com as colegas actrizes. Uma delas morre, supõe-se de sede — recordem-se da seca em Taiwan —, e é encontrada por Ela. Mesmo morta, continua-se o filme. Ela descobre, finalmente, o que Ele faz para ganhar a vida, e assiste à cena. Ele vai fazendo-o, a custo. Os olhares cruzam-se e Ele ganha fôlego. O filme, a cena, e a cena, terminam com um longo e trágico abocanhamento — pessoalmente, acho que Ela morre sufocada.
“O Sabor da Melancia” não é mau. É muito diferente.
Desilusão, desilusão
A curta-metragem “China China”, de João Pedro Rodrigues (realizador de “Odete”) e João Rui Guerra da Mata, «conta a história de uma rapariga chinesa que vive em Lisboa e sonha com Nova Iorque, no microcosmos que é o Martim Moniz», e embora se diga que é «uma das mais belas curtas da produção portuguesa recente, apresentada nos festivais de Cannes, Vila do Conde e Indie Lisboa», é extraordinariamente vazia e má. A história conta-se num monólogo; a encenação é excessiva; «Olá piolho», para além de ser uma das quatro ou cinco frases que ouvimos da protagonista, não será o que uma mãe chinesa imigrante diga pela manhã ao seu filho nascido em Lisboa. E depois tudo termina com o miúdo matando a mãe acidentalmente, com um tiro certeiro no peito. Não havia necessidade de isto ter financiamento estatal.
Afinal tem miolo
Gastei dois euros na revista Time Out Lisboa e não me arrependo. O aspecto gráfico não se coaduna com a pretensão urbana/life style/na moda que a revista encerra, chega a ser enfadonho e a remeter para a Pública ou Notícias Magazine do princípio da década. O registo de linguagem oscila entre o descontraído/metido-jovem e pretenso cómico/Gato Fedorento. O conteúdo é leve, levezinho nalgumas páginas. Tem a melhor fotografia que vi nas dezenas de entrevistas feitas a Paul Auster na semana passada. Mas, caramba, parece ter verdadeira crítica de restaurantes!
Apreciador confesso do género, embora não consuma títulos dedicados, durante anos li as apologéticas e exaustivas-da-entrada-ao-charuto críticas gastronómicas de João Gobern no DN; depois, os tesouros de bom português com restaurantes pelo meio, de Miguel Esteves Cardoso, também no DN; a espaços compro a edição de fim-de-semana do Financial Times e leio sobre onde nunca irei jantar; mas tudo isto sempre muito elogioso e gabatório. Até chegar ao texto de Lourenço Viegas sobre o Vinotinto, neste terceiro número da Time Out.
«O Vinotinto, na nova praça de touros do Campo Pequeno, é o reino do parecer. Parece uma enoteca, mas o vinho ficou esquecido no nome e nas paredes; parece um restaurante espanhol, mas mistura comida de Espanha com entradas de Itália e saladas de aeroporto; parecem simpáticos, mas nunca nos deixam sentar nas mesas que nos apetece; parece agradável e confortável, mas saímos cansados e com o rabo a doer dos bancos. (...) O que me parece é que é tempo de deixar de haver restaurantes de franchising a trinta euros por pessoa. E, por favor, para a próxima não me obriguem a ficar na mesa ao lado da casa de banho tendo mais de meio restaurante vazio. Vá lá.»
Não é por estar a botar abaixo que gosto desta crítica. É por ser sincera e directa. Por ser simples, sem as notas de prova dos vinhos ou análise microscópica dos pratos e dos paladares. E por apontar para o que é novo e — pelo menos neste número — “de massas”, sem mais critérios, ao invés de preferir o que é de requinte e apenas para alguns, ou de assinatura mais do que reconhecida, naquele nacional porreirismo de palmadinha nas costas e são sempre os mesmos. Para ver se se mantém assim nos próximos números.
Vejo cinema japonês pela mesma razão que vejo português, francês ou alemão: à procura de algo diferente de Hollywood. Por isso fui ver “O Sabor da Melancia”, de um profícuo cineasta de Taiwan, de que não conheço mais nada, Tsai Ming-Liang. E fui sem ler mais do que a sinopse: «Erótico, musical e lúbrico (...) uma história de amor em tempo de seca e de uma obsessão por melancias. Taiwan sofre uma terrível falta de água. Os canais de televisão aconselham a população a economizar e a beber sumo de melancia (...)» O que encontrei foi diferente de tudo o que havia visto até então. E a senhora que estava a umas cadeiras de mim, escondia-se com embaraço; o rapaz à minha frente não se movia; no casal atrás, ela fazia perguntas parvas — «onde é que é isto?» «que água é aquela?» — e ele tentava responder; o grupo lá de trás falava alto.
A solidão é um dos temas da fita e as personagens estão sempre sozinhas no ecrã e desencontradas entre si. O aspecto cómico é dado pelos momentos musicais, coloridos e divertidos nas coreografias e nas temáticas erótico-pornográficas, bem como na questão da escassez de água e forma como é explorada ao longo de todo o filme, e pontualmente no papel que é dado à melancia. Não tendo a pornografia nada de cómico, consegue fazer-nos rir, até à trágica cena final, em que somos esbofeteados. Há, portanto, uma pornografia não explícita (?).
Ela recolhe garrafas plásticas do lixo, para armazenar água. Ele é actor pornográfico. Encontram-se e apaixonam-se. Não se envolvem fisicamente, apenas cozinham juntos. Ela mata a sede com água, que esconde, e só lhe oferece sumo de melancia. Ele sofre uma “crise de vocação”, deixando de conseguir desempenhar o seu papel com as colegas actrizes. Uma delas morre, supõe-se de sede — recordem-se da seca em Taiwan —, e é encontrada por Ela. Mesmo morta, continua-se o filme. Ela descobre, finalmente, o que Ele faz para ganhar a vida, e assiste à cena. Ele vai fazendo-o, a custo. Os olhares cruzam-se e Ele ganha fôlego. O filme, a cena, e a cena, terminam com um longo e trágico abocanhamento — pessoalmente, acho que Ela morre sufocada.
“O Sabor da Melancia” não é mau. É muito diferente.
