Segunda parte
Budapeste e Belgrado, dois para cada lado – dias 14 e 15
O ar da cidade junto à estação era quase irrespirável, por causa do calor húmido e da poluição. Ainda circulam muitos Yugo em Belgrado e boa parte dos táxi são estes pequenos automóveis com motores a dois tempos, pelo menos os mais antigos, como as motoretas Casal Boss, que fazem muito fumo com um cheiro característico, incómodo. Há uns autocarros a gasóleo e outros eléctricos, os troleicarro, e não fossem esses e os eléctricos sobre carris e eu não sei como seria o ar.
Ao subir uma das principais avenidas em frente à estação, a Nemanjina, com duas faixas para cada sentido, carris ao meio, passeios largos em cimento e edifícios altos, vimos os últimos vestígios dos bombardeamentos da NATO em 1999. De ambos os lados da avenida jazem os imponentes prédios da polícia federal e do exército jugoslavo, revestidos a tijoleira, esburacados pelos mísseis disparados nas noites de 29 e 30 de Abril, o ataque mais severo dos setenta e oito dias de ofensiva. Eu sorri e disse “foi por isto que vim cá”, a Joana foi apanhada de surpresa.
Depois de encontrar o hostel, de receber uns quinze minutos de sugestões de visita pela rapariga recepcionista, e de tomar um duche, saímos para comer qualquer coisa. Era sábado e andámos muito tempo perdidos à procura de uma casa de pizzas e sanduíches famosa em Belgrado, a Toma. Esfomeados demais, cedemos perante o MacDonalds — e a Toma ali a cinquenta metros, como descobriríamos depois — e foi aí que a Inga veio ao nosso encontro.
A Inga era amiga da Joana desde que partilharam a mesma residência de estudantes em Praga, e trocaria Belgrado por Budapeste na segunda-feira seguinte, após um semestre trabalhando numa organização não-governamental. Norueguesa de cabelo preto curto e olhos claros, baixinha, muito faladora, para além de muito interessante e mais rápida a caminhar, em cinco horas a Inga mostrou-nos o centro da cidade, por onde se movem as pessoas, os principais eixos, as zonas de recreio e as residenciais. Foi essencial para perceber rapidamente por onde andar, o que observar e como olhar para a cidade no dia seguinte.
De volta ao hostel, depois de um jantar barato numa esplanada à luz de uma vela, em que falámos das razões para os atritos e maus-humores da viagem até então, já estava de serviço o patrão do albergue, o Chillton Hostel, que logo me ofereceu a welcome drink, um brandy de ameixa típico da Sérvia, o sljivovica, bebida tradicionalmente tomada pelas comunidades judias da Europa de Leste. Com a slivovits na mão — é como se pronuncia — fomos para a sala de convívio, onde estava mais gente e um gajo de camisola de manga-cava preta que falava inglês muito depressa e me perguntou se ia sair ou ter uma “quiet one”. Enquanto a Joana chegava e tomávamos lugar junto ao computador, expliquei-lhe que não dormia havia mais de quarenta e oito horas e que só pensava em estender-me ao comprido. Pouco tempo depois, e quando eu já tinha topado a coisa, ele fez a derradeira pergunta de despiste: “so, are you uni-buddies?” Sim, pá, eu e a Joana somos amigos. E então eu deixei de existir e o australiano achinesado, ou Kevin, tornou-se setas. A mini-saia da Joana ajudou e ele bem que a cortejou e insistiu para que ela fosse sair com o grupo: “I wanna talk to you more, I wanna talk to you more”, implorando e segurando-lhe as mãos. De rir, que foi o que ela fez e continuou fazendo, deitada, com o ego devidamente massajado.
