quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Basileia ao jantar, Chimarrão ao almoço – dias 19 e 20 – o fim
Para chegar a Basileia, de onde voaríamos para Lisboa, tínhamos de atravessar a Alemanha em três etapas que durariam onze horas, a primeira das quais de Praga até Dresden. Às quatro e dezassete da madrugada subimos a bordo e tentámos procurar um compartimento livre sem incomodar demasiado quem já estava em viagem e a dormir, abrindo as portas com cuidado e afastando as cortinas somente o suficiente para perceber se havia quatro lugares disponíveis. Foi aí que a cabeça de um fulano meio careca, usando sandálias com meias cinzentas e óculos de lentes e armação grossas, apareceu de repente por entre as portas que tínhamos fechado e acenou para que entrássemos, que foi o que fizemos.

Com as luzes do compartimento sempre apagadas, arrumámos as mochilas, preenchemos o bilhete e sentámo-nos para descansar os olhos. Eu fiquei à janela, no sentido da marcha do comboio; à minha frente o passageiro; ao lado dele com uma cadeira de intervalo ficou o Rui; ao meu lado a Joana e o Pedro. O fado repetiu-se e eu fui ouvindo música repisada no meu leitor de MP3 portátil manhoso e com pouco por onde escolher durante as primeiras duas horas, enquanto todos dormiam e eu ia trocando as pernas com ginástica, para não tocar e acordar o senhor. Com a primeira claridade do dia, o passageiro puxou d’O Livro e começou a ler, intercalando os parágrafos com olhadelas à Joana. Ninguém me diz que ele não estava a combater uma tentação... Depois rezou. Depois comeu. E depois nós saímos e ele continuou, sempre sem trocarmos uma palavra.

Em solo germânico, dividimo-nos novamente. Eles foram espreitar as imediações da estação de Dresden, eu e a Joana preferimos tomar o pequeno almoço sentados na estação e aproveitar para escrever mais um pouco. O comboio para Frankfurt sairia às nove menos cinco e reencontrámo-nos já na linha, perto do modernaço ICE 1640 que, perante o frio insistente durante toda a viagem, valeu ao Rui uma boa pergunta: “sir, why is it so cold?” e uma bonita resposta do comissário de bordo: “it’s not cold, it’s the air conditioning”. Mas a coisa pioraria pouco depois, com a chegada de uma nova equipa de comissários e o anúncio de que o comboio seguia com meia hora de atraso. Um comboio atrasado no país do rigor? No país do espaço Schengen que valeu uma análise minuciosa e com direito a lupa ao meu passaporte, que não é o novíssimo electrónico, por parte do pastor alemão na fronteira da Checa com a Germânia? Perguntei à senhora quais eram as alternativa para chegarmos a Basileia e percebi que teríamos de esperar uma hora em Frankfurt e ainda fazer um transbordo extra em Mannheim, o que nos arrastaria a chegada a casa da Ana lá para as cinco ou seis da tarde. A Ana é a minha irmã do meio, temos dez anos de diferença.

Em Frankfurt dirigi-me à bilheteira para confirmar o novo plano de viagem e pedir o reembolso dos trinta e oito euros que tinham custado as quatro reservas do comboio que acabáramos de perder — tudo é caro na Alemanha. Aparentemente, para receber o dinheiro de volta só teria de preencher um formulário, deixar que copiassem a reserva e fornecer o meu número de conta internacional. Mas passar-se-ão semanas em Lisboa sem que o dinheiro tenha regressado, e passar-se-á a fase em que a cada dois dias eu olhava a cópia do pedido de reembolso para confirmar que não tinha errado nenhum dígito no meu IBAN.

Até Mannheim foi um tirinho e daí a Basileia mais três ou quatro horas, que também passaram rápido. Ou então estávamos todos tão fartos — mas mesmo fartos — de comboios que a amnésia tomou conta dessas horas. Viajámos separados, porque o comboio estava quase cheio e não conseguimos lugar para todos na mesma carruagem. Mas nem por isso nos enganámos na saída, porque em Basileia há a estação alemã e a estação suíça e principal, e era esta que queríamos, a Basel SBB. Das duas vezes que estive na cidade aquela estação sempre me pareceu extremamente movimentada para a dimensão das instalações — era perto das seis da tarde —, mas curiosamente gostei, gosto, do ambiente. Porque tem um mini Coop, o supermercado que se encontra a cada esquina, porque tem lojas de chocolates, de electrodomésticos, de roupa, e vendedores ambulantes de queijo, asseados. Comprar queijo na Suíça é diferente de o fazer em qualquer outra parte do mundo — excepto Paris, talvez, mas nunca lá estive —, porque a oferta é imensa, há queijos de tudo e com tudo, e o cliente pode e deve provar antes de decidir levar, e se forem dois não há problema, dá-se a provar duas falhinhas do produto. Falhinha é o diminutivo de um termo algarvio para fatia. O Rui sabe do que falo.

Depois de trocar o que restava de dinheiro croata e checo por francos suíços, e não conseguir trocar os dinares sérvios, chegámos a casa da Ana, que fica a menos de dez minutos da estação, numa zona de moradias e prédios de apenas dois andares. Feitas as apresentações e tomados os banhos, jantámos frango assado, arroz branco, batatas fritas de pacote, salada de espinafres, um tinto alentejano de reserva e gelados Mövenpick, provavelmente os melhores do planeta. A minha irmã Ana foi como uma mãe e recebeu-nos muito bem. Em troca, falámos pouco ou nada, não tirámos nenhuma fotografia juntos, demos uns poucos abraços para esquecer a saudade de seis meses, e depois ainda a fomos levar a casa de uma amiga, onde dormiria aquela noite — até isso ela fez por nós: deixou-nos à vontade na sua casa.

