Real Pudinsky, ou teorias da conspiração, ou exercícios de dedução, ou simplesmente porque é tão importante perceber a Rússia hoje, vivendo em Lisboa
É. Foi a semana quase perfeita para Vladimir Putin vir a Portugal passear o colete à prova de bala e a limusina Mercedes, para Marina Litvinenko e Alex Goldfarb lançarem o livro “Morte de um Dissidente” e para Andrei Nekrasov apresentar o documentário “Rebellion, The Litvinenko Case”. A história podia muito bem fazer um filme de 007. Mas é demasiado real.
A União Soviética desintegrou-se oficialmente em Dezembro de 1991. Boris Yeltsin demitiu-se oficialmente no último dia de 1999. Nesse dia o preço do barril de petróleo não chegava sequer a 30 dólares e já tinha batido num mínimo histórico de 11 dólares no início do ano. A Rússia tinha e tem petróleo e gás a rodos — quase na mesma proporção em que tem corrupção. A Europa é cliente e dependente da Rússia para esse abastecimento energético, tão dependente como os EUA dos combustíveis do Alasca ou do Médio Oriente, pelo que uma ameaça de fecho da torneira é ameaça grande demais para ser ignorada. Com o barril tão barato, Yeltsin não tinha, não teve, margem de manobra para desenvolver o paupérrimo e gigantesco país, então pós-comunista, pós-Perestroika de Gorbachev, e então democrático, mas sempre monumentalmente assimétrico e onde sempre existiram oligarcas, com que nomes fosse.
Vladimir Putin chegou a Presidente da Rússia enquanto desejado do embriagado Yeltsin e com 40 milhões de votos, que passariam a 70 por cento do eleitorado para a recondução em 2004. E chegou depois de menos de um ano como primeiro-ministro (Agosto 1999 a Maio de 2000), a que, por sua vez, chegou depois de outra breve passagem pela direcção do FSB (Julho 1998 a Agosto 1999, a convite de Yeltsin), a secreta russa substituta do KGB soviético, organização esta para onde foi primeiro recrutado ou se voluntariou — as fontes divergem — no ano de 1975, quando ingressou na universidade, e da qual esteve afastado entre 1991 e 1998.
A 8 e 13 de Setembro de 1999 ocorreram os Atentados de Moscovo. Primeiro, um prédio de habitação de nove andares/108 apartamentos é arrasado por 300 ou 400 quilos de explosivos detonados no piso térreo, matando 94 pessoas e ferindo 150, numa autêntica implosão demasiado incaracterística de atentado. Depois, outro edifício igualmente grande é arrasado da mesma forma, vitimando 118 e ferindo mais de 200. Pode-se acrescentar à contabilidade os 64 mortos em Buynaksk, no dia 4 do mesmo mês e ao estilo de carro-bomba em zona residencial, e mais quase duas dezenas no dia 16, em Volgodonsk.
Na sequência destes acontecimentos o primeiro-ministro Putin ordena um ataque à Chechénia, cujos nacionalistas estariam por detrás dos atentados em solo russo, dando início ao que se conhece como a Segunda Guerra da Chechénia.
Existe uma tese de que os Atentados de Moscovo terão sido uma operação negra do FSB, a secreta russa, para legitimar o ataque à Chechénia e precipitar a queda de Yeltsin e a tomada do poder por Putin.
Aleksander Litvinenko, agente do FSB desde a década de 80 até aos anos 2000, e obviamente durante a direcção de Putin, sustentou essa mesma tese pouco depois dos acontecimentos — anos mais tarde escreverá dois livros sobre isso, a corrupção generalizada no serviço e a agência enquanto máquina de poder pessoal do Poder. Para além de, juntamente com outros oficiais do FSB, ter denunciado outras acções, procedimentos e operações daquela agência à moda soviética, com muita corrupção e assassinatos pelo meio. Como a encomenda do assassinato de Boris Berezovsky — que não é nenhum santo, mas isso fica para depois —, um milionário russo que Litvinenko teve a incumbência de proteger enquanto aquele esteve no cargo de Secretário do Conselho de Segurança, e personalidade próxima do então presidente Yeltsin, passando-se isto no ano de 1998 e sob a direcção de Putin no FSB.
