Praga, o reencontro (e com as calças também) – dias 16, 17 e 18
Pareceu-me ver passar a Anna na estação, à chegada. Mas também é muito provável que tenha sido do cansaço. Afinal, eram cinco e quanto da manhã? Desde o ano passado, quando nos conhecemos em Praga, que lhe tinha prometido um reencontro quando fosse a Budapeste, mas dias antes trocámos mensagens e eu logo avisei que afinal estaria só de passagem pela estação. A Anna é russa, loira e branquinha como as russas, e trabalha como jornalista na televisão húngara.
Descemos do comboio sem pressa, à conversa com o finlandês solitário a quem tinha calhado uma couchette cheia de malta jovem e faladora, e passámos por aquele que seria o nosso comboio de ligação a Praga, estacionado na linha, do qual demos conta pelo pequeno quadro electrónico à porta de uma das carruagens, com a indicação do destino e a hora de partida. Puxei da bolsa a folha onde tinha apontado os horários dos comboios e percebi o erro: a ligação era duas horas mais cedo do que eu vinha assegurando, e dali a cinco minutos. Procurámos um pica junto à composição, que era enorme, mas não encontrámos nenhum e segundo a cábula aquele Euro City requeria reserva. Honestos, fomos à bilheteira internacional e depois de esperar bastante na fila, o bilheteiro feio, antipático e com cabelo à tigela lambido, anunciou que os húngaros são uns mãos largas e não cobram taxas nenhumas a quem viaja por inter-rail, respondendo à nossa desconsolada pergunta “so, we missed the train?” com um sarcástico “yes, you missed the train”.
Profundamente chateados por saber que chegaríamos a Praga perto das seis da tarde e não à uma, encontrámos uma casa de banho para a Joana mudar de roupa e agasalhar as pernas, tentámos trocar os meus dois mil e seiscentos dinares sérvios num balcão da Western Union, onde perante a antipatia da gaja que estava para lá do vidro do guichet, a Joana perdeu a cabeça e quase lhe quis bater, e depois fomos para o MacDonalds em frente da estação, para aceder à internet. A cem forints por cada vinte minutos, consultámos o email, reservámos um hostel no centro de Praga e eu escrevi no blogue pela primeira vez desde o início da viagem, sobre aquelas horas terroríficas em Budapeste.
Ao nosso lado no MacKiosk estava um homem vestido de preto, que tresandava a perfume e por isso o apelidei de “o cheiroso”. Eu não tinha nada contra o cheiroso. Até precisar ir à casa de banho do restaurante para um chichi, porque seguramente estaria mais limpa que a da estação. À entrada reparei na porta aberta de um dos cubículos, onde estava encostada uma mochila, e ouvi o que não queria ouvir: alguém estava desarranjado e a borrar-se, repetidamente. Fiz o que tinha a fazer e enquanto estava debruçado a lavar as mãos, olhei o espelho em frente e vi o cheiroso sair daquele preciso cubículo e colocar-se atrás de mim, mas porque eu devo ter demorado mais cinco segundos do que ele estaria disposto a esperar, saiu sem lavar as manápulas. As mesmas que, quando saí dos lavabos, já estavam a teclar novamente num dos computadores do MacKiosk. Nojento.
No comboio para Praga eu e a Joana estávamos de rastos. Eu, que não durmo em transportes, não conseguia manter-me acordado e com ela foi igual, até chegar aquela fase da viagem em que as sete horas do percurso pareciam não acabar e tivemos de passear pelas carruagens para nos entretermos e manter acordados. Foi aí que decidimos contar ao Pedro e ao Rui em Praga a segunda e última mentira da viagem, de que teríamos visto o Nuno Markl naquele comboio — perante a qualidade do sósia e uma prova material, não resistimos. Quem não acreditaria?
Para a Joana, ir a Praga significava regressar à “sua” cidade, oito meses depois de a ter deixado, e isso via-se no desembaraço e exigência em ser ela a comprar os bilhetes para o metro e a liderar o caminho, nos olhos húmidos e no sorriso tímido mas apaixonado, que lhe conheço, ao ler e ouvir a indicação de cada uma das paragens. Para mim, que também conhecia a cidade por lá ter passado umas três semanas no último Agosto, quando toda a Europa foi varrida por uma vaga de calor que nada tinha que ver com os vinte e poucos graus que sentiríamos durante os três dias de estadia, o que ditou que não mais andássemos de pernas ao léu e que o Pedro adoptasse de vez os ténis, era o início do regresso a casa, numa cidade que me era familiar. Desde a Croácia que eu perdia o alento de cada vez que reconhecia ter de viajar noutro comboio, em campanhas nunca inferiores a cinco horas, e por estar constantemente afastando-me de Lisboa.