Depois levei os rapazes a ver as correntes fortíssimas que o Reno tem ali, a espreitar as pontes, passar pela zona dos bares que estavam vazios ou fechados, e a andar um bom pedaço, porque no regresso a casa me enganei e meti por umas ruas que não eram as que eu queria. Mas chegámos. Bastante tarde, caímos todos no sono logo de imediato e quando às seis da matina os despertadores começaram a tocar, ninguém quis acreditar. Era cedo demais, ainda estava escuro, lá fora tinha acabado de chover e tínhamos que nos apressar para chegar ao aeroporto de Basileia, curiosamente em solo alemão.

Feito o check-in, tomámos o pequeno almoço nos bancos do aeroporto para gastar as últimas moedas. E tudo passou muito rápido. Quando demos por nós tínhamos embarcado; o Pedro estava ansioso pela sua estreia nos ares; o Rui comentava comigo a assistente de bordo morena de olhos azuis; o Pedro debruçava-se sobre o assento para me ver, na fila da direita, e perguntar se aqueles barulhos eram normais; eu debruçava-me em resposta e acenava que sim; vimos a Costa da Caparica e o Cristo Rei; aterrámos e houve quem batesse palmas; esperámos uma boa meia hora pelas malas; deixámos a Joana com a família, que a tinha ido buscar, no dia de aniversário do pai; e eu, o Pedro e o Rui fomos para o único sítio onde poderíamos ir, o Chimarrão, onde entrámos ainda antes do meio-dia. Depois de nos fazermos de coitadinhos e esfomeados, que vimos de tão longe com a mochila às costas, de provar cerveja a sério pela primeira vez em vinte dias e nove países, e de eu esquecer a carta que prometera escrever ao Inter-Rail, reclamando por não explicarem com seriedade que não são “só alguns” comboios que combram taxas extra, mas a maioria, separámo-nos no metro. Eles foram para os expressos em Sete Rios, eu segui para o Cais do Sodré. Atravessar o rio num ferry ao sol de mais de trinta graus, a ouvir o barulho do casco a cortar o Tejo, foi quanto bastou: estava, estávamos todos, em casa.

5 comentários:

Anónimo disse...

E é da super bock que me lembro, após aterrarmos.
Dresden é muito limpinho, a tua memória é assustadora e o Thom Yorke faz anos amanhã.

p.s - O comboio alemão ñ se chamava ice!?

Filipe Pedro disse...

Gostei muito dos teus postais. Um abraço.

John Abreu disse...

That's it!

Pois bem, inter-rail done. Como não tive férias, foram várias as vezes que me lembrei de vocês ao longo dessa jornada.. a morrer de inveja.. perante o teu post malcriado e o postal de belgradinski (já agora, merci! e assim faremos por viajar para aqueles lados).

Gostei imenso da tua escrita, do teu relato. Do quão completo poderá estar e do quão invejoso fico da memória de elefante que a Joana tem (se bem que tu também dás uns toques).

Essa da primeira viagem de avião do pedrinho é que eu já não me lembrava. Tenho de lhe perguntar como foi ;) A minha primeira foi bem interessante: Lisboa-Tunes pela Tunisair há uns anos valentes. Nada que uma assistente de bordo tunisina linda não resolvesse =P

Acho isto tão, mas tão, importante para a nossa vida quanto tirar uma licenciatura ou ir à casa-de-banho porque precisamos. É fundamental, como te tinha chateado antes.. e agora que já passou, afinal não é nada de mais =P É lindo porque nos abstraímos da normalidade das nossas vidas para estar na normalidade de uma saborosa viagem.

Bah.. quero férias! Abraço () e obrigado pelo relato ;)

PS: Finalizo com um «qdnezry» .. nada como um word verification para nos mostrar o que realmente andamos a perder na linguística mundial de aplicação abstracta ;)

JPC disse...

Uma viagem destas, mesmo que pequena como a minha (apenas 20 dias) é importante, sem dúvida. Imagino o que será fazê-lo por um mês e meio, como o rapaz que conhecemos em Hvar; durante quatro meses, como o setas australiano e o amigo; ou há já nove meses, como o pai e a família australianos.

A mim deixou-me a vontade de sair mais vezes, agora que posso sustentar as aventuras. E deu-me áreas geográficas a que quero, num primeiro momento, voltar. Os Balcãs são a primeira dessas áreas, porque muito do futuro da Europa se joga ali (não confundir com "se decide ali", porque não é esse o caso).

Posteriormente terei as grandes capitais. Logo calendarizo isso.

A escrita desta história serviu-me para recordar, para decalcar na memória episódios. E também para treinar a escrita e perceber que é preciso muito fôlego para construir uma história completa, porquanto se percebe - e eu sinto-o tanto - que na recta final, nos últimos episódios, fiquei sem força na caneta.

Obrigado por teres lido, sei que esperaste pela "obra completa".

Abraço

John Abreu disse...

Nice to read all the comments to my comments ;)

Abrrace (nuusr)