Não tendo cumprido a ordem, obviamente Litvinenko foi expulso do FSB, preso, julgado, absolvido e preso novamente na sala de audiência no momento seguinte à leitura da sentença da absolvição, sob acusações de ter agredido prisioneiros de guerra e roubado explosivos na primeira campanha da Chechénia. Após um mês na prisão foi libertado mediante a assinatura de um compromisso de não sair do país, que não cumpriu.
Andou fugido pela Turquia, Ucrânia, Turquia novamente e até chegar a Londres, onde pediu asilo político em pleno aeroporto de Gatwick no dia 1 de Novembro de 2000, o que lhe foi concedido em Maio do ano seguinte.
Em Outubro de 2006 tornou-se cidadão britânico e no dia 5 de Novembro foi envenenado por uma substância radioactiva extremamente rara, Polónio 210, vaporizado para a loiça de chá que lhe foi servido num conhecido hotel londrino, num encontro com outros supostos dissidentes russos do FSB, entre os quais Andrei Lugovoi, que o Reino Unido quer ver extraditado para o poder acusar e julgar, sem contudo pressionar muito os calos porque isso é chato, e que a Rússia protege e cuja extradição recusa. Litvinenko definhou lentamente durante 18 dias, até morrer sem se conhecer a causa concreta, descoberta apenas semanas depois.
Tudo isto é, no mínimo, interessante. E tem contornos que calham bem à lógica da dedução. Como mais este facto: a jornalista russa Anna Politovskaya, que escreveu sobre a dissidência de Litvinenko, sobre as guerras da Chechénia, sobre o massacre de Beslam, sobre o caso Kursk, etc etc, apareceu morta com quatro tiros no peito, à porta de casa, em Moscovo, no dia 7 daquele Novembro. Mas há muitos outros casos de jornalistas ou simples críticos ou opositores assassinados, à laia de, como diz um general soviético em sessão de doutrinação, em “Rebellion, The Litvinenko Case”, que «os traidores do regime devem ser abatidos como cães raivosos». É que a Rússia ocupa o 144º lugar da lista sobre liberdade de imprensa da Repórteres Sem Fronteiras, entre 169 países. E ditaduras assumidas na Europa só conheço a da Bielorrússia, que aparece mais mal classificada.
Porque Vladimir Putin esteve esta semana em Lisboa, com o coletinho de kevlar por debaixo do fato e a sua limusina Mercedes blindada. Porque vi “Rebellion, The Litvinenko Case”. Porque conversei com o realizador, Andrei Nekrasov. Porque essa sessão pública pós-projecção no Doc Lisboa foi muitíssimo participada e interessante. Porque esta semana, curiosamente, me deparei com detalhes do caso que não conhecia. Porque ontem um jornal inglês também veio deitar mais umas achas na fogueira — que Litvinenko terá sido sustentado pelo MI6 enquanto em Londres.
Porque o futuro da Europa joga-se, efectivamente, a Leste no continente e não na prevenção infundada de uma ameaça de mísseis e bombas nucleares por Estados muçulmanos. Porque a Rússia parece terrivelmente congelada, há já mais de cem anos, a fazer lembrar a passividade do feudalismo, sem querer puxar ao argumento da “predisposição genética para a servidão e escravatura”, que ouvi algures, e não obstante reconhecer que é dos movimentos populares aparentemente adormecidos que brotam as revoluções enquanto mudanças estruturais. Porque os tiques autoritários são mais do que tiques — isso é o que temos por cá, com a polícia a visitar sindicatos na véspera de manifestações. Ou simplesmente porque esta semana, tendo começado a dar notícias ao país, me tenha visto na obrigação de compreender melhor estes assuntos, todos os assuntos. Porque há alguma responsabilidade nisto tudo, não há? Há. Só espero que o José Manuel Fernandes, no Ípsilon desta semana, esteja enganado.
Sobre o caso Litvinenko.
Sobre o documentário.
E o resto está no Google...
Aleksander Litvinenko, por uma TV holandesa
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2 comentários:
Putin, Putin.. no comments are needed, or maybe a nice discussion we should do one night of these
Depois de segunda-feira, por motivos óbvios (a folga) e com dados novos e outros corrigidos.
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