terça-feira, 13 de novembro de 2007
quarta-feira, 7 de novembro de 2007
terça-feira, 6 de novembro de 2007
Porque encerrou definitivamente no dia 31 Out a maior sala de cinema do país, a Academia Almadense, deixo aqui a reportagem que fiz sobre o cinema em Maio de 2006, quando ameaçou fechar pela primeira vez.
Academia Almadense
O meu cinema já foi grande
A maior sala de cinema do país, e a última na cidade de Almada, está em risco de fechar. As dificuldades financeiras são muitas e os espectadores são poucos. Até o serviço de bar deixa de estar garantido já a partir do final do mês.
Quinta-feira é dia de estreia nacional. O filme é o mais recente episódio de “Missão Impossível”, e às três e meia da tarde, a primeira sessão do dia, estão apenas dez pessoas na sala da Academia Almadense. «Ontem, com o outro filme, fizemos matiné para uma pessoa sozinha. Isto assim não pode ser», comenta com desalento o senhor Lourenço, encarregado do pessoal e funcionário da Academia há 21 anos. «Este filme é bom. Vamos ver como se safa logo à noite e no fim-de-semana», diz com uma esperança ténue, enquanto olha a rua, encostado a uma das portas de vidro que deixam entrar a única luz que ilumina o amplo átrio do cinema. «Desligo as luzes uns dez minutos depois da hora, porque à tarde não vale a pena estar a gastar», explica.
Ao cimo de vários lanços de escadas abre-se a porta da cabine de projecção. António Dias, projeccionista da Academia há três anos, divide a sua atenção entre a vigia que deita para a sala de 830 lugares e por onde controla, curvado, a projecção do filme, e a vontade em falar dos meandros da «melhor profissão do mundo», que é a sua, há já três décadas. O ruído e o calor que estão na sala são produzidos pelo projector, um Victoria com lâmpada de 7500 watts, adquirido em 2003 e três vezes mais potente que o anterior. «Só com uma máquina assim é que se consegue aquela qualidade de imagem», esclarece, apoiado na máquina antiga, ainda ali ao lado. «Se isto acabar é uma pena. Ainda por cima com uma máquina nova, está a ver?»
A verificar-se o encerramento da Academia, o centro de Almada fica despovoado de cinemas, 14 anos depois do encerramento da sala da Incrível Almadense. Em 2003, com o centro comercial Almada Fórum, abriram 14 novas salas de cinema. Mas a verdade é que o centro comercial está bastante desviado da cidade, junto à auto-estrada A2, e dependente de deslocação em viatura própria ou autocarros específicos. O que são condições muito diferentes da Academia, situada numa das principais artérias de Almada, a rua Capitão Leitão. É lá que se concentra muito e variado comércio tradicional, a antiga igreja que alberga os Paços do Concelho, o antigo e desactivado hospital, cafés e restaurantes para múltiplos gostos, e os mais conhecidos bares, sempre com constante movimento de carros e pessoas.
À noite a rua ganha outro brilho, com os néons encarnados que realçam “Academia Cine-Teatro” e também as luzes coloridas que na fachada do cinema assinalam mais um aniversário da instituição, o 111º — a Academia Almadense é uma associação cultural e recreativa, e o cinema é apenas uma das suas valências, dispondo também de serviços de desporto e música (ver caixa). Mas, na sessão das 21h30 o cenário não era melhor: estavam vendidos cerca de 90 bilhetes.
Ao entrar na sala, a visão daquele volume amplo quase vazio impressiona, pelo que deve ser arrebatadora quando lotado. São 26 filas de cadeiras em couro verde-escuro, divididas em balcão e plateia, numa sala em forma de concha, e muito bem iluminada. Tudo está limpo e não há sinais de degradação, chão e paredes estão forrados a alcatifa castanha, e nos degraus brilham as letras de cada fila, de A a Z, em luz violeta. Das paredes relevam as diversas colunas de som, pequenas caixas negras, e concavidades acústicas. A tela branca, que se veste de tons vermelhos antes da sessão, mede uns módicos 19 metros de comprimento por sete de altura, e está emoldurada por duas filas de pesados cortinados. Porque construída originalmente para ser um cine-teatro, a sala tem um grande palco em meia-lua, de soalho igualmente verde, que invade a plateia até junto dos primeiros assentos e se estende por detrás da tela, e sob o qual existe um fosso de orquestra. Maior que a Academia Almadense só a primeira sala do ainda encerrado cinema S. Jorge, com mais 18 lugares, propriedade da Câmara Municipal de Lisboa, o que faz da sala almadense a maior do país de gestão privada.