Desilusão, desilusão
A curta-metragem “China China”, de João Pedro Rodrigues (realizador de “Odete”) e João Rui Guerra da Mata, «conta a história de uma rapariga chinesa que vive em Lisboa e sonha com Nova Iorque, no microcosmos que é o Martim Moniz», e embora se diga que é «uma das mais belas curtas da produção portuguesa recente, apresentada nos festivais de Cannes, Vila do Conde e Indie Lisboa», é extraordinariamente vazia e má. A história conta-se num monólogo; a encenação é excessiva; «Olá piolho», para além de ser uma das quatro ou cinco frases que ouvimos da protagonista, não será o que uma mãe chinesa imigrante diga pela manhã ao seu filho nascido em Lisboa. E depois tudo termina com o miúdo matando a mãe acidentalmente, com um tiro certeiro no peito. Não havia necessidade de isto ter financiamento estatal.
Afinal tem miolo
Gastei dois euros na revista Time Out Lisboa e não me arrependo. O aspecto gráfico não se coaduna com a pretensão urbana/life style/na moda que a revista encerra, chega a ser enfadonho e a remeter para a Pública ou Notícias Magazine do princípio da década. O registo de linguagem oscila entre o descontraído/metido-jovem e pretenso cómico/Gato Fedorento. O conteúdo é leve, levezinho nalgumas páginas. Tem a melhor fotografia que vi nas dezenas de entrevistas feitas a Paul Auster na semana passada. Mas, caramba, parece ter verdadeira crítica de restaurantes!
Apreciador confesso do género, embora não consuma títulos dedicados, durante anos li as apologéticas e exaustivas-da-entrada-ao-charuto críticas gastronómicas de João Gobern no DN; depois, os tesouros de bom português com restaurantes pelo meio, de Miguel Esteves Cardoso, também no DN; a espaços compro a edição de fim-de-semana do Financial Times e leio sobre onde nunca irei jantar; mas tudo isto sempre muito elogioso e gabatório. Até chegar ao texto de Lourenço Viegas sobre o Vinotinto, neste terceiro número da Time Out.
«O Vinotinto, na nova praça de touros do Campo Pequeno, é o reino do parecer. Parece uma enoteca, mas o vinho ficou esquecido no nome e nas paredes; parece um restaurante espanhol, mas mistura comida de Espanha com entradas de Itália e saladas de aeroporto; parecem simpáticos, mas nunca nos deixam sentar nas mesas que nos apetece; parece agradável e confortável, mas saímos cansados e com o rabo a doer dos bancos. (...) O que me parece é que é tempo de deixar de haver restaurantes de franchising a trinta euros por pessoa. E, por favor, para a próxima não me obriguem a ficar na mesa ao lado da casa de banho tendo mais de meio restaurante vazio. Vá lá.»
Não é por estar a botar abaixo que gosto desta crítica. É por ser sincera e directa. Por ser simples, sem as notas de prova dos vinhos ou análise microscópica dos pratos e dos paladares. E por apontar para o que é novo e — pelo menos neste número — “de massas”, sem mais critérios, ao invés de preferir o que é de requinte e apenas para alguns, ou de assinatura mais do que reconhecida, naquele nacional porreirismo de palmadinha nas costas e são sempre os mesmos. Para ver se se mantém assim nos próximos números.
sábado, 6 de outubro de 2007
sexta-feira, 5 de outubro de 2007
quinta-feira, 4 de outubro de 2007
Basileia ao jantar, Chimarrão ao almoço – dias 19 e 20 – o fim
Para chegar a Basileia, de onde voaríamos para Lisboa, tínhamos de atravessar a Alemanha em três etapas que durariam onze horas, a primeira das quais de Praga até Dresden. Às quatro e dezassete da madrugada subimos a bordo e tentámos procurar um compartimento livre sem incomodar demasiado quem já estava em viagem e a dormir, abrindo as portas com cuidado e afastando as cortinas somente o suficiente para perceber se havia quatro lugares disponíveis. Foi aí que a cabeça de um fulano meio careca, usando sandálias com meias cinzentas e óculos de lentes e armação grossas, apareceu de repente por entre as portas que tínhamos fechado e acenou para que entrássemos, que foi o que fizemos.
Com as luzes do compartimento sempre apagadas, arrumámos as mochilas, preenchemos o bilhete e sentámo-nos para descansar os olhos. Eu fiquei à janela, no sentido da marcha do comboio; à minha frente o passageiro; ao lado dele com uma cadeira de intervalo ficou o Rui; ao meu lado a Joana e o Pedro. O fado repetiu-se e eu fui ouvindo música repisada no meu leitor de MP3 portátil manhoso e com pouco por onde escolher durante as primeiras duas horas, enquanto todos dormiam e eu ia trocando as pernas com ginástica, para não tocar e acordar o senhor. Com a primeira claridade do dia, o passageiro puxou d’O Livro e começou a ler, intercalando os parágrafos com olhadelas à Joana. Ninguém me diz que ele não estava a combater uma tentação... Depois rezou. Depois comeu. E depois nós saímos e ele continuou, sempre sem trocarmos uma palavra.
Em solo germânico, dividimo-nos novamente. Eles foram espreitar as imediações da estação de Dresden, eu e a Joana preferimos tomar o pequeno almoço sentados na estação e aproveitar para escrever mais um pouco. O comboio para Frankfurt sairia às nove menos cinco e reencontrámo-nos já na linha, perto do modernaço ICE 1640 que, perante o frio insistente durante toda a viagem, valeu ao Rui uma boa pergunta: “sir, why is it so cold?” e uma bonita resposta do comissário de bordo: “it’s not cold, it’s the air conditioning”. Mas a coisa pioraria pouco depois, com a chegada de uma nova equipa de comissários e o anúncio de que o comboio seguia com meia hora de atraso. Um comboio atrasado no país do rigor? No país do espaço Schengen que valeu uma análise minuciosa e com direito a lupa ao meu passaporte, que não é o novíssimo electrónico, por parte do pastor alemão na fronteira da Checa com a Germânia? Perguntei à senhora quais eram as alternativa para chegarmos a Basileia e percebi que teríamos de esperar uma hora em Frankfurt e ainda fazer um transbordo extra em Mannheim, o que nos arrastaria a chegada a casa da Ana lá para as cinco ou seis da tarde. A Ana é a minha irmã do meio, temos dez anos de diferença.
