Uma lamentável cena de pugilato
Em Guimarães, onde não se come peixe. O robalo tinha para aí uns dois quilos, era do mar, grande, e demorou a assar. Não é qualquer pessoa que assa bem um peixe daquele tamanho, por isso há que ser um homem da faina. O empregado disse logo “esse mais pequeno é de viveiro, como a dourada”. Eu não percebo, respeitando, a opção pela dourada. Nem quando é ‘ao sal’. Foi alimentada a farinhas, viveu sem desfrutar da paisagem do fundo dos mares e andou a curta vida toda à cabeçada com as outras douradas. E raramente sabe a alguma coisa. Mas que é um belo negócio, deve ser. Aquele robalo também foi, para o restaurante, mas o dinheiro foi muito bem empregue. Chegou-nos aberto ao meio, escalado, amarelo por dentro e do outro lado com a pele quase seca e estaladiça mas não estorricada, gigante, a cabeça e o rabo de fora da travessa. Sem azeite ou limão, apenas com o sal que levou na grelha, soube genuinamente a peixe, a um peixe que não é gordo, que é branco e suculento. Que é o mesmo que dizer: ‘soube’, por oposição a ‘não ter gosto’. O bom robalo acompanha-se só com vinho branco, que as batatas, os legumes ou a salada podem bem esperar e seguir depois, à laia de entretenha até que os outros acabem, e o Prova Régia foi uma bela descoberta, ali de Bucelas, monocasta arinto, fresco, frutado, embora um pedacinho ácido, com apontamentos pouco habituais de maracujá e suor humano, e isto já escreve o crítico Pedro Gomes, porque eu não senti nada disso nem cheirava mal, o de 2006 melhor que o de 2007 — sim, foram duas garrafas — e se for comprado no supermercado, que também lá o há, sabe trezentos por cento melhor, na exacta proporção da metidela de unha dos estabelecimentos de restauração e comércio de bebidas, pois é um vinho muito em conta nas grandes superfícies. Na Barraca, em Burgau, a caminho de Vila do Bispo, há bom peixe fresco, turistas ingleses parvos e barulhentos, e “monkfish with rice” que é arroz de tamboril. Fica junto à praia, bem lá em baixo, não tem nada que ver que não seja a vista de mar, a luz é fluorescente e os guardanapos de papel, não há cá requintes. Nem há peixe: há pêxe. De resto, os dias em Lagos foram, desta vez, assim: menu único. Se tinha espinhas ou concha, comia-se. Sardinhas — há todo um conhecimento sobre a subespécie que habita as águas do Algarve, diferente das que se encontram cá por cima, mas que eu não domino a não ser na constatação do palato —, amêijoas, batatas de molho frio, mexilhões e melão branco. E pela primeira vez um misto algarvio: alfarroba, amêndoa e figo, três camadas diferentes de cor e de sabor, cuja ordem e proporção não recordo, dispostas numa forma baixa das que se usam para as tartes, uma sobremesa servida à fatia e que não é doce mas é saborosa pelo contraste intenso do figo, que é escuro e tem grainhas, do travo levemente amargo da amêndoa, e do aroma frutado da alfarroba — é o melhor que consigo, à distância de dias. Ficaram adiados os perceves, os salmonetes ou as cavalas. Enfim, para uma outra vez, que não sei quando será. Antigamente era uma vez por ano e logo um mês inteiro. Eram as férias, quando as coisas tinham outro cheiro, outras pessoas, outros ritmos, outros afazeres de cá e de lá. Era outra vida. Afugentar as gaivotas na Meia Praia às oito e meia da manhã, comer melancia depois do almoço, dormir a sesta, andar de bicicleta, os cães e a padaria, brincar na rua até tarde, ouvir o comboio ao longe nas noites quentes de calmaria. Depois cresce-se, as pessoas desaparecem, mudam-se as vontades e as coisas parece que perdem sentido. Mesmo com maiores facilidades em ir e estar. Só que as facilidades não são nada. Lagos, no entanto, continua sendo uma cidade bem bonita. Como Guimarães, que nos surpreendeu a todos pela convivência entre a jovialidade das gentes e a antiguidade dos espaços. É também de onde temos a maior parte das fotografias destes dias porque depois, na aldeia de Carvalhais, andaremos todos muito ocupados a (tentar) dançar e a máquina, embora à cintura, nem sairá da bolsa. Reza, contudo, que nem foi por alguma bolsa que, no Convívio, dois sujeitos se pegaram à pancada por volta das três da manhã, hora de muita cerveja bebida, na fila para a casa de banho. O Convívio é uma associação cultural que explora um bar e passou-se tudo diante do João. Se tivesse sobrado para o lado dele tinha apanhado, que os reflexos já estavam cansados. Uma lamentável cena de pugilato que deu por terminada a festa, um duelo de pôr-do-sol com discos na vez das pistolas, daqueles que recua dez passos e dispara o teu melhor hit do rock de sempre com didjeis de dois bares a ver quem animava mais. À custa dos boxeurs terminou antecipadamente às cinco da manhã, uma boa hora para ir comer hambúrgueres ao tio Júlio, que nunca fecha mesmo.
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1 comentário:
Mano, o melhor mesmo é acreditarmos nas memórias, daquelas que deixam saudades até ao fim...
Abraço.
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