«Não vem ninguém depois da hora»
«Antigamente éramos quatro arrumadores, mais um ou dois a cortar bilhetes». Agora são quatro rotativos, dois por semana, um na entrada e outro sozinho na sala, informa José Marreiros, reformado, arrumador de sala na Academia há 11 anos. A maior enchente de que se lembra foi o “Titanic”, que esteve 15 dias esgotado e mesmo depois de sair de cena as pessoas ainda vinham à procura de bilhete, conta, enquanto separa pelo picotado os talões dos bilhetes já cortados. Depois disso, só filmes como os da série “O Senhor dos Anéis”, o primeiro episódio da trilogia “Matrix” e um outro de “A Guerra das Estrelas” provocaram enchentes.
Com a redução de pessoal e dos espectadores somente uma das cinco portas de acesso à sala está em funcionamento, o que é motivo de lamento para o senhor Marreiros. «Antes indicávamos às pessoas o caminho mais próximo, “ao cimo à esquerda, ao cimo à direita”» e agora «quem tem lugar mais à esquerda entra pela mesma porta e tem que andar aquilo tudo», explica com um profissionalismo encantador, que vai muito além da farda, uma camisa de riscas encarnadas e o colete de algodão azul escuro, onde ao peito está o brasão da casa. Se a Academia fechar «fico triste, pois claro», não tanto por perder o trabalho, dado que «isto é mais uma entretenha» e que não são os sete euros que ganha por sessão que fazem grande diferença. Quando lhe peço para ver a lanterna prateada, dispara: «e tínhamos que alumiar o caminho aos espectadores atrasados, quando agora não vem ninguém depois da hora».
Talvez mais gente se sentisse atraída pelo cinema se lá pudesse encontrar todas as semanas daquelas estreias sobejamente divulgadas e aguardadas. Contudo, isso nem sempre é possível. «Só os filmes com mais de 35 cópias é que chegam à Academia, porque as distribuidoras privilegiam as suas salas», explica Arménio Silva, responsável de programação da Academia desde a sua abertura, acerca das fitas com a etiqueta da Lusomundo. De potenciais grandes êxitos como “Missão Impossível” ou “O Código Da Vinci” chegam a Portugal entre 60 e 80 cópias, «e esses conseguimos agarrar». Quanto a outros filmes, simplesmente «respondem-nos que não há cópias para a Academia», o que se tem verificado com maior frequência desde a abertura do Almada Fórum.
Mesmo que o cinema continue a laborar, a partir do final do mês não está assegurado o serviço de bar. Ao fim de 12 anos a explorar o espaço e a manter o bengaleiro da Academia, Afonso Miranda já comunicou à Direcção a vontade de extinguir o contrato de concessão. O abandono deve-se a uma «reorganização interna do negócio», explica, referindo-se ao café de que é proprietário, há 25 anos, e que fica do outro lado da rua. Com menos funcionários Afonso Miranda tem que dar mais atenção ao seu negócio principal, não negando, porém, por detrás do ruído do moinho de café, que as receitas do bar também «já não são o que eram».
A pedido de memórias, recorda com um sorriso que em dias de lotação esgotada, ou mesmo com mais de 500 espectadores, abriam os dois bares, referindo-se a um segundo espaço, no topo e à direita da escadaria do átrio de entrada — as sessões da Academia têm intervalo. Ou lembra ainda a introdução das pipocas no cinema, quando tomou em mãos o bar, e de quanto essa novidade incomodou o encarregado da sala.