Em Frankfurt dirigi-me à bilheteira para confirmar o novo plano de viagem e pedir o reembolso dos trinta e oito euros que tinham custado as quatro reservas do comboio que acabáramos de perder — tudo é caro na Alemanha. Aparentemente, para receber o dinheiro de volta só teria de preencher um formulário, deixar que copiassem a reserva e fornecer o meu número de conta internacional. Mas passar-se-ão semanas em Lisboa sem que o dinheiro tenha regressado, e passar-se-á a fase em que a cada dois dias eu olhava a cópia do pedido de reembolso para confirmar que não tinha errado nenhum dígito no meu IBAN.
Até Mannheim foi um tirinho e daí a Basileia mais três ou quatro horas, que também passaram rápido. Ou então estávamos todos tão fartos — mas mesmo fartos — de comboios que a amnésia tomou conta dessas horas. Viajámos separados, porque o comboio estava quase cheio e não conseguimos lugar para todos na mesma carruagem. Mas nem por isso nos enganámos na saída, porque em Basileia há a estação alemã e a estação suíça e principal, e era esta que queríamos, a Basel SBB. Das duas vezes que estive na cidade aquela estação sempre me pareceu extremamente movimentada para a dimensão das instalações — era perto das seis da tarde —, mas curiosamente gostei, gosto, do ambiente. Porque tem um mini Coop, o supermercado que se encontra a cada esquina, porque tem lojas de chocolates, de electrodomésticos, de roupa, e vendedores ambulantes de queijo, asseados. Comprar queijo na Suíça é diferente de o fazer em qualquer outra parte do mundo — excepto Paris, talvez, mas nunca lá estive —, porque a oferta é imensa, há queijos de tudo e com tudo, e o cliente pode e deve provar antes de decidir levar, e se forem dois não há problema, dá-se a provar duas falhinhas do produto. Falhinha é o diminutivo de um termo algarvio para fatia. O Rui sabe do que falo.
Depois de trocar o que restava de dinheiro croata e checo por francos suíços, e não conseguir trocar os dinares sérvios, chegámos a casa da Ana, que fica a menos de dez minutos da estação, numa zona de moradias e prédios de apenas dois andares. Feitas as apresentações e tomados os banhos, jantámos frango assado, arroz branco, batatas fritas de pacote, salada de espinafres, um tinto alentejano de reserva e gelados Mövenpick, provavelmente os melhores do planeta. A minha irmã Ana foi como uma mãe e recebeu-nos muito bem. Em troca, falámos pouco ou nada, não tirámos nenhuma fotografia juntos, demos uns poucos abraços para esquecer a saudade de seis meses, e depois ainda a fomos levar a casa de uma amiga, onde dormiria aquela noite — até isso ela fez por nós: deixou-nos à vontade na sua casa.
Depois levei os rapazes a ver as correntes fortíssimas que o Reno tem ali, a espreitar as pontes, passar pela zona dos bares que estavam vazios ou fechados, e a andar um bom pedaço, porque no regresso a casa me enganei e meti por umas ruas que não eram as que eu queria. Mas chegámos. Bastante tarde, caímos todos no sono logo de imediato e quando às seis da matina os despertadores começaram a tocar, ninguém quis acreditar. Era cedo demais, ainda estava escuro, lá fora tinha acabado de chover e tínhamos que nos apressar para chegar ao aeroporto de Basileia, curiosamente em solo alemão.
Feito o check-in, tomámos o pequeno almoço nos bancos do aeroporto para gastar as últimas moedas. E tudo passou muito rápido. Quando demos por nós tínhamos embarcado; o Pedro estava ansioso pela sua estreia nos ares; o Rui comentava comigo a assistente de bordo morena de olhos azuis; o Pedro debruçava-se sobre o assento para me ver, na fila da direita, e perguntar se aqueles barulhos eram normais; eu debruçava-me em resposta e acenava que sim; vimos a Costa da Caparica e o Cristo Rei; aterrámos e houve quem batesse palmas; esperámos uma boa meia hora pelas malas; deixámos a Joana com a família, que a tinha ido buscar, no dia de aniversário do pai; e eu, o Pedro e o Rui fomos para o único sítio onde poderíamos ir, o Chimarrão, onde entrámos ainda antes do meio-dia. Depois de nos fazermos de coitadinhos e esfomeados, que vimos de tão longe com a mochila às costas, de provar cerveja a sério pela primeira vez em vinte dias e nove países, e de eu esquecer a carta que prometera escrever ao Inter-Rail, reclamando por não explicarem com seriedade que não são “só alguns” comboios que combram taxas extra, mas a maioria, separámo-nos no metro. Eles foram para os expressos em Sete Rios, eu segui para o Cais do Sodré. Atravessar o rio num ferry ao sol de mais de trinta graus, a ouvir o barulho do casco a cortar o Tejo, foi quanto bastou: estava, estávamos todos, em casa.
Para chegar a Basileia, de onde voaríamos para Lisboa, tínhamos de atravessar a Alemanha em três etapas que durariam onze horas, a primeira das quais de Praga até Dresden. Às quatro e dezassete da madrugada subimos a bordo e tentámos procurar um compartimento livre sem incomodar demasiado quem já estava em viagem e a dormir, abrindo as portas com cuidado e afastando as cortinas somente o suficiente para perceber se havia quatro lugares disponíveis. Foi aí que a cabeça de um fulano meio careca, usando sandálias com meias cinzentas e óculos de lentes e armação grossas, apareceu de repente por entre as portas que tínhamos fechado e acenou para que entrássemos, que foi o que fizemos.
