quarta-feira, 26 de novembro de 2003

Chegou pedindo desculpa e “posso-me sentar?”. Em cima da mesa, um café, um copo com água, o telefone, um maço de Português Suave e um isqueiro. De uma capa retirou umas folhas de papel, que lê.

Mexe o café com um ar preocupado – acho que este meu escrevinhar a incomoda, especialmente porque comecei assim que se sentou. Acendeu o primeiro cigarro.

Virou a primeira página, lê a segunda, sublinhada a rosa fluorescente. Passa o polegar pelos lábios, toma um pouco do café, olha um transeunte, vira outra página.

Expele o fumo sem tirar os olhos do papel, sacode a cinza, mira o relógio (12h51), bebe mais um pouco, apaga o cigarro. Levanta-se. Parecerei demasiado psicopata, demente, louco, tarado, anormal?

No regresso traz consigo um saco, de onde tira um bloco de folhas e uma caneta. Também vai começar a escrever. Será para estudar ou começamos aqui um duelo sangrento, cruel e atroz, para ver quem descreve melhor e mais rápido esta situação? Matar-me-á com palavras? Poderá ela, com aquela ‘Bic’ preta de ponta fina, desferir um golpe que me seja mortal? Precavejo-me com a minha ‘roller-sem-marca-publicidade-à-Porto-Editora’ azul.

Deixo-me de devaneios – está a estudar.

Ao redor vagueiam homens engravatados e mulheres tidas finas, que pedem cafés no quiosque aqui por detrás. Riem-se. De quê? Perceberão o que se passa aqui? Perceberão que os vigio, mesmo sem os olhar? Perceberão que espio a rapariga à minha frente? Perceberão o seu papel secundário nesta desordem? Foram-se.

Neste mesmo espaço coexistem uma série de realidades. Não apenas a evidente, visível, espacial, temporal, mas uma por cada corpo que aqui passa. Eu espio. Ela estuda. O brasileiro tira cafés. A rapariga da loja vazia dança. A velha olha-me com censura. Duas mulheres comentam mais uma compra. Um tipo analisa os incensos. O segurança passeia-se. Estão, estamos, todos aqui, mas cada um vive cada segundo na sua certeza individual, reclusa, distinta. Quantos se aperceberão desta minha intrusão? Poucos. Ninguém.

Cinco metros à minha direita leio, “Ponto de Encontro – Livraria Técnica”. E eu que vim aqui fazer não sei o quê.

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