José Amorim, de 54 anos, escolheu a Academia Almadense para ver a estreia de “Missão Impossível”, em família. Porquê? Precisamente porque ali não encontra a confusão de outros sítios nas estreias, mas também porque o bilhete é mais barato. O Almada Fórum, diz, é cómodo pelo estacionamento fácil e gratuito, pela variedade de filmes que oferece e por tudo o resto extra-cinema. «A nossa filha mais nova está lá, a ver o mesmo filme, com os amigos», revela.
Andreia e Guilherme, ela psicóloga e ele engenheiro civil, ambos a caminho dos 30 anos de idade, escolheram a Academia «pela tradição», pelo preço reduzido dos bilhetes — 2,50 euros contra mais de cinco na generalidade dos cinemas — e para não correr o risco de encontrar a lotação esgotada. Por seu turno, Jorge, 29 anos, e Sónia, de 28, salientam a qualidade da sala e a existência de intervalo. Já Manuel e Elsa, de 30 e 25 anos, explicam que pesou na decisão o facto de residirem nas imediações, o preço baixo e a qualidade de som e imagem da sala.
De facto, desde a sua abertura, há 32 anos, foram realizadas várias intervenções e melhoramentos na sala da Academia, para a manter sempre actualizada. Na década de 90 substituíram-se as cadeiras e alcatifas, melhoraram-se as condições acústicas e introduziu-se o som Dolby Digital Surround, marca de pioneirismo do cinema na altura, além de um novo ecrã. Isto sem esquecer o último investimento, com o actual projector, uma despesa que rondou os 60 mil euros, realizada já numa altura de quebra financeira. Mas a noite de quinta-feira continuava muito tímida.
Prejuízos nos últimos seis anos
«O máximo agora são 200 pessoas», diz a bilheteira Maria Luísa, de 62 anos e há 43 na Academia — é das funcionárias mais antigas. «Não adianta baixar o preço dos bilhetes», afiança, um mês depois da decisão da Direcção em reduzir os ingressos de 3,80 para 2,50 euros durante a semana, mantendo-se o preço ao sábado, domingo e feriados. É certo que os filmes anteriores não foram do estilo desta estreia nacional, mas Luísa garante que muitos dos frequentadores do cinema são residentes nas proximidades, ou os miúdos que não têm carro para se deslocar ao centro comercial. «Dantes, nas estreias, formavam-se filas enormes que iam até à esquina» do edifício, comenta, depois de interromper o tricot para vender bilhete a um espectador tardio. «Este não é de cá, perguntou se ainda havia bilhetes», graceja.
Osvaldo Azinheira não pode partilhar a boa disposição, mesmo que momentânea. Para o Presidente cessante da Direcção da Academia Almadense a realidade é dura e muito triste. «Temos vindo a adiar, desde há anos, o encerramento do cinema», confessa. Na sua opinião são vários os responsáveis pelo decréscimo de espectadores do cinema, mas sobretudo a falta de estacionamento nas proximidades e a supressão, no passado, de duas carreiras de autocarros que passam naquela rua, para Cacilhas, depois das 21 horas. Por fim, as outras condicionantes são comuns à crise geral do cinema: a TV por cabo, a internet, o DVD e «a grande diminuição do poder de compra das pessoas».
Pelo menos desde 1999 que o cinema não apresenta um exercício positivo. E os números são bastante elucidativos das dificuldades que a Academia atravessa: se em 2001 as receitas do cinema foram de 391 mil euros, com despesas um pouco superiores, em 2003 apenas entraram nos cofres cerca de 129 mil euros (saíram 244 mil), sendo que em 2004 o valor não chegou aos 102 mil euros (com despesas de mais do dobro). Ou seja, em três anos registou-se uma quebra das receitas superior a 74 por cento — não foram disponibilizados dados referentes a número de espectadores. «São as piscinas que evitam a derrocada total» da Academia, afirma resignado, enquanto o cinema sempre tinha sido a principal fonte de receita da instituição.