Com as luzes do compartimento sempre apagadas, arrumámos as mochilas, preenchemos o bilhete e sentámo-nos para descansar os olhos. Eu fiquei à janela, no sentido da marcha do comboio; à minha frente o passageiro; ao lado dele com uma cadeira de intervalo ficou o Rui; ao meu lado a Joana e o Pedro. O fado repetiu-se e eu fui ouvindo música repisada no meu leitor de MP3 portátil manhoso e com pouco por onde escolher durante as primeiras duas horas, enquanto todos dormiam e eu ia trocando as pernas com ginástica, para não tocar e acordar o senhor. Com a primeira claridade do dia, o passageiro puxou d’O Livro e começou a ler, intercalando os parágrafos com olhadelas à Joana. Ninguém me diz que ele não estava a combater uma tentação... Depois rezou. Depois comeu. E depois nós saímos e ele continuou, sempre sem trocarmos uma palavra.
Em solo germânico, dividimo-nos novamente. Eles foram espreitar as imediações da estação de Dresden, eu e a Joana preferimos tomar o pequeno almoço sentados na estação e aproveitar para escrever mais um pouco. O comboio para Frankfurt sairia às nove menos cinco e reencontrámo-nos já na linha, perto do modernaço ICE 1640 que, perante o frio insistente durante toda a viagem, valeu ao Rui uma boa pergunta: “sir, why is it so cold?” e uma bonita resposta do comissário de bordo: “it’s not cold, it’s the air conditioning”. Mas a coisa pioraria pouco depois, com a chegada de uma nova equipa de comissários e o anúncio de que o comboio seguia com meia hora de atraso. Um comboio atrasado no país do rigor? No país do espaço Schengen que valeu uma análise minuciosa e com direito a lupa ao meu passaporte, que não é o novíssimo electrónico, por parte do pastor alemão na fronteira da Checa com a Germânia? Perguntei à senhora quais eram as alternativa para chegarmos a Basileia e percebi que teríamos de esperar uma hora em Frankfurt e ainda fazer um transbordo extra em Mannheim, o que nos arrastaria a chegada a casa da Ana lá para as cinco ou seis da tarde. A Ana é a minha irmã do meio, temos dez anos de diferença.
Em Frankfurt dirigi-me à bilheteira para confirmar o novo plano de viagem e pedir o reembolso dos trinta e oito euros que tinham custado as quatro reservas do comboio que acabáramos de perder — tudo é caro na Alemanha. Aparentemente, para receber o dinheiro de volta só teria de preencher um formulário, deixar que copiassem a reserva e fornecer o meu número de conta internacional. Mas passar-se-ão semanas em Lisboa sem que o dinheiro tenha regressado, e passar-se-á a fase em que a cada dois dias eu olhava a cópia do pedido de reembolso para confirmar que não tinha errado nenhum dígito no meu IBAN.
Até Mannheim foi um tirinho e daí a Basileia mais três ou quatro horas, que também passaram rápido. Ou então estávamos todos tão fartos — mas mesmo fartos — de comboios que a amnésia tomou conta dessas horas. Viajámos separados, porque o comboio estava quase cheio e não conseguimos lugar para todos na mesma carruagem. Mas nem por isso nos enganámos na saída, porque em Basileia há a estação alemã e a estação suíça e principal, e era esta que queríamos, a Basel SBB. Das duas vezes que estive na cidade aquela estação sempre me pareceu extremamente movimentada para a dimensão das instalações — era perto das seis da tarde —, mas curiosamente gostei, gosto, do ambiente. Porque tem um mini Coop, o supermercado que se encontra a cada esquina, porque tem lojas de chocolates, de electrodomésticos, de roupa, e vendedores ambulantes de queijo, asseados. Comprar queijo na Suíça é diferente de o fazer em qualquer outra parte do mundo — excepto Paris, talvez, mas nunca lá estive —, porque a oferta é imensa, há queijos de tudo e com tudo, e o cliente pode e deve provar antes de decidir levar, e se forem dois não há problema, dá-se a provar duas falhinhas do produto. Falhinha é o diminutivo de um termo algarvio para fatia. O Rui sabe do que falo.
Depois de trocar o que restava de dinheiro croata e checo por francos suíços, e não conseguir trocar os dinares sérvios, chegámos a casa da Ana, que fica a menos de dez minutos da estação, numa zona de moradias e prédios de apenas dois andares. Feitas as apresentações e tomados os banhos, jantámos frango assado, arroz branco, batatas fritas de pacote, salada de espinafres, um tinto alentejano de reserva e gelados Mövenpick, provavelmente os melhores do planeta. A minha irmã Ana foi como uma mãe e recebeu-nos muito bem. Em troca, falámos pouco ou nada, não tirámos nenhuma fotografia juntos, demos uns poucos abraços para esquecer a saudade de seis meses, e depois ainda a fomos levar a casa de uma amiga, onde dormiria aquela noite — até isso ela fez por nós: deixou-nos à vontade na sua casa.
Depois levei os rapazes a ver as correntes fortíssimas que o Reno tem ali, a espreitar as pontes, passar pela zona dos bares que estavam vazios ou fechados, e a andar um bom pedaço, porque no regresso a casa me enganei e meti por umas ruas que não eram as que eu queria. Mas chegámos. Bastante tarde, caímos todos no sono logo de imediato e quando às seis da matina os despertadores começaram a tocar, ninguém quis acreditar. Era cedo demais, ainda estava escuro, lá fora tinha acabado de chover e tínhamos que nos apressar para chegar ao aeroporto de Basileia, curiosamente em solo alemão.
Feito o check-in, tomámos o pequeno almoço nos bancos do aeroporto para gastar as últimas moedas. E tudo passou muito rápido. Quando demos por nós tínhamos embarcado; o Pedro estava ansioso pela sua estreia nos ares; o Rui comentava comigo a assistente de bordo morena de olhos azuis; o Pedro debruçava-se sobre o assento para me ver, na fila da direita, e perguntar se aqueles barulhos eram normais; eu debruçava-me em resposta e acenava que sim; vimos a Costa da Caparica e o Cristo Rei; aterrámos e houve quem batesse palmas; esperámos uma boa meia hora pelas malas; deixámos a Joana com a família, que a tinha ido buscar, no dia de aniversário do pai; e eu, o Pedro e o Rui fomos para o único sítio onde poderíamos ir, o Chimarrão, onde entrámos ainda antes do meio-dia. Depois de nos fazermos de coitadinhos e esfomeados, que vimos de tão longe com a mochila às costas, de provar cerveja a sério pela primeira vez em vinte dias e nove países, e de eu esquecer a carta que prometera escrever ao Inter-Rail, reclamando por não explicarem com seriedade que não são “só alguns” comboios que combram taxas extra, mas a maioria, separámo-nos no metro. Eles foram para os expressos em Sete Rios, eu segui para o Cais do Sodré. Atravessar o rio num ferry ao sol de mais de trinta graus, a ouvir o barulho do casco a cortar o Tejo, foi quanto bastou: estava, estávamos todos, em casa.