O único problema do hostel era a dimensão dos quartos, diminuta, para a quantidade de camas, seis. Connosco estavam uma francesa que ressonava, uma australiana badalhoca a atirar para o gordo e que tinha espalhados pelo chão junto ao beliche sutiãs amarrotados e a escova e pasta de dentes, um personagem que não recordo e um rasta nauseabundo, cujo fedor atravessava a porta e chegava à recepção, em frente, onde estávamos depois de ele se despir para dormir a sesta. Só conseguimos dormir ali à noite porque havia ar-condicionado para aliviar o ar de seis pessoas respirando e porque o porco já lá não estava.
No dia seguinte pela manhã saímos cedo e depois de um pequeno-almoço enorme que meteu mostarda, ketchup e batatas assadas, iogurte natural espesso servido numa caneca de vidro meio porca que não devolvi porque o iogurte regressaria o mesmo, com a probabilidade acrescida de trazer brinde, e porque assumi que seria tradicional e que na Sérvia eu teria de ser sérvio; e de uma paragem de duas horas numa esplanada à sombra para fintar o calor insuportável e avançar na escrita, passeámos até à noite, noite dentro, porque o próximo comboio seria, outra vez, nocturno.
Belgrado tem poucos turistas, porque tem pouco que ver, turisticamente falando e em comparação com a vizinha Budapeste, por exemplo. O principal e quase único monumento da cidade é a Catedral de Sava, a maior igreja cristã ortodoxa do mundo, em permanente construção por donativo desde a década de trinta. Até os postais da cidade são amadores, e isto não sou eu falando, porque o salta à vista na fraca qualidade das fotografias, da impressão e da apresentação do produto: é evidente que não se sabe como e que imagem da cidade e do país vender ao exterior, pois isso do turismo é ainda muito recente.
O que eu retive da cidade foi o ambiente de tensão e alguma euforia que se fazia sentir. É quase um milhão e meio de pessoas e enormes assimetrias. Em contraste com os transportes públicos velhos e degradados e os Yugo igualmente antigos e ruidosos, há carros recentes, pois claro, e topos-de-gama germânicos atravessando as avenidas principais a grande velocidade, de janela aberta e música alta, assim como motas de grande cilindrada que rasgam os semáforos sem capacete. No parque da cidade, o Kalemegdan, que é o que resta da antiga Belgrado amuralhada, junto ao cotovelo onde se encontram os rios e de onde se vê a última das quatro torres de marcação do império austro-húngaro, e local de intenso convívio aos domingos, os polícias advertem com tiques de autoritarismo quem pisa o relvado e desrespeita as placas — já na estação tinha visto um homem ser autuado por quatro agentes, que parecem soldados, não percebi porquê.
O nacionalismo sérvio sente-se nas bandeiras hasteadas em todos os edifícios do Estado, e nas pessoas. Coexiste com um desejo de ocidentalização, eventualmente de adesão àquela Europa da União, certamente pelo sérvio comum, embora o governo do país não se diga disposto a isso em troca de jogos diplomáticos e passe uma imagem de “orgulhosamente sós”. Um desejo de ocidentalização de liberdade individual, esquecendo o jugo do comunismo. E não pode deixar de causar estranheza que tudo isto exista a par da mais recente e sucessiva redução do território, com a independência do Montenegro há um ano — cuja capital se chamou no passado Titograd, algo revelador —, e agora com a questão do Kosovo, sendo que neste assunto governo e povo parecem estar alinhados: o Kosovo é território sérvio, mesmo com uma população maioritariamente albanesa, e um sérvio que abandone o Kosovo não é patriota, como perceberei na viagem para Praga. Mas, para além de tudo isto, caramba, o território vai diminuindo e os sérvios continuam chamando-lhe “a grande Sérvia”.
O regime de Milosevic, que isolou a Sérvia durante uma década, e cujas acções militares com vista à manutenção do Kosovo provocaram a intervenção da NATO em 1999, ainda vive na saudade de alguns e em tiques de propaganda, que lhe eram típicos, e que hoje fazem com que se vendam postais com imagens das noites de bombardeamentos. Qualquer vendedor de postais, mesmo num inglês rudimentar, explicará que a Sérvia foi “agredida pela NATO” — e foi, não se duvide.