Por outro lado, e como tínhamos planeado tratar-nos bem na última etapa, foi tempo de descanso e de passar em revista as três semanas de viagem e recordar alguns pormenores. Como aquele supermercado em Hvar que nalguns sítios tinha menos de trinta centímetros entre as estantes com os produtos e os pilares da casa. Como eu ter acumulado, sem querer, quase todos os postais que comprei e escrevi durante a viagem, para enviar a partir de Praga — talvez pelos selos colados por cima de outros, alguns nunca tenham chegado ao destino. Como aquela noite, já não me lembro onde, em que formulei a teoria de que o turismo inglês na Praia da Rocha é de “pé descalço” e que as “bifas” que por lá andam são em grande percentagem feias e a atirar para o gordo, axioma a que chamei “as inglesas da Praia da Rocha são as filhas dos motoristas da Carris de Londres”, que valeu ao Pedro um daqueles seus ataques de riso estranhos em que ele solta um guincho, fica vermelho e de boca aberta, e despenteia-se descontroladamente. Ou como o Rui, que tinha vindo para a viagem com uma bola de futebol, que pacientemente transportou à mão dentro de um saco plástico do Continente durante três semanas, ter deixado de tentar jogar à bola nas estações de comboio logo depois de tentativas frustradas pelos vigilantes de serviço em Badajoz, Madrid, Barcelona, Cerbere e Montpellier — ao cabo de três dias, portanto.
Depois de jantar com a Joana num restaurante que ela conhecia perto do Museu Nacional, fomos esperar o Rui e o Pedro à estação, com o Pavel, um checo amigo. O comboio deles chegou com mais de quarenta minutos de atraso, perto das dez da noite, e não me espantou ver o Pedro descer a sorrir e o Rui acompanhado de uma rapariga loira com um vestido bastante curto — reforço: bastante curto. A Carol era irlandesa, tinha apenas 18 anos e um sorriso mesmo de menina. Havia deixado os amigos com quem viajava para ver Praga, e perante aquela candura solitária no comboio, o Rui achou por bem poupá-la ao desconhecido e levá-la para o nosso quarto no hostel, onde havia pelo menos mais três camas livres. Para mim e para o Pedro foi quanto bastou para nos divertirmos o resto da noite a gozar com ele, depois de passear pela baixa da cidade, levar os rapazes a uma casa de pizzas à fatia, olhar o relógio na praça central da baixa, passar a Ponte de Carlos para a outra margem, regressar e perder imenso tempo procurando um bar onde beber umas canecas de cerveja.
Quando acordámos já a Carol tinha ido embora sem se despedir, nem mesmo do Rui. Então fomos almoçar goulash num restaurante onde a empregada ficou furiosa ao recusarmos o menu inglês, porque a Joana queria recordar o checo, o suficiente para a tipa e os checos em geral acharem que assim o turista vai é escolher os pratos mais baratos e poupar nas coroas. Enganaram-se e enganam-se redondamente, porque nós queríamos gastar algum dinheiro e porque a República Checa é um destino relativamente barato para um português, o que dispensa comentários para norte-americanos ou ingleses. Os empregados de mesa checos não gostam de quem não deixa gorjeta, o que até se percebe porque os salários deles são baixos e eu acho que em Portugal é que esse comportamento social não está assim tão enraizado — deixámos trocos. E por falar em salários baixos, ainda encontrarei quem confirme que aqueles acompanhamentos típicos dos pratos checos, umas fatias de massa de pão ou de batata, os knedliky, são uma herança histórica dos tempos de fome, em que o que importava era encher a barriguinha.
O resto do dia foi passado a caminhar pela baixa da cidade, pelo bairro judeu, pela Ponte de Carlos repleta de gente, pelo castelo e numa subida à pequena réplica da torre Eiffel, no cimo de um morro de onde se vê toda a cidade até ao horizonte. Eles subiram ao topo, eu fiquei-me pelo primeiro piso. Foi por essa altura que o Pedro e o Rui elegeram Praga como a cidade mais bonita onde tinham estado, o que se percebe. A cidade mistura a monumentalidade a cada esquina com a funcionalidade — da planície em que foi construída, propícia à caminhada, do bom sistema de transportes públicos, e de uma aparente vida própria alheia ao turismo — e tudo parece fluir. E estar de passagem durante poucos dias com alguém que lá viveu uma temporada foi uma vantagem. Só assim pudemos passar umas horas descontraídas no Bohemian Bagels, uma casa com óptimos bagels, um brownie de chocolate divinal e café expresso digno desse nome para os padrões da Europa de Leste, ao som de boa música embalando a conversa ou a escrita no meu caderninho castanho. Esta história, que agora se aproxima do final, começou sendo escrita num pequeno Moleskine de bolso com trinta e duas folhas pautadas cozidas com um fio de linho castanho claro a uma capa de cartão fino e mole da mesma cor, onde escrevi com a minha Lakubo preta de ponta zero-sete, a única que não borra o papel daquela marca.
