terça-feira, 25 de setembro de 2007

Primeira parte
Budapeste e Belgrado, dois para cada lado – dias 14 e 15
Não seguir para Zagreb no comboio rápido das três e tal da tarde foi um golpe para todos, porque significava gastar desnecessariamente uma manhã inteira em viagem e percorrer o mesmo percurso de há quatro dias em nove horas, e não cinco. Para mais, naquela tarde em Split vivia-se uma bela “tosta, moço!... Tu és tolo?” Éramos todos, menos o Ricardo e o amigo cabo-verdiano que conhecemos enquanto aguardávamos pelo catamarã de regresso. Eles estavam em viagem há um mês e meio, tinham visitado Sarajevo — para meu desgosto —, possuíam um guia da Europa de Leste pela Lonely Planet, o mesmo que eu não quis comprar para não ser apelidado de “senhor organizado” pelos meus compinchas, mas que será a minha primeira leitura de cabeceira na casa nova de Lisboa, vinte e um dias mais tarde, e conseguiram ficar com os dois únicos lugares disponíveis no comboio. Nós gastámos umas horas a decidir a etapa seguinte e depois fomos mergulhar na praia mais suja em que alguma vez teríamos estado, a começar na areia acastanhada, que não agradou, e a acabar na água esverdeada com limos, preservativos e outras porcarias, mas onde se vivia um ambiente muito animado.

Naquela praia em Split tinha de andar-se muito até que a água chegasse à cintura, e também quase não havia ondulação. O pessoal jogava um jogo engraçado, que consistia em bater com as mãos uma pequena bola, passando-a entre eles, como se fossem raquetes mas sem raquetes e com mais do que dois jogadores, em ordem aleatória para apanhar os distraídos, sendo que a parte principal do jogo eram os mergulhos de chapão que alguns tinham que dar para conseguir bater aquelas bolas mais difíceis. O objectivo parecia, aliás, ser mesmo esse, de proporcionar ao parceiro um belo mergulho. Era muito giro, principalmente porque quem mais jogava eram os seniores de cabelo grisalho. O que nós nos divertimos a observar e a tentar fotografar vários momentos de voo, com a máquina do Rui, que não terá ainda partilhado as imagens com os restantes, volvido quase um mês sobre o regresso.

Finalmente a caminho de Zagreb, connosco no compartimento do comboio viajava uma freira. A surpresa foi grande e acho que bem visível nas nossas caras quando confirmámos duas vezes o número do compartimento e da reserva. Na tentativa de agir com naturalidade, jogámos umas “suecadas” com o nosso baralho amarelo do atum Bom Petisco, mas não tardou até que ela tentasse comunicar connosco, em croata. Primeiro, sobre o tempo e o calor que se fazia sentir no comboio, novamente com ar-condicionado avariado, comparando o seu hábito cinzento e comprido aos calções verdes curtos da Joana, como quem diz “se achas que tu tens calor”... Depois, entre mais gestos, Fátima Fátima, Portugal Portugal, muitos equívocos, e mais um daqueles silêncios constrangedores de vinte segundos em que todos contávamos quantos lanços de carris o comboio pisava, a irmã quis ver que tipo de fio a Joana trazia ao pescoço. Espantada com a joaninha vermelha e preta de metal, e apesar da explicação da relação entre o nome do bicho e o da miúda, a irmã não perdoou e enquanto brandia o seu crucifixo atirou umas “croatadas”, que o Rui imediatamente traduziu para “eu acho que ela está a dizer que tu não és cristã porque não trazes Cristo ao pescoço”. Para prová-la errada, a Joana puxou da carteira uma imagem de Jesus que a acompanha, mas a irmã acenou que não, não era suficiente. E ficaram por ali.

Foi nessa altura que fui ver como eram as outras carruagens e procurar um bar ou coisa que o substituísse. A caminho da frente da composição arrependi-me de o ter feito logo que passei a primeira porta, tal era o cheiro repugnante a mijo, que quase me fez estacar. Engoli em seco e passei rapidamente pela casa de banho, na esperança de que melhorasse, mas não. Chegado ao corredor estreito, uns dez pares de olhos viraram-se repentinamente para mim, que fui pedindo passagem entre os que estavam sentados em cima das malas e aqueles que fumavam meio debruçados nas janelas abertas. Havia no ar uma mistura densa de cigarros, chão das casas de banho e fumo de gasóleo queimado, da locomotiva, que entrava em lufadas a cada curva para a direita. Por causa do barulho crescente da máquina, falava-se muito alto, tossia-se muito alto e bebia-se vinho directamente de garrafas verdes, sobretudo alguns dos velhos. Foi assim na primeira e nas seguintes, salvo naquela em que seguia o pica, que tinha muitos compartimentos fechados e os cortinados verdes empoeirados corridos. Mas o cheiro, caramba, era uma constante em todas as cinco carruagens — depois de repetir a viagem cheguei à conclusão de que nós tínhamos sido bafejados pela sorte: a nossa era um pequeno oásis de boa vizinhança e asseio, mesmo apesar de sistematicamente as luzes se apagarem e o chefe de composição vir, impotente, religar o disjuntor, por mais quinze minutos. Com tudo isso eles haverão de se arrumar nas cadeiras e dormir, e eu de viajar toda a noite em pé e à janela, já que não dormia, a ver as tábuas dos carris passar devagar, as estrelas ponteando o céu, os montes e o cheiro a campo — desde que o comboio curvasse para a esquerda — e apanhar com vento fresco na cara. O comboio seguia muito lento, numa linha única com muitas curvas e em subida, puxando em esforço mais de dezena e meia de carruagens, de passageiros e carga, mas tão lento que eu aposto que, a pé, conseguia correr ao lado dele.