A moeda, o dinar sérvio, vale tão pouco que mesmo num país vizinho como a Hungria as casas de câmbios não a negoceiam — e eu, que troquei dinheiro a mais à chegada, e porque a saída foi de noite, haverei de regressar a Lisboa com mais de dois mil e seiscentos dinares sérvios, cerca de trinta e cinco euros, não sem contudo tentar trocá-los em cada um dos balcões de câmbios com que me cruzarei, inclusivamente já em Portugal, mas sempre sem sucesso.
Por tudo isto, Belgrado pulsa imensa vida — e os bares junto ao rio prolongam-na até o sol nascer. Senti-me bem em Belgrado, viveria uma temporada ali. Por essas razões este relato até parece de alguém que viajou sozinho — a Joana esteve sempre comigo —, mas é incontornável que me marcou e que parti com um enorme desejo de voltar, para sentir mais, melhor e para perceber.
Noite dentro e um bocado à pressa, depois comprar comida e água para a longa jornada que nos levaria de Belgrado a Praga, por Budapeste, fomos ao hostel recolher as mochilas, receber a notícia de que o Pavel não poderia, afinal, acolher nenhum dos quatro em Praga dali a menos de vinte e quatro horas, e apanhar o finlandês solitário que viajava há semanas com uma mochila ridiculamente pequena, e que nos acompanharia até à Hungria.
O comboio pareceu-nos bem, embora o bulício denunciasse que ia cheio. A Joana e eu tínhamos comprado duas camas num compartimento que a mulher da bilheteira nos tinha dito de duas, mas que era de seis. Nas nossas camas, as de baixo, estava sentado um casal kosovar idoso, e haveria de chegar ainda uma rapariga sérvia dos seus vinte e poucos anos e com uma mala de viagem de cor-de-laranja gigante, de cabelo loiro, gira, e na opinião da Joana com uns pés bonitos. Demoraremos a explicar aos senhores quais as camas de cada um, até que eu oferecerei a minha à mulher, que lhe dava mais jeito. Demorará até que fechemos os olhos. Não demorará a que a polícia sérvia chegue para o controlo de passaportes e assedie e intimide o casal, exigindo ver o que traziam vestido, saber para onde iam e porque iam, assentando num pequeno bloco de folhas quadriculadas os nomes, números de passaporte, de compartimento e de cama de cada um deles, que por serem sérvios do Kosovo têm dois passaportes, um interno e o internacional, e que não são bem vistos por saírem do território. Demorará a que eles caiam no sono e parem de tossir. Não demorará a que a Joana se queixe do calor. Demorará a aceitar trocar de cama comigo, passando para a do meio, o que não melhorou nada. Demorará uma eternidade, para mim, que só caí no sono perto das seis da manhã e quando o pica nos veio acordar, batendo vigorosamente à porta, que estava trancada, dizendo que nós que sairíamos em Budapeste chegaríamos dali a vinte minutos. Já?
Para perceberem parte do meu fascínio por aquela zona da Europa, ouçam a reportagem de André Cunha para a TSF, “Kosovo, à procura do beijo impossível”. André Cunha é jornalista português, radicado em Belgrado.
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2 comentários:
Hmm.. Belgradinski. Posso avançar o cenas de que no próximo verão, devo ter verão. Por isso o cenas pode ser sempre no próximo verão. Um cenas tipo veraneado lá por aquelas zonas.. mas isso precisa de certas confirmações de outro cenas. =P
Nice to read this one ;)
PS: Desta vez, o word verification levou-me às florestas maravilhosas da Ucrânia: «sznxuk»
Assim que eu tiver a confirmação do meu cenas, marcamos a cena.
Já sei que se chega lá via Estugarda e que fica a uns 70eur... Portantos... Bálábêre!
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