quarta-feira, 3 de outubro de 2007
segunda-feira, 1 de outubro de 2007
Praga, o reencontro (e com as calças também) – dias 16, 17 e 18
Pareceu-me ver passar a Anna na estação, à chegada. Mas também é muito provável que tenha sido do cansaço. Afinal, eram cinco e quanto da manhã? Desde o ano passado, quando nos conhecemos em Praga, que lhe tinha prometido um reencontro quando fosse a Budapeste, mas dias antes trocámos mensagens e eu logo avisei que afinal estaria só de passagem pela estação. A Anna é russa, loira e branquinha como as russas, e trabalha como jornalista na televisão húngara.
Descemos do comboio sem pressa, à conversa com o finlandês solitário a quem tinha calhado uma couchette cheia de malta jovem e faladora, e passámos por aquele que seria o nosso comboio de ligação a Praga, estacionado na linha, do qual demos conta pelo pequeno quadro electrónico à porta de uma das carruagens, com a indicação do destino e a hora de partida. Puxei da bolsa a folha onde tinha apontado os horários dos comboios e percebi o erro: a ligação era duas horas mais cedo do que eu vinha assegurando, e dali a cinco minutos. Procurámos um pica junto à composição, que era enorme, mas não encontrámos nenhum e segundo a cábula aquele Euro City requeria reserva. Honestos, fomos à bilheteira internacional e depois de esperar bastante na fila, o bilheteiro feio, antipático e com cabelo à tigela lambido, anunciou que os húngaros são uns mãos largas e não cobram taxas nenhumas a quem viaja por inter-rail, respondendo à nossa desconsolada pergunta “so, we missed the train?” com um sarcástico “yes, you missed the train”.
Profundamente chateados por saber que chegaríamos a Praga perto das seis da tarde e não à uma, encontrámos uma casa de banho para a Joana mudar de roupa e agasalhar as pernas, tentámos trocar os meus dois mil e seiscentos dinares sérvios num balcão da Western Union, onde perante a antipatia da gaja que estava para lá do vidro do guichet, a Joana perdeu a cabeça e quase lhe quis bater, e depois fomos para o MacDonalds em frente da estação, para aceder à internet. A cem forints por cada vinte minutos, consultámos o email, reservámos um hostel no centro de Praga e eu escrevi no blogue pela primeira vez desde o início da viagem, sobre aquelas horas terroríficas em Budapeste.
Ao nosso lado no MacKiosk estava um homem vestido de preto, que tresandava a perfume e por isso o apelidei de “o cheiroso”. Eu não tinha nada contra o cheiroso. Até precisar ir à casa de banho do restaurante para um chichi, porque seguramente estaria mais limpa que a da estação. À entrada reparei na porta aberta de um dos cubículos, onde estava encostada uma mochila, e ouvi o que não queria ouvir: alguém estava desarranjado e a borrar-se, repetidamente. Fiz o que tinha a fazer e enquanto estava debruçado a lavar as mãos, olhei o espelho em frente e vi o cheiroso sair daquele preciso cubículo e colocar-se atrás de mim, mas porque eu devo ter demorado mais cinco segundos do que ele estaria disposto a esperar, saiu sem lavar as manápulas. As mesmas que, quando saí dos lavabos, já estavam a teclar novamente num dos computadores do MacKiosk. Nojento.
No comboio para Praga eu e a Joana estávamos de rastos. Eu, que não durmo em transportes, não conseguia manter-me acordado e com ela foi igual, até chegar aquela fase da viagem em que as sete horas do percurso pareciam não acabar e tivemos de passear pelas carruagens para nos entretermos e manter acordados. Foi aí que decidimos contar ao Pedro e ao Rui em Praga a segunda e última mentira da viagem, de que teríamos visto o Nuno Markl naquele comboio — perante a qualidade do sósia e uma prova material, não resistimos. Quem não acreditaria?
Para a Joana, ir a Praga significava regressar à “sua” cidade, oito meses depois de a ter deixado, e isso via-se no desembaraço e exigência em ser ela a comprar os bilhetes para o metro e a liderar o caminho, nos olhos húmidos e no sorriso tímido mas apaixonado, que lhe conheço, ao ler e ouvir a indicação de cada uma das paragens. Para mim, que também conhecia a cidade por lá ter passado umas três semanas no último Agosto, quando toda a Europa foi varrida por uma vaga de calor que nada tinha que ver com os vinte e poucos graus que sentiríamos durante os três dias de estadia, o que ditou que não mais andássemos de pernas ao léu e que o Pedro adoptasse de vez os ténis, era o início do regresso a casa, numa cidade que me era familiar. Desde a Croácia que eu perdia o alento de cada vez que reconhecia ter de viajar noutro comboio, em campanhas nunca inferiores a cinco horas, e por estar constantemente afastando-me de Lisboa.
Por outro lado, e como tínhamos planeado tratar-nos bem na última etapa, foi tempo de descanso e de passar em revista as três semanas de viagem e recordar alguns pormenores. Como aquele supermercado em Hvar que nalguns sítios tinha menos de trinta centímetros entre as estantes com os produtos e os pilares da casa. Como eu ter acumulado, sem querer, quase todos os postais que comprei e escrevi durante a viagem, para enviar a partir de Praga — talvez pelos selos colados por cima de outros, alguns nunca tenham chegado ao destino. Como aquela noite, já não me lembro onde, em que formulei a teoria de que o turismo inglês na Praia da Rocha é de “pé descalço” e que as “bifas” que por lá andam são em grande percentagem feias e a atirar para o gordo, axioma a que chamei “as inglesas da Praia da Rocha são as filhas dos motoristas da Carris de Londres”, que valeu ao Pedro um daqueles seus ataques de riso estranhos em que ele solta um guincho, fica vermelho e de boca aberta, e despenteia-se descontroladamente. Ou como o Rui, que tinha vindo para a viagem com uma bola de futebol, que pacientemente transportou à mão dentro de um saco plástico do Continente durante três semanas, ter deixado de tentar jogar à bola nas estações de comboio logo depois de tentativas frustradas pelos vigilantes de serviço em Badajoz, Madrid, Barcelona, Cerbere e Montpellier — ao cabo de três dias, portanto.