Nessa noite jantámos num dos restaurantes mais concorridos de Praga, de que não recordamos o nome nem, muito sinceramente, o que comemos. O Rui partilhou comigo um vinho branco francês mediano e no final passou um quarto de hora cheirando o pouquíssimo Porto Tawny que lhe serviram num balão. O Pedro gostou do tabaco checo que comprou. E a Joana bebeu mais uma San Pellegrino, a melhor água gasocarbónica do planeta — não se encontrar San Pellegrino nos supermercados portugueses é uma heresia.
Na prática passámos só dois dias em Praga e o segundo teve ainda mais de ócio e repouso que o primeiro. Não para as pernas, porque continuámos andando muito, mas para o resto do corpo. Nestas vinte e quatro horas finais acho que pouco mais fizemos do que procurar uma tshirt de turista para o Pedro, jantar pizzas no Tesco, o supermercado onde a Joana tentou comprar as coisinhas todas a que tinha sido habituada e de que queria levar um pequeno carregamento para Lisboa, e convencer o dono de um sports bar a ceder a televisão mais pequenina que tinha, à entrada do bar, para o Benfica 1 – Copenhaga 0, no dia em que todos os bares do género estavam cheios com jogos dos dois clubes da cidade, o Sparta e o Slavia. O Pedro e o Rui são doentes por futebol. Sempre que usámos a internet ao longo da viagem a primeira paragem de qualquer um deles foi o site d’A Bola. Para além das mensagens diárias de amigos e pais com as mais frescas das lesões ou a novela “Fernando Santos sai, José António Camacho regressa”. Por isso não se estranhou o grito do Pedro quando o Benfica marcou. Mas bem que podiam ter mostrado alguma iniciativa na marcação de dormidas ou pesquisa de horários de comboios.
Depois do jogo passámos tempo no hostel até a sala de convívio fechar, à meia-noite, altura em que rumámos ao MacDonalds 24h para passar mais tempo até cerca das quatro da madrugada, quando partiria o comboio que nos levaria a Dresden, para finalmente terminarmos na Suíça. A discussão sobre as normas de vestuário em contextos institucionais, ou simplesmente sobre por que razão a Joana tinha sido impedida de entrar na igreja em Padova, ou por que raio é que eu acho que não se deve ir para a universidade em calção (de banho ou similar) e chinelo, azedou e deu direito a amuo do Rui, até Frankfurt.
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8 comentários:
hummm acho que ja so vês sombras de algumas coisas, mas compreende-se - ja la vai um mesito. A discussão não deixou nenhum de nós amuado, pelo menos assim que saímos do mcdonalds. Lá dentro ja n te podia ver à frente, é um facto =). Quarta jantamos?
O artista (é um bom artista) e manda na sua história :P
Bálábêre, mas só pra musiquinha mais tarde (janto com uma mulher, nessa noite...)
Quer dizer, com jeito e se for cedinho ainda se reúne um grupo engraçado à mesa: tu, eu, a Diana, a Joana e o João (e se o Pedro estiver cá...). Depois parto pro cinema. Mas reencontro na musiquinha à beira Tejo.
Com certeza, com certeza.
O alentas ja disse que n vem pa lisboa portanto tenho de falar c elas. O joao ta em duvida pq monty pithon mas se calhar alinha no tejo onde haverá piano e contra baixo mas, pa tristeza minha,n ha saxofone.
grrrrrr... é igual ao markl!
sou uma fotógrafa danada
(será que podemos ir presos por isto?)
Ahh.. Praga =P Mas repito o que disse à uns dias: mandem esta foto ao Markl.. ele vai adorar! Tá IGUAL! =)
Grande Praga.. grande relato com amuos e tudo. ehehe
PS: Como não podia deixar de ser, aqui vai o word verification deste comment: «nkqwmgb» - eu diria que se aproxima um pouco das regras linguísticas do negnutu, língua oficial da suazilândia de leste
O email do gajo tá sempre entupido, mas já arranjei forma de lhe passar o link pra ele vir ver. E mais não sei.
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