Mas, regressado, deparo-me com a irmã a sugerir em gestos que a Joana a acompanhasse até ao compartimento do lado, onde viajava uma rapariga sozinha, para assim dormirem as três e os rapazes ficarem igualmente sozinhos e com mais espaço para esticar as pernas. Lá lhe explicámos que não iríamos dormir já, que ainda era cedo e tínhamos mais umas “suecadas” para a desforra, quando na verdade receávamos que a irmã quisesse exorcizar a Joana, e uns dez minutos depois ela abandonou-nos, não sem deixar instalada a dúvida sobre se teríamos sido bem interpretados ou a teríamos expulsado. Viveu-se um misto de vergonha e incredulidade até a irmã regressar, não sei bem quanto tempo depois, trazendo nas mãos um tupperware com uvas pretas. Inicialmente julgámos que vinha pedir água da garrafa de litro e meio que estava na mesinha junto à janela, para as lavar. Depois a Joana achou que ela nos estava oferecendo uvas e então tirou uma, provou, sorriu e agradeceu em inglês, e o Rui imitou-a. Aí a irmã deu-nos a caixa e então não soubemos se, desde início, nos estava oferecendo as uvas, ou se agora que as tínhamos comido ela já não as queria. Que confusão! Mas eram doces. A caixa é que haveria de ficar esquecida no compartimento e nós haveríamos de sair à pressa em Zagreb sem ver a irmã, que sempre tinha ficado a descansar no compartimento ao lado, ou sequer agradecer, porque o comboio estava chegando com quarenta minutos de atraso e eu e a Joana haveríamos de correr para apanhar a ligação para Belgrado, para nossa sorte também atrasada um quarto de hora à partida. Foi por pouco e ao Rui e ao Pedro foi mesmo “tchau aí, vemo-nos em Praga”. O Rui e o Pedro seguiriam para Budapeste, pelo que dessa cidade não reza esta história, porque lá não estive a não ser durante cinco horas, na estação e no MacDonalds em frente, às oito da manhã, quando rumar a Praga, dois dias mais tarde.

A caminho da Sérvia com o sol a levantar-se, eu estava exausto e a Joana parecida. Acho que dormimos e por isso nos recordamos de pouco da viagem. Mas, sem dúvida, lembramos a visão impressionante que tivemos ao atravessar Nova Belgrado, na margem Sul do Danúbio e Este do Sava, uma planície imensa de prédios altos quase padronizados, num horizonte plano de que se destacavam torres ainda mais altas, quarteirões em quadrícula, um dormitório autêntico e gigante, e os letreiros coloridos das fábricas e escritórios da nova indústria ocidental. Em Belgrado encontram-se dois rios, o Danúbio e o Sava, e é nas margens deste, quando se passa a velha ponte ferroviária de aço esverdeado e ferrugento, a dez ou vinte quilómetros por hora, que nos apercebemos dos acampamentos ciganos romenos que ali vivem, e que àquela hora, quase duas da tarde, com cerca de trinta e oito graus à sombra, os miúdos tomavam banho na água suja. O resto do percurso até à estação foi também muito lento e os estaleiros devolutos, as carruagens ferrugentas abandonadas e as barracas ao longo da linha fizeram-nos despertar definitivamente, apreensivos. Não sei o que sentia a Joana, mas eu estava tenso e ao mesmo tempo satisfeito por estar a ver o que via, porque desde o dia em que tinha ponderado juntar-me aos três que eu planeava chegar ao leste da Europa, mesmo aos Balcãs, e respirar um pouco do berço do Velho Continente, da última guerra na Europa, tão recente, embora sabendo naquela manhã que Sarajevo, Mostar e Pristina não poderiam ser, então, incluídas nos planos. Porque a montante decidimos ficar mais tempo em Ljubljana e Hvar, e já tínhamos comprado o voo de regresso para Lisboa a partir de Basileia, pelo que a última semana de viagem estaria programada com datas para cumprir.

Na estação o primeiro impacto foi com o alfabeto cirílico, que tornava a sinalização imperceptível aos nossos olhos. Cirílico é isto: АБВГ¢ДЂ ЃЕЁЄ Ж ЅЗИ І Ї Й Ј К Л Љ М Н Њ О П РСТ Ћ Ќ У Ў Ф Х Ц Ч Џ Ш Щ Ъ Ы Ь Э Ю Я. Portanto, imaginem porque demorou cinco minutos até encontrar a bilheteira ou a saída. Ou horas a orientar-nos nas ruas de Belgrado, quando, apesar de o alfabeto latino ser usado em simultâneo em várias ocasiões — embora “à checa”, com aqueles acentos nas consoantes —, as poucas placas de toponímia estavam em cirílico e o nosso mapa em inglês.

3 comentários:

Maria de Castro disse...

Tenho seguido as tuas crónicas de viagem prolongada. E digo-te: já estou viciada na novela. Venham os próximos episódios!

P.S.: A ver se me convidar para a benção da tua nova casa. Talvez, (só talvez!) tenha uma televisão velhinha para te dar/emprestar/vender.

John Abreu disse...

Siga, siga, quero Belgrado! =P

Nice chapter this one. Contudo, há que rematar essa da freira. Se já viste filmes do Louis de Funès, sabes bem que por detrás dessa farda religiosa está uma mulher aliii.. hein? Uma mulher aliiiiii.. se beeemm! ehehehe

PS: Qual Wiclef Jean.. o word verification pede-me «wrcfft». Será cirílico.. ou é como se diz microsoft em sérvio.. ou será que já estou a ficar demente com esta empresa..?

JPC disse...

Man, tu estás a fritar... :)