«Tenho a consciência de que vou passar o testemunho de um barco a afundar», desabafa, claramente emocionado, de olhar evasivo por detrás dos óculos, e ajeitando a gravata. Azinheira, de 72 anos e assessor da presidência da autarquia, vem sendo sucessivamente eleito Presidente da Direcção há um quarto de século, mas assume-se algo cansado e desgastado. Conforta-o saber que quem lhe sucederá é um homem da casa há tantos ou mais anos que ele, que conhece os problemas e é de sua inteira confiança — é, aliás, o seu Vice-Presidente, que agora encabeçou a única lista apresentada a sufrágio.
É, então, nas mãos de Domingos Torgal, professor do primeiro ciclo reformado e profundamente ligado e activo no associativismo almadense, que reside o futuro do cinema da Academia. Para já, o que pretende fazer é «ouvir os jovens, chamá-los a dar a sua opinião sobre o que se deve fazer para dinamizar o cinema e a sala». Na sua opinião, a principal pecha da Academia são os problemas de estacionamento. E pelo menos uma solução existe. É que o edifício do cinema foi construído com estacionamento subterrâneo. Apenas essa cave alberga, desde 1976, as actividades desportivas da Academia. «Eu gostava de poder devolver a garagem à garagem», diz, «porque ainda cabem lá umas 60 ou 70 viaturas». Mas isso depende da construção de um pavilhão gimno-desportivo para a Academia, em terrenos a disponibilizar pela autarquia, algo ainda dependente de projecto e que num curto prazo não passa de um desejo. «E a Academia também não tem esse dinheiro, diga-se».
De cabelo e bigode brancos, divertido ao longo da conversa, o professor Torgal não evita que o rosto se lhe feche perante a questão, a que responde, com séria inevitabilidade: se a crise subsistir «não ponho de parte a hipótese de fechar o cinema».
Um problema sem solução
O problema da falta de público na Academia Almadense não parece ter resolução possível. A crise do cinema é geral, como atestam os dados do Instituto do Cinema Audiovisual e Multimédia: em 2005 os cinemas nacionais perderam quase um milhão e 400 mil espectadores (menos 8,1 por cento), face ao ano passado. E para as salas únicas e de elevada capacidade, como é o caso, não há forma de responder à crescente oferta de fitas, pois a escolha é só uma. Em bom rigor, nos dias de hoje uma sessão com mais de 150 espectadores é um óptimo resultado para a generalidade dos cinemas, cujas lotações não vão muito mais além. Apenas quando se tem 830 cadeiras para preencher e as dimensões e custos que lhes estão associados, obviamente esse número não chega.
Também os hábitos de consumo dos portugueses se modificaram e os centros comerciais se afirmaram, oferecendo uma multifuncionalidade sem paralelo: convívio, compras, comida e cinema, tudo no mesmo espaço. Concretamente, o centro comercial Almada Fórum impôs-se não só pela novidade — o primeiro e único do género no concelho —, mas por toda uma reconfiguração de hábitos que proporcionou, a que serve de exemplo a deslocação (e expansão) do único hipermercado da cidade para a nova infra-estrutura. E não pode ser ignorado o facto de o estacionamento ser gratuito.
Por fim, transformar o cinema da Academia numa sala multiusos, uma das soluções de rentabilização do espaço, não é tão fácil quanto aparenta. É que ao cancelar uma sessão para acolher, por exemplo, um espectáculo musical, o cinema não só tem que cumprir as obrigações negociais para com a distribuidora, como pode estar a contribuir para que esta privilegie com cópia outra sala concorrente na próxima estreia.
Apesar do cenário pouco optimista verificado com “Missão Impossível”, o próximo filme a estrear na Academia é “O Código Da Vinci” e as expectativas do cinema numa boa receita são elevadas. De tal forma que o filme ficará duas semanas em exibição. Depois, e com a chegada do calor, tudo é uma incógnita.
Em Agosto do ano passado a Academia Almadense fechou as portas pela primeira vez na sua história. Este Verão, e na ressaca do campeonato mundial de futebol, teme-se que, a encerrar de novo, seja por tempo indeterminado. Que as fitas não voltem a passar, que não haja mais espectadores boquiabertos pelo gigantismo da imagem, que não mais se salte assustado pelo som daquela bala que passou rasando a cabeça. Porque um cinema fechado só se pode deteriorar e acaba por se esquecer. E as memórias não alimentam cinéfilos. | João Pedro Correia (texto e fotos; Maio 2006)
Academia Almadense
O meu cinema já foi grande
A maior sala de cinema do país, e a última na cidade de Almada, está em risco de fechar. As dificuldades financeiras são muitas e os espectadores são poucos. Até o serviço de bar deixa de estar garantido já a partir do final do mês.
