Esta mistura não está bem feita
Jim Jarmush filmou conversas que se têm em volta de café e cigarros. Gosto de café. Não devia gostar de cigarros. Gosto de cinema. Não gostei, especialmente, do filme – faltaram Samuel L. Jackson e John Travolta, discutindo carne de porco na alimentação diária.
Gosto do audio e do visual. E do audiovisual em movimento. Tenho o cinema e o cinema documental – este que, por acaso, passou em Lisboa e eu não vi – como iogurtes de pedaços para o crescimento, o interior. Intelectual ou cultural; individual sim. Ou não pertencesse a uma das gerações do computador. Há delas que são “do livro”, porque era aquele o meio privilegiado de informação. Outras, onde me incluo, são “do computador”, que é o primeiro livro a ser folheado.
Mas também sou das pessoas. Há tempo que tive consciência de um processo de reconhecimento do indivíduo que sou. Dos gostos, das preferências, dos hábitos, isto sem me conhecer bem. Gosto de escolher os filmes que vejo, por exemplo, e de assumir as consequências. Gosto de ter consciência disso. Com as pessoas é diferente, porque não as escolho. Ninguém nos escolhe.
O que me escreveste fez com que desligasse o telefone – fecho essa janela para o meu pequeno mundo, num gesto simbólico de falsa reclusão e que tanto mais significa que o que verdadeiramente quis que significasse no momento em que carreguei no botão e pousei o pequeno objecto em cima da mesa, não lhe tocando mais, como se fosse uma daquelas cartas que trazem más notícias. Só volto a abrir quando o despertador tocar. Porque o que disseste é verdade e sei que te magoei. E isso é um sufoco.
Gosto de pessoas. Invariavelmente me cruzo com alguém que me influencia bastante. Que altera o rumo da minha vida. Ou que contribui para que me detenha um pouco mais olhando a esquerda e a direita, antes de seguir, e escolher. Sem qualquer ordem específica posso recordar-me de algumas letras e efeitos mas há umas poucas que ficarão para sempre gravadas na minha memória.
Uma, fomos a Braga. Apesar da Primavera estava frio e foi a segunda vez que fui acima do Douro, mas acaba sendo a primeira porque a outra não conta porque é só desta que me lembro. O que ali nasceu não mais se quebrou. Outra, foi bem aqui, em Lisboa. E foi quando descobri o coelho da Alice, que corria na estação do metro. Foi também a primeira vez que olhei para dentro de mim.
Estas pessoas que nos ficam, ficam-nos porque trazem sempre uma primeira vez. O princípio fotográfico é mágico por essa mesma razão: só existe uma vez, a primeira.
E pela primeira vez li Almada Negreiros e li de Almada Negreiros uma fotografia genial que escreveu. Como quando a tiramos e depois nos detemos a olhar e a ver. É assim:
«Tinha um pescoço horrível, sem ligação da nuca com as costas. Uma cova em triângulo entre as homoplatas e a falha do pescoço. E aqui a cor era ordinária. Porém, a nuca perfeita de redondeza, nem saliente, nem retraída. O tronco era uma verdadeira maravilha. Era todo o segredo da sua formosura. Os seios hediondos, partidos, duas excrescências inutilizadas. O busto curto mas sólido. Os ombros grandes e largos, levemente subidos. Os braços apertavam desde o ombro até ao pulso por uma forma ridícula e sem distância. As ancas cerradas, entre menina e mulher. A linha dos ombros mais larga do que a das ancas, conforme a robustez do tronco. O ventre, bem posto, era contudo mais admirável do que formoso, mais escultural do que atraente. O umbigo, o sexo, as virilhas, era tudo infantil, inocente. As coxas é que rompiam audaciosas. A cor das coxas era clara e a do ventre incomparavelmente menos clara. Via-se que era filha de uma pessoa muito branca e de outra bastante morena. Mas a mistura não estava bem feita: a sua pele ia desde o mármore rosa-pálido até ao tijolo sujo. As costas, genialmente bem divididas por um único vinco, firme, vertical, helénico, separando duas metades simétricas, amplas, até aos rins longos. Umas nádegas de rapaz. As pernas, se tinham algum atractivo, não pertenciam contudo à maravilha daquele tronco, esse acaso feliz da natureza. As barrigas das pernas, grosseiras, saltimbancanescas. Os joelhos estropiados. Os pés horríveis, o pior de tudo juntamente com as mãos. Estas davam a impressão de não fecharem, desajeitadas, incompletas, mal terminadas, falhas de paciência. Os dedos não se punham direitos. As unhas roídas até para lá do meio. Enfim, as extremidades péssimas. Dir-se-ia que a desordem da sua vida ia dar cabo daquela obra-prima da natureza e começara já a sua destruição pelas extremidades.
A cabeça também era incompleta, mas tinha qualquer beleza que se ligava com o tronco. A testa pequeníssima ao alto e ao largo. Bons cabelos lisos, mal começados na frente, com remoinhos. As orelhas pobres, minúsculas e engraçadas. Uma boca ingénua, sem a sua maldade, e um jeito pândego ao canto da direita. Autentica boca de rua. Bons dentes, curtos, já separados, e as gengivas gastas. Os olhos míopes não davam o encanto que prometiam. O nariz pequeno e perfeito. O perfil desde o fim da testa, com a boca fechada, até ao busto, era formidável de inteireza e de carácter meridional, peninsular, português. Bastante viril e sem por isso ser masculino. (…)
A diferença entre o perfil e a frente era esmagadora. Ela tinha escarrada num focinho animal a triste vida que levava. A fisionomia era canalha e grosseira, e o seu perfil nobre e puro, não cabia ali.»
A miuda do filme da Sofia Coppola era bonita. Branquinha, mas bonita. Não percebi, contudo, qual o fetiche da roupinha colegial. Assim como certamente não vou perceber, amanhã, o Fernando Luís a dizer «a gaja é minha filha», pá.
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