Depois de jantar com a Joana num restaurante que ela conhecia perto do Museu Nacional, fomos esperar o Rui e o Pedro à estação, com o Pavel, um checo amigo. O comboio deles chegou com mais de quarenta minutos de atraso, perto das dez da noite, e não me espantou ver o Pedro descer a sorrir e o Rui acompanhado de uma rapariga loira com um vestido bastante curto — reforço: bastante curto. A Carol era irlandesa, tinha apenas 18 anos e um sorriso mesmo de menina. Havia deixado os amigos com quem viajava para ver Praga, e perante aquela candura solitária no comboio, o Rui achou por bem poupá-la ao desconhecido e levá-la para o nosso quarto no hostel, onde havia pelo menos mais três camas livres. Para mim e para o Pedro foi quanto bastou para nos divertirmos o resto da noite a gozar com ele, depois de passear pela baixa da cidade, levar os rapazes a uma casa de pizzas à fatia, olhar o relógio na praça central da baixa, passar a Ponte de Carlos para a outra margem, regressar e perder imenso tempo procurando um bar onde beber umas canecas de cerveja.
Quando acordámos já a Carol tinha ido embora sem se despedir, nem mesmo do Rui. Então fomos almoçar goulash num restaurante onde a empregada ficou furiosa ao recusarmos o menu inglês, porque a Joana queria recordar o checo, o suficiente para a tipa e os checos em geral acharem que assim o turista vai é escolher os pratos mais baratos e poupar nas coroas. Enganaram-se e enganam-se redondamente, porque nós queríamos gastar algum dinheiro e porque a República Checa é um destino relativamente barato para um português, o que dispensa comentários para norte-americanos ou ingleses. Os empregados de mesa checos não gostam de quem não deixa gorjeta, o que até se percebe porque os salários deles são baixos e eu acho que em Portugal é que esse comportamento social não está assim tão enraizado — deixámos trocos. E por falar em salários baixos, ainda encontrarei quem confirme que aqueles acompanhamentos típicos dos pratos checos, umas fatias de massa de pão ou de batata, os knedliky, são uma herança histórica dos tempos de fome, em que o que importava era encher a barriguinha.
O resto do dia foi passado a caminhar pela baixa da cidade, pelo bairro judeu, pela Ponte de Carlos repleta de gente, pelo castelo e numa subida à pequena réplica da torre Eiffel, no cimo de um morro de onde se vê toda a cidade até ao horizonte. Eles subiram ao topo, eu fiquei-me pelo primeiro piso. Foi por essa altura que o Pedro e o Rui elegeram Praga como a cidade mais bonita onde tinham estado, o que se percebe. A cidade mistura a monumentalidade a cada esquina com a funcionalidade — da planície em que foi construída, propícia à caminhada, do bom sistema de transportes públicos, e de uma aparente vida própria alheia ao turismo — e tudo parece fluir. E estar de passagem durante poucos dias com alguém que lá viveu uma temporada foi uma vantagem. Só assim pudemos passar umas horas descontraídas no Bohemian Bagels, uma casa com óptimos bagels, um brownie de chocolate divinal e café expresso digno desse nome para os padrões da Europa de Leste, ao som de boa música embalando a conversa ou a escrita no meu caderninho castanho. Esta história, que agora se aproxima do final, começou sendo escrita num pequeno Moleskine de bolso com trinta e duas folhas pautadas cozidas com um fio de linho castanho claro a uma capa de cartão fino e mole da mesma cor, onde escrevi com a minha Lakubo preta de ponta zero-sete, a única que não borra o papel daquela marca.
Nessa noite jantámos num dos restaurantes mais concorridos de Praga, de que não recordamos o nome nem, muito sinceramente, o que comemos. O Rui partilhou comigo um vinho branco francês mediano e no final passou um quarto de hora cheirando o pouquíssimo Porto Tawny que lhe serviram num balão. O Pedro gostou do tabaco checo que comprou. E a Joana bebeu mais uma San Pellegrino, a melhor água gasocarbónica do planeta — não se encontrar San Pellegrino nos supermercados portugueses é uma heresia.
Na prática passámos só dois dias em Praga e o segundo teve ainda mais de ócio e repouso que o primeiro. Não para as pernas, porque continuámos andando muito, mas para o resto do corpo. Nestas vinte e quatro horas finais acho que pouco mais fizemos do que procurar uma tshirt de turista para o Pedro, jantar pizzas no Tesco, o supermercado onde a Joana tentou comprar as coisinhas todas a que tinha sido habituada e de que queria levar um pequeno carregamento para Lisboa, e convencer o dono de um sports bar a ceder a televisão mais pequenina que tinha, à entrada do bar, para o Benfica 1 – Copenhaga 0, no dia em que todos os bares do género estavam cheios com jogos dos dois clubes da cidade, o Sparta e o Slavia. O Pedro e o Rui são doentes por futebol. Sempre que usámos a internet ao longo da viagem a primeira paragem de qualquer um deles foi o site d’A Bola. Para além das mensagens diárias de amigos e pais com as mais frescas das lesões ou a novela “Fernando Santos sai, José António Camacho regressa”. Por isso não se estranhou o grito do Pedro quando o Benfica marcou. Mas bem que podiam ter mostrado alguma iniciativa na marcação de dormidas ou pesquisa de horários de comboios.