Quinta-feira é dia de estreia nacional. O filme é o mais recente episódio de “Missão Impossível”, e às três e meia da tarde, a primeira sessão do dia, estão apenas dez pessoas na sala da Academia Almadense. «Ontem, com o outro filme, fizemos matiné para uma pessoa sozinha. Isto assim não pode ser», comenta com desalento o senhor Lourenço, encarregado do pessoal e funcionário da Academia há 21 anos. «Este filme é bom. Vamos ver como se safa logo à noite e no fim-de-semana», diz com uma esperança ténue, enquanto olha a rua, encostado a uma das portas de vidro que deixam entrar a única luz que ilumina o amplo átrio do cinema. «Desligo as luzes uns dez minutos depois da hora, porque à tarde não vale a pena estar a gastar», explica.
Ao cimo de vários lanços de escadas abre-se a porta da cabine de projecção. António Dias, projeccionista da Academia há três anos, divide a sua atenção entre a vigia que deita para a sala de 830 lugares e por onde controla, curvado, a projecção do filme, e a vontade em falar dos meandros da «melhor profissão do mundo», que é a sua, há já três décadas. O ruído e o calor que estão na sala são produzidos pelo projector, um Victoria com lâmpada de 7500 watts, adquirido em 2003 e três vezes mais potente que o anterior. «Só com uma máquina assim é que se consegue aquela qualidade de imagem», esclarece, apoiado na máquina antiga, ainda ali ao lado. «Se isto acabar é uma pena. Ainda por cima com uma máquina nova, está a ver?»
A verificar-se o encerramento da Academia, o centro de Almada fica despovoado de cinemas, 14 anos depois do encerramento da sala da Incrível Almadense. Em 2003, com o centro comercial Almada Fórum, abriram 14 novas salas de cinema. Mas a verdade é que o centro comercial está bastante desviado da cidade, junto à auto-estrada A2, e dependente de deslocação em viatura própria ou autocarros específicos. O que são condições muito diferentes da Academia, situada numa das principais artérias de Almada, a rua Capitão Leitão. É lá que se concentra muito e variado comércio tradicional, a antiga igreja que alberga os Paços do Concelho, o antigo e desactivado hospital, cafés e restaurantes para múltiplos gostos, e os mais conhecidos bares, sempre com constante movimento de carros e pessoas.
À noite a rua ganha outro brilho, com os néons encarnados que realçam “Academia Cine-Teatro” e também as luzes coloridas que na fachada do cinema assinalam mais um aniversário da instituição, o 111º — a Academia Almadense é uma associação cultural e recreativa, e o cinema é apenas uma das suas valências, dispondo também de serviços de desporto e música (ver caixa). Mas, na sessão das 21h30 o cenário não era melhor: estavam vendidos cerca de 90 bilhetes.
Ao entrar na sala, a visão daquele volume amplo quase vazio impressiona, pelo que deve ser arrebatadora quando lotado. São 26 filas de cadeiras em couro verde-escuro, divididas em balcão e plateia, numa sala em forma de concha, e muito bem iluminada. Tudo está limpo e não há sinais de degradação, chão e paredes estão forrados a alcatifa castanha, e nos degraus brilham as letras de cada fila, de A a Z, em luz violeta. Das paredes relevam as diversas colunas de som, pequenas caixas negras, e concavidades acústicas. A tela branca, que se veste de tons vermelhos antes da sessão, mede uns módicos 19 metros de comprimento por sete de altura, e está emoldurada por duas filas de pesados cortinados. Porque construída originalmente para ser um cine-teatro, a sala tem um grande palco em meia-lua, de soalho igualmente verde, que invade a plateia até junto dos primeiros assentos e se estende por detrás da tela, e sob o qual existe um fosso de orquestra. Maior que a Academia Almadense só a primeira sala do ainda encerrado cinema S. Jorge, com mais 18 lugares, propriedade da Câmara Municipal de Lisboa, o que faz da sala almadense a maior do país de gestão privada.
