segunda-feira, 22 de outubro de 2007



Well it's been a long time, long time now
Passava pouco das duas da manhã quando decidiste vir, afinal, e eu abri a porta para ficarmos num abraço demorado, sem palavras, tu soluçando e apertando-me com os braços a toda a volta do meu tronco, eu passando a mão no teu cabelo comprido e afagando as tuas costas por cima do casacão vermelho, mudo.

Trouxe água morna num pequeno alguidar de plástico azul escuro, e uma toalha. Descalcei-te as sabrinas brancas sem que reagisses e só te senti um breve arrepio quando passei a toalha humedecida no teu pé de menina, as unhas pintadas de vermelho, a tua pele morena de chocolate, para tentar aliviar-te a dor e um dia longo demais, duro demais, em que não andaste nas nuvens ou sobre algodão, como deverias, e como sempre parece de cada vez que te vejo ao longe a caminhar para mim ou naquela noite em que passei no eléctrico pachorrento ali à curva da geladaria e tu descias a rua num passo apressado, e o teu casacão vermelho.

Primeiro um, depois o outro, pela palma, do calcanhar aos dedos, pequeninos, do peito ao tornozelo, subi-te um pouco as calças com duas dobras e olhavas o vazio, imóvel, quando te beijei a pele muito levemente e disse, levantando-me com a toalha numa mão e o pequeno alguidar de plástico azul escuro na outra, “Deita-te na cama, descansa. Mesmo que não tires essa roupa, recosta-te e fecha os olhos”.

Deixei apenas a luz ténue do foco de leitura do candeeiro alto à cabeceira, sentei-me contigo e peguei no livro, naquela indiferença falseada que queria somente era que adormecesses. “Não sei se quero dormir”, disseste sem me olhar, com uma voz de garganta dorida por um dia longo demais, duro demais, mas recheado de poucas palavras. “Não faz mal. Chega-te perto de mim, logo se vê”, e encostaste a cabeça à minha anca e a tua mão na minha perna, as tuas ligeiramente arqueadas, as calças de ganga acinzentada da luz e os teus pés morenos com as unhas pintadas de vermelho no contraste com o edredão.

«A população queixa-se da dureza das condições de vida — verdadeiramente espartanas. Os traços de miséria são visíveis. A emigração da área agravou-se e, por toda a parte, vêem-se aldeias e terras abandonadas. Agentes de Belgrado percorrem, após o assalto croata, as aldeias de Plaski, tentando convencer a população a abandonar essa zona e a “colonizar” as áreas limpas de muçulmanos no Noroeste ou no Leste da Bósnia.», que foi quando te deixaste dormir, eu te cobri com um lençol fino e peguei no telefone para escrever ao Pieter, sentado no pufe castanho junto à parede do fundo da sala, do outro lado do corredor pequeno, a porta aberta olhando o quarto: “hoje não vou à agência, trabalho a partir de casa, liga-me de manhã”.

6 comentários:

Maria de Castro disse...

Muito bonito.

E o casaco encarnado e a pele morena de chocolate fazem-me lembrar velhas histórias.

Boa primeira semana de trabalho!

Anónimo disse...

Estás cada vez mais...
Estás a ler o "Da Jugoslávia à Jugoslávia" do Carlos Santos Pereira?
Abraço do Mano!

Anónimo disse...

Já tinha saudades de te ler assim...
Adorei johny

Cátia Simões disse...

Assim arrepia, colega [agora já te posso chamar colega :) ]

Dá vontade de ter dias exaustos para se ser recebido assim.

Rui Coelho disse...

És um senhor ()

Maria de Castro disse...

Ontem lembrei-me deste texto. Ouvi uma das músicas que o João Pedro Pais canta em dueto com a Mafalda Veiga, e pensei que já tinha lido aquilo nalgum lado.

Deixo-te a letra:

O dia mais longo (JPP)

«Hoje é o dia de todos os dias
Hoje é o dia mais longo das nossas vidas
Põe o teu corpo bem junto do meu
Uma voz escondida disse eu, sou eu!

Cuida de mim, traz-me aconchego, tenho frio
Quero sair, leva-me p’ra um lugar que nunca ninguém viu

Depois será tarde, p’ra sempre mais tarde
Ontem já não conta, já está esquecido
Pedes-me o céu, respiro o teu ar
Desejas meu beijo, faz-me voar

Depois já cansados parecemos ausentes
Dividimos sonhos seremos diferentes
Na cidade fantasma libertamos correntes
Podemos morrer de pé e de frente»

Isto cantado soa melhor. Passo por maluca de cada vez que a ouço no carro. E repara: eu nem sou grande apreciadora de JPP.