Depois do jogo passámos tempo no hostel até a sala de convívio fechar, à meia-noite, altura em que rumámos ao MacDonalds 24h para passar mais tempo até cerca das quatro da madrugada, quando partiria o comboio que nos levaria a Dresden, para finalmente terminarmos na Suíça. A discussão sobre as normas de vestuário em contextos institucionais, ou simplesmente sobre por que razão a Joana tinha sido impedida de entrar na igreja em Padova, ou por que raio é que eu acho que não se deve ir para a universidade em calção (de banho ou similar) e chinelo, azedou e deu direito a amuo do Rui, até Frankfurt.
Pareceu-me ver passar a Anna na estação, à chegada. Mas também é muito provável que tenha sido do cansaço. Afinal, eram cinco e quanto da manhã? Desde o ano passado, quando nos conhecemos em Praga, que lhe tinha prometido um reencontro quando fosse a Budapeste, mas dias antes trocámos mensagens e eu logo avisei que afinal estaria só de passagem pela estação. A Anna é russa, loira e branquinha como as russas, e trabalha como jornalista na televisão húngara.
Descemos do comboio sem pressa, à conversa com o finlandês solitário a quem tinha calhado uma couchette cheia de malta jovem e faladora, e passámos por aquele que seria o nosso comboio de ligação a Praga, estacionado na linha, do qual demos conta pelo pequeno quadro electrónico à porta de uma das carruagens, com a indicação do destino e a hora de partida. Puxei da bolsa a folha onde tinha apontado os horários dos comboios e percebi o erro: a ligação era duas horas mais cedo do que eu vinha assegurando, e dali a cinco minutos. Procurámos um pica junto à composição, que era enorme, mas não encontrámos nenhum e segundo a cábula aquele Euro City requeria reserva. Honestos, fomos à bilheteira internacional e depois de esperar bastante na fila, o bilheteiro feio, antipático e com cabelo à tigela lambido, anunciou que os húngaros são uns mãos largas e não cobram taxas nenhumas a quem viaja por inter-rail, respondendo à nossa desconsolada pergunta “so, we missed the train?” com um sarcástico “yes, you missed the train”.
Profundamente chateados por saber que chegaríamos a Praga perto das seis da tarde e não à uma, encontrámos uma casa de banho para a Joana mudar de roupa e agasalhar as pernas, tentámos trocar os meus dois mil e seiscentos dinares sérvios num balcão da Western Union, onde perante a antipatia da gaja que estava para lá do vidro do guichet, a Joana perdeu a cabeça e quase lhe quis bater, e depois fomos para o MacDonalds em frente da estação, para aceder à internet. A cem forints por cada vinte minutos, consultámos o email, reservámos um hostel no centro de Praga e eu escrevi no blogue pela primeira vez desde o início da viagem, sobre aquelas horas terroríficas em Budapeste.
Ao nosso lado no MacKiosk estava um homem vestido de preto, que tresandava a perfume e por isso o apelidei de “o cheiroso”. Eu não tinha nada contra o cheiroso. Até precisar ir à casa de banho do restaurante para um chichi, porque seguramente estaria mais limpa que a da estação. À entrada reparei na porta aberta de um dos cubículos, onde estava encostada uma mochila, e ouvi o que não queria ouvir: alguém estava desarranjado e a borrar-se, repetidamente. Fiz o que tinha a fazer e enquanto estava debruçado a lavar as mãos, olhei o espelho em frente e vi o cheiroso sair daquele preciso cubículo e colocar-se atrás de mim, mas porque eu devo ter demorado mais cinco segundos do que ele estaria disposto a esperar, saiu sem lavar as manápulas. As mesmas que, quando saí dos lavabos, já estavam a teclar novamente num dos computadores do MacKiosk. Nojento.
No comboio para Praga eu e a Joana estávamos de rastos. Eu, que não durmo em transportes, não conseguia manter-me acordado e com ela foi igual, até chegar aquela fase da viagem em que as sete horas do percurso pareciam não acabar e tivemos de passear pelas carruagens para nos entretermos e manter acordados. Foi aí que decidimos contar ao Pedro e ao Rui em Praga a segunda e última mentira da viagem, de que teríamos visto o Nuno Markl naquele comboio — perante a qualidade do sósia e uma prova material, não resistimos. Quem não acreditaria?
Para a Joana, ir a Praga significava regressar à “sua” cidade, oito meses depois de a ter deixado, e isso via-se no desembaraço e exigência em ser ela a comprar os bilhetes para o metro e a liderar o caminho, nos olhos húmidos e no sorriso tímido mas apaixonado, que lhe conheço, ao ler e ouvir a indicação de cada uma das paragens. Para mim, que também conhecia a cidade por lá ter passado umas três semanas no último Agosto, quando toda a Europa foi varrida por uma vaga de calor que nada tinha que ver com os vinte e poucos graus que sentiríamos durante os três dias de estadia, o que ditou que não mais andássemos de pernas ao léu e que o Pedro adoptasse de vez os ténis, era o início do regresso a casa, numa cidade que me era familiar. Desde a Croácia que eu perdia o alento de cada vez que reconhecia ter de viajar noutro comboio, em campanhas nunca inferiores a cinco horas, e por estar constantemente afastando-me de Lisboa.
Por outro lado, e como tínhamos planeado tratar-nos bem na última etapa, foi tempo de descanso e de passar em revista as três semanas de viagem e recordar alguns pormenores. Como aquele supermercado em Hvar que nalguns sítios tinha menos de trinta centímetros entre as estantes com os produtos e os pilares da casa. Como eu ter acumulado, sem querer, quase todos os postais que comprei e escrevi durante a viagem, para enviar a partir de Praga — talvez pelos selos colados por cima de outros, alguns nunca tenham chegado ao destino. Como aquela noite, já não me lembro onde, em que formulei a teoria de que o turismo inglês na Praia da Rocha é de “pé descalço” e que as “bifas” que por lá andam são em grande percentagem feias e a atirar para o gordo, axioma a que chamei “as inglesas da Praia da Rocha são as filhas dos motoristas da Carris de Londres”, que valeu ao Pedro um daqueles seus ataques de riso estranhos em que ele solta um guincho, fica vermelho e de boca aberta, e despenteia-se descontroladamente. Ou como o Rui, que tinha vindo para a viagem com uma bola de futebol, que pacientemente transportou à mão dentro de um saco plástico do Continente durante três semanas, ter deixado de tentar jogar à bola nas estações de comboio logo depois de tentativas frustradas pelos vigilantes de serviço em Badajoz, Madrid, Barcelona, Cerbere e Montpellier — ao cabo de três dias, portanto.
Depois de jantar com a Joana num restaurante que ela conhecia perto do Museu Nacional, fomos esperar o Rui e o Pedro à estação, com o Pavel, um checo amigo. O comboio deles chegou com mais de quarenta minutos de atraso, perto das dez da noite, e não me espantou ver o Pedro descer a sorrir e o Rui acompanhado de uma rapariga loira com um vestido bastante curto — reforço: bastante curto. A Carol era irlandesa, tinha apenas 18 anos e um sorriso mesmo de menina. Havia deixado os amigos com quem viajava para ver Praga, e perante aquela candura solitária no comboio, o Rui achou por bem poupá-la ao desconhecido e levá-la para o nosso quarto no hostel, onde havia pelo menos mais três camas livres. Para mim e para o Pedro foi quanto bastou para nos divertirmos o resto da noite a gozar com ele, depois de passear pela baixa da cidade, levar os rapazes a uma casa de pizzas à fatia, olhar o relógio na praça central da baixa, passar a Ponte de Carlos para a outra margem, regressar e perder imenso tempo procurando um bar onde beber umas canecas de cerveja.
Quando acordámos já a Carol tinha ido embora sem se despedir, nem mesmo do Rui. Então fomos almoçar goulash num restaurante onde a empregada ficou furiosa ao recusarmos o menu inglês, porque a Joana queria recordar o checo, o suficiente para a tipa e os checos em geral acharem que assim o turista vai é escolher os pratos mais baratos e poupar nas coroas. Enganaram-se e enganam-se redondamente, porque nós queríamos gastar algum dinheiro e porque a República Checa é um destino relativamente barato para um português, o que dispensa comentários para norte-americanos ou ingleses. Os empregados de mesa checos não gostam de quem não deixa gorjeta, o que até se percebe porque os salários deles são baixos e eu acho que em Portugal é que esse comportamento social não está assim tão enraizado — deixámos trocos. E por falar em salários baixos, ainda encontrarei quem confirme que aqueles acompanhamentos típicos dos pratos checos, umas fatias de massa de pão ou de batata, os knedliky, são uma herança histórica dos tempos de fome, em que o que importava era encher a barriguinha.
O resto do dia foi passado a caminhar pela baixa da cidade, pelo bairro judeu, pela Ponte de Carlos repleta de gente, pelo castelo e numa subida à pequena réplica da torre Eiffel, no cimo de um morro de onde se vê toda a cidade até ao horizonte. Eles subiram ao topo, eu fiquei-me pelo primeiro piso. Foi por essa altura que o Pedro e o Rui elegeram Praga como a cidade mais bonita onde tinham estado, o que se percebe. A cidade mistura a monumentalidade a cada esquina com a funcionalidade — da planície em que foi construída, propícia à caminhada, do bom sistema de transportes públicos, e de uma aparente vida própria alheia ao turismo — e tudo parece fluir. E estar de passagem durante poucos dias com alguém que lá viveu uma temporada foi uma vantagem. Só assim pudemos passar umas horas descontraídas no Bohemian Bagels, uma casa com óptimos bagels, um brownie de chocolate divinal e café expresso digno desse nome para os padrões da Europa de Leste, ao som de boa música embalando a conversa ou a escrita no meu caderninho castanho. Esta história, que agora se aproxima do final, começou sendo escrita num pequeno Moleskine de bolso com trinta e duas folhas pautadas cozidas com um fio de linho castanho claro a uma capa de cartão fino e mole da mesma cor, onde escrevi com a minha Lakubo preta de ponta zero-sete, a única que não borra o papel daquela marca.
Nessa noite jantámos num dos restaurantes mais concorridos de Praga, de que não recordamos o nome nem, muito sinceramente, o que comemos. O Rui partilhou comigo um vinho branco francês mediano e no final passou um quarto de hora cheirando o pouquíssimo Porto Tawny que lhe serviram num balão. O Pedro gostou do tabaco checo que comprou. E a Joana bebeu mais uma San Pellegrino, a melhor água gasocarbónica do planeta — não se encontrar San Pellegrino nos supermercados portugueses é uma heresia.
Na prática passámos só dois dias em Praga e o segundo teve ainda mais de ócio e repouso que o primeiro. Não para as pernas, porque continuámos andando muito, mas para o resto do corpo. Nestas vinte e quatro horas finais acho que pouco mais fizemos do que procurar uma tshirt de turista para o Pedro, jantar pizzas no Tesco, o supermercado onde a Joana tentou comprar as coisinhas todas a que tinha sido habituada e de que queria levar um pequeno carregamento para Lisboa, e convencer o dono de um sports bar a ceder a televisão mais pequenina que tinha, à entrada do bar, para o Benfica 1 – Copenhaga 0, no dia em que todos os bares do género estavam cheios com jogos dos dois clubes da cidade, o Sparta e o Slavia. O Pedro e o Rui são doentes por futebol. Sempre que usámos a internet ao longo da viagem a primeira paragem de qualquer um deles foi o site d’A Bola. Para além das mensagens diárias de amigos e pais com as mais frescas das lesões ou a novela “Fernando Santos sai, José António Camacho regressa”. Por isso não se estranhou o grito do Pedro quando o Benfica marcou. Mas bem que podiam ter mostrado alguma iniciativa na marcação de dormidas ou pesquisa de horários de comboios.
Depois do jogo passámos tempo no hostel até a sala de convívio fechar, à meia-noite, altura em que rumámos ao MacDonalds 24h para passar mais tempo até cerca das quatro da madrugada, quando partiria o comboio que nos levaria a Dresden, para finalmente terminarmos na Suíça. A discussão sobre as normas de vestuário em contextos institucionais, ou simplesmente sobre por que razão a Joana tinha sido impedida de entrar na igreja em Padova, ou por que raio é que eu acho que não se deve ir para a universidade em calção (de banho ou similar) e chinelo, azedou e deu direito a amuo do Rui, até Frankfurt.
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