«Não vem ninguém depois da hora»
«Antigamente éramos quatro arrumadores, mais um ou dois a cortar bilhetes». Agora são quatro rotativos, dois por semana, um na entrada e outro sozinho na sala, informa José Marreiros, reformado, arrumador de sala na Academia há 11 anos. A maior enchente de que se lembra foi o “Titanic”, que esteve 15 dias esgotado e mesmo depois de sair de cena as pessoas ainda vinham à procura de bilhete, conta, enquanto separa pelo picotado os talões dos bilhetes já cortados. Depois disso, só filmes como os da série “O Senhor dos Anéis”, o primeiro episódio da trilogia “Matrix” e um outro de “A Guerra das Estrelas” provocaram enchentes.
Com a redução de pessoal e dos espectadores somente uma das cinco portas de acesso à sala está em funcionamento, o que é motivo de lamento para o senhor Marreiros. «Antes indicávamos às pessoas o caminho mais próximo, “ao cimo à esquerda, ao cimo à direita”» e agora «quem tem lugar mais à esquerda entra pela mesma porta e tem que andar aquilo tudo», explica com um profissionalismo encantador, que vai muito além da farda, uma camisa de riscas encarnadas e o colete de algodão azul escuro, onde ao peito está o brasão da casa. Se a Academia fechar «fico triste, pois claro», não tanto por perder o trabalho, dado que «isto é mais uma entretenha» e que não são os sete euros que ganha por sessão que fazem grande diferença. Quando lhe peço para ver a lanterna prateada, dispara: «e tínhamos que alumiar o caminho aos espectadores atrasados, quando agora não vem ninguém depois da hora».
Talvez mais gente se sentisse atraída pelo cinema se lá pudesse encontrar todas as semanas daquelas estreias sobejamente divulgadas e aguardadas. Contudo, isso nem sempre é possível. «Só os filmes com mais de 35 cópias é que chegam à Academia, porque as distribuidoras privilegiam as suas salas», explica Arménio Silva, responsável de programação da Academia desde a sua abertura, acerca das fitas com a etiqueta da Lusomundo. De potenciais grandes êxitos como “Missão Impossível” ou “O Código Da Vinci” chegam a Portugal entre 60 e 80 cópias, «e esses conseguimos agarrar». Quanto a outros filmes, simplesmente «respondem-nos que não há cópias para a Academia», o que se tem verificado com maior frequência desde a abertura do Almada Fórum.
Mesmo que o cinema continue a laborar, a partir do final do mês não está assegurado o serviço de bar. Ao fim de 12 anos a explorar o espaço e a manter o bengaleiro da Academia, Afonso Miranda já comunicou à Direcção a vontade de extinguir o contrato de concessão. O abandono deve-se a uma «reorganização interna do negócio», explica, referindo-se ao café de que é proprietário, há 25 anos, e que fica do outro lado da rua. Com menos funcionários Afonso Miranda tem que dar mais atenção ao seu negócio principal, não negando, porém, por detrás do ruído do moinho de café, que as receitas do bar também «já não são o que eram».
A pedido de memórias, recorda com um sorriso que em dias de lotação esgotada, ou mesmo com mais de 500 espectadores, abriam os dois bares, referindo-se a um segundo espaço, no topo e à direita da escadaria do átrio de entrada — as sessões da Academia têm intervalo. Ou lembra ainda a introdução das pipocas no cinema, quando tomou em mãos o bar, e de quanto essa novidade incomodou o encarregado da sala.
José Amorim, de 54 anos, escolheu a Academia Almadense para ver a estreia de “Missão Impossível”, em família. Porquê? Precisamente porque ali não encontra a confusão de outros sítios nas estreias, mas também porque o bilhete é mais barato. O Almada Fórum, diz, é cómodo pelo estacionamento fácil e gratuito, pela variedade de filmes que oferece e por tudo o resto extra-cinema. «A nossa filha mais nova está lá, a ver o mesmo filme, com os amigos», revela.
Andreia e Guilherme, ela psicóloga e ele engenheiro civil, ambos a caminho dos 30 anos de idade, escolheram a Academia «pela tradição», pelo preço reduzido dos bilhetes — 2,50 euros contra mais de cinco na generalidade dos cinemas — e para não correr o risco de encontrar a lotação esgotada. Por seu turno, Jorge, 29 anos, e Sónia, de 28, salientam a qualidade da sala e a existência de intervalo. Já Manuel e Elsa, de 30 e 25 anos, explicam que pesou na decisão o facto de residirem nas imediações, o preço baixo e a qualidade de som e imagem da sala.
De facto, desde a sua abertura, há 32 anos, foram realizadas várias intervenções e melhoramentos na sala da Academia, para a manter sempre actualizada. Na década de 90 substituíram-se as cadeiras e alcatifas, melhoraram-se as condições acústicas e introduziu-se o som Dolby Digital Surround, marca de pioneirismo do cinema na altura, além de um novo ecrã. Isto sem esquecer o último investimento, com o actual projector, uma despesa que rondou os 60 mil euros, realizada já numa altura de quebra financeira. Mas a noite de quinta-feira continuava muito tímida.
Prejuízos nos últimos seis anos
«O máximo agora são 200 pessoas», diz a bilheteira Maria Luísa, de 62 anos e há 43 na Academia — é das funcionárias mais antigas. «Não adianta baixar o preço dos bilhetes», afiança, um mês depois da decisão da Direcção em reduzir os ingressos de 3,80 para 2,50 euros durante a semana, mantendo-se o preço ao sábado, domingo e feriados. É certo que os filmes anteriores não foram do estilo desta estreia nacional, mas Luísa garante que muitos dos frequentadores do cinema são residentes nas proximidades, ou os miúdos que não têm carro para se deslocar ao centro comercial. «Dantes, nas estreias, formavam-se filas enormes que iam até à esquina» do edifício, comenta, depois de interromper o tricot para vender bilhete a um espectador tardio. «Este não é de cá, perguntou se ainda havia bilhetes», graceja.
Osvaldo Azinheira não pode partilhar a boa disposição, mesmo que momentânea. Para o Presidente cessante da Direcção da Academia Almadense a realidade é dura e muito triste. «Temos vindo a adiar, desde há anos, o encerramento do cinema», confessa. Na sua opinião são vários os responsáveis pelo decréscimo de espectadores do cinema, mas sobretudo a falta de estacionamento nas proximidades e a supressão, no passado, de duas carreiras de autocarros que passam naquela rua, para Cacilhas, depois das 21 horas. Por fim, as outras condicionantes são comuns à crise geral do cinema: a TV por cabo, a internet, o DVD e «a grande diminuição do poder de compra das pessoas».
Pelo menos desde 1999 que o cinema não apresenta um exercício positivo. E os números são bastante elucidativos das dificuldades que a Academia atravessa: se em 2001 as receitas do cinema foram de 391 mil euros, com despesas um pouco superiores, em 2003 apenas entraram nos cofres cerca de 129 mil euros (saíram 244 mil), sendo que em 2004 o valor não chegou aos 102 mil euros (com despesas de mais do dobro). Ou seja, em três anos registou-se uma quebra das receitas superior a 74 por cento — não foram disponibilizados dados referentes a número de espectadores. «São as piscinas que evitam a derrocada total» da Academia, afirma resignado, enquanto o cinema sempre tinha sido a principal fonte de receita da instituição.
«Tenho a consciência de que vou passar o testemunho de um barco a afundar», desabafa, claramente emocionado, de olhar evasivo por detrás dos óculos, e ajeitando a gravata. Azinheira, de 72 anos e assessor da presidência da autarquia, vem sendo sucessivamente eleito Presidente da Direcção há um quarto de século, mas assume-se algo cansado e desgastado. Conforta-o saber que quem lhe sucederá é um homem da casa há tantos ou mais anos que ele, que conhece os problemas e é de sua inteira confiança — é, aliás, o seu Vice-Presidente, que agora encabeçou a única lista apresentada a sufrágio.
É, então, nas mãos de Domingos Torgal, professor do primeiro ciclo reformado e profundamente ligado e activo no associativismo almadense, que reside o futuro do cinema da Academia. Para já, o que pretende fazer é «ouvir os jovens, chamá-los a dar a sua opinião sobre o que se deve fazer para dinamizar o cinema e a sala». Na sua opinião, a principal pecha da Academia são os problemas de estacionamento. E pelo menos uma solução existe. É que o edifício do cinema foi construído com estacionamento subterrâneo. Apenas essa cave alberga, desde 1976, as actividades desportivas da Academia. «Eu gostava de poder devolver a garagem à garagem», diz, «porque ainda cabem lá umas 60 ou 70 viaturas». Mas isso depende da construção de um pavilhão gimno-desportivo para a Academia, em terrenos a disponibilizar pela autarquia, algo ainda dependente de projecto e que num curto prazo não passa de um desejo. «E a Academia também não tem esse dinheiro, diga-se».
De cabelo e bigode brancos, divertido ao longo da conversa, o professor Torgal não evita que o rosto se lhe feche perante a questão, a que responde, com séria inevitabilidade: se a crise subsistir «não ponho de parte a hipótese de fechar o cinema».
Um problema sem solução
O problema da falta de público na Academia Almadense não parece ter resolução possível. A crise do cinema é geral, como atestam os dados do Instituto do Cinema Audiovisual e Multimédia: em 2005 os cinemas nacionais perderam quase um milhão e 400 mil espectadores (menos 8,1 por cento), face ao ano passado. E para as salas únicas e de elevada capacidade, como é o caso, não há forma de responder à crescente oferta de fitas, pois a escolha é só uma. Em bom rigor, nos dias de hoje uma sessão com mais de 150 espectadores é um óptimo resultado para a generalidade dos cinemas, cujas lotações não vão muito mais além. Apenas quando se tem 830 cadeiras para preencher e as dimensões e custos que lhes estão associados, obviamente esse número não chega.
Também os hábitos de consumo dos portugueses se modificaram e os centros comerciais se afirmaram, oferecendo uma multifuncionalidade sem paralelo: convívio, compras, comida e cinema, tudo no mesmo espaço. Concretamente, o centro comercial Almada Fórum impôs-se não só pela novidade — o primeiro e único do género no concelho —, mas por toda uma reconfiguração de hábitos que proporcionou, a que serve de exemplo a deslocação (e expansão) do único hipermercado da cidade para a nova infra-estrutura. E não pode ser ignorado o facto de o estacionamento ser gratuito.
Por fim, transformar o cinema da Academia numa sala multiusos, uma das soluções de rentabilização do espaço, não é tão fácil quanto aparenta. É que ao cancelar uma sessão para acolher, por exemplo, um espectáculo musical, o cinema não só tem que cumprir as obrigações negociais para com a distribuidora, como pode estar a contribuir para que esta privilegie com cópia outra sala concorrente na próxima estreia.
Apesar do cenário pouco optimista verificado com “Missão Impossível”, o próximo filme a estrear na Academia é “O Código Da Vinci” e as expectativas do cinema numa boa receita são elevadas. De tal forma que o filme ficará duas semanas em exibição. Depois, e com a chegada do calor, tudo é uma incógnita.
Em Agosto do ano passado a Academia Almadense fechou as portas pela primeira vez na sua história. Este Verão, e na ressaca do campeonato mundial de futebol, teme-se que, a encerrar de novo, seja por tempo indeterminado. Que as fitas não voltem a passar, que não haja mais espectadores boquiabertos pelo gigantismo da imagem, que não mais se salte assustado pelo som daquela bala que passou rasando a cabeça. Porque um cinema fechado só se pode deteriorar e acaba por se esquecer. E as memórias não alimentam cinéfilos. | João Pedro Correia (texto e fotos; Maio 2006)
domingo, 4 de novembro de 2007
sábado, 3 de